terça-feira, 16 de setembro de 2008

Uma Feira de Vaidades

Sócrates transformou a abertura do ano lectivo, numa feira de vaidades, numa das mais escandalosas campanhas de propaganda política a que temos assistido!
A propósito da abertura de escolas, sujeitas a alguma remodelação, o Governo tem-se desdobrado em acções mediáticas, contando sempre com a comparência da Televisão, da Rádio e da Imprensa, no local, e com a sua prestimosa e rápida eficiência na divulgação de tantas obras grandiosas e tantas mudanças inteligentes e maravilhosas, jamais feitas na Educação!
Sócrates, o omnipresente Primeiro Ministro fixa, ousado, a câmara que o filma, discursa exuberantemente, com um meio sorriso, a voz bem colocada, o gesto certo e, nos momentos mais dramáticos ou comoventes, com a mão no peito, numa bonita atitude de sinceridade e comoção; elogia, calorosamente, um Governo, em tantas áreas, inseguro e incompetente; louva, descaradamente, a Ministra da Educação, a mais medíocre, a mais arrogante e a que mais tem contribuído para o descalabro da Escola Pública que já passou pelo M.E. mas, sobretudo, e porque esta é, afinal, uma feira de vaidades, exalta-se, convictamente, a si próprio!
A "sublime" invenção do inefável Dia do Diploma e a "solene" entrega de cheques aos melhores alunos, num ano de particular facilitismo nos exames e na avaliação, seria, simplesmente, risível e profundamente ridícula, se não fosse o retrato triste de um triste e depauperado País!
Já agora, porque não ressuscitar, nas escolas, o velhinho "Quadro de Honra", banido, como um nefando resquício fascista, na era pós 25 de Abril? Era mais bonito, muito mais discreto e um motivo de regozijo para os alunos que nele vissem figurar o seu nome e uma forte motivação para os outros.
No tempo do fascismo de Salazar, quando a avaliação era dura e rigorosa, figurei eu no Quadro de Honra, do meu estabelecimento de ensino.
Que eu me lembre, nunca lá foi nenhum político, nenhuma personalidade importante fazer discursos e acalorados elogios, nunca lá foram fotógrafos para registar o evento para a posteridade, nem jornalistas para nos imortalizarem o nome, nas páginas dos seus jornais!
E, nunca ninguém do Governo ou pessoa notável nos felicitou ou, nos entregou cheques,
nem mesmo daqueles pequeninos!
Por isso, não concordo com quem diz, como já tenho lido, que esta ânsia de mediatismo, esta febre de propaganda política, estes longos discursos de patético auto-elogio, este bacoco marketing de imagem cheiram a bafio salazarento! Nesse tempo, ninguém sabia o que era marketing de imagem, os Media eram muito limitados embora selectivos e ainda se tinha pejo de fazer auto-elogios!
Na verdade, penso que tudo a que temos assistido na feira de vaidades que um Primeiro Ministro vaidoso tem vindo a organizar, terá o feitio, o recorte e, quiçá, o cheiro do egocentrismo, do exibicionismo e da prepotência de um certo senhor de bigode, eleito democraticamente mas que, perante a passividade bovina de um povo, deixou um País de rastos e coberto de vergonha!

MC

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Para a Xica ... com amor!

Os animais são uma das minhas paixões e muitos, especialmente cães e gatos, fizeram parte da minha vida, tornando-a mais bonita, mais terna e até, em certos momentos, menos solitária!
O animal que hoje aqui vou homenagear é, talvez, um dos mais belos e comoventes motivos da tela, onde vou registando, com tinta de luz ou de sombra, cada um dos meus dias, embora, na minha vida, tenha sido apenas uma doce e indelével referência: a Xica, uma pequena e graciosa macaca!
A tela a que realmente pertenceu e onde deixou gravada a sua marca, em pinceladas de amor, alegria e doçura, é outra, há muito tempo, interrompida!

Nasci em África. Uma África, então, pacífica, bordada de mar, enfeitada de cores alegres e cintilantes, envolta em sol e cheiros doces e fortes, num arrebatamento de pura beleza e imensidão!
Nesse tempo, faziam-se, ao fim de semana, longos e deliciosos piqueniques, mato adentro, alegres pretextos para convívios familiares e de amigos.
Num desses piqueniques, na Anha, ainda eu não era nascida, a minha Mãe viu e nunca mais perdeu de vista, o que ela pensou ser um macaco, ainda pequeno, meio escondido, fugidio, mas curioso e a seguir, interessado mas, à distância, a divertida reunião.
A certa altura, uns olhos grandes, escuros e redondos como contas, cruzaram-se com os olhos claros da minha Mãe. Olharam-se, mediram-se, entenderam-se e começou, então, um silencioso jogo de sedução e conquista.
Vencido o receio, uma mãozinha esguia, escura e felpuda, perdeu-se, confiante, numa outra, branca e fina que a acolheu ternamente. Ao cair da tarde, no regresso a casa, a pequena macaca, (afinal era uma menina ), que, decerto, se perdera do bando, já tinha um lar, uma família e um nome: Xica!

E, entre a senhora dos olhos claros e a pequena macaquita, nascia uma delicada mas forte relação de afecto e de uma imensa ternura!

Uns dois anos mais tarde, nasci eu e lembro-me de, já crescida, ver fotografias, aquelas fotografias antigas, a preto e branco, com uma pequena margem branca, recortada, onde a minha Mãe sorria e a Xica, os olhos grandes, escuros e redondos, como contas e a boca rasgada num pretenso "sorriso" de dentes brancos, se sentava no seu ombro esquerdo e lhe abraçava o pescoço alto e fino, com a mãozinha esguia, escura e felpuda; noutras, as duas, de mãos dadas, olhavam, divertidas, uma para a outra, numa afectuosa cumplicidade; em algumas, já eu aparecia, risonha, ao colo da minha Mãe, enquanto, a Xica, no chão, agarrada à sua saia, olhava atenta e enternecida, quero crer, mas não tenho a certeza, para nós duas.
Lembro-me de uma fotografia, onde eu e a Xica, estávamos sentadas numa esteira, eu, convencida que era a menina mais bonita da minha rua, fixava, em pose, o fotógrafo, que era, certamente, o meu pai, enquanto a Xica, a meu lado, se inclinava, para mim, com a mãozinha esguia, escura e felpuda pousada, docemente, no meu braço.
Mas, a de que eu sempre mais gostei, era aquela onde eu me aninhava, pequenina, nos braços macios da minha Mãe que sorria, com a Xica, empoleirada no seu ombro, a abraçar-lhe o pescoço alto e fino, ao mesmo tempo que, com o seu peculiar e rasgado "sorriso" de dentes brancos, transbordante de alegria, olhava, muito vaidosa, para o fotógrafo!

A Felicidade não é permanente! A Felicidade pode estar, simplesmente, nuns minutos, numa hora, quiçá, num dia, plenamente, radiosamente, vividos; pode estar no arroubo de um amor, julgado perdido; no instante fugaz mas perfeito de dois olhares que se cruzam e se dissolvem na mesma luz; na esfuziante alegria de um reencontro, há muito tempo adiado; numa notícia boa, ansiosamente esperada; num abraço apertado, tão desejado!
Ainda que inconscientemente, sempre pressenti que, naquela fotografia, tinha ficado, para sempre registado, um desses raros e mágicos momentos, de suprema Felicidade que a vida, às vezes, generosamente, nos concede!

E, os dias foram transcorrendo serenos e rotineiros.

Quando eu tinha dois anos, a minha Mãe adoeceu gravemente e viajámos, à pressa, para o Continente, na vã esperança de a salvar e onde, porque a doença podia ainda ser contagiosa, nenhum familiar nos quis receber! Foram amigos que nos ajudaram e acolheram! De coração aberto e sem medo, numa preciosa dádiva de solidariedade e de afecto!
A Xica e a Pequenina, a cadela enorme que, de pequenina só tinha o nome, lá ficaram,
em África, entregues aos cuidados dos meus tios.
A Pequenina deixou de comer uns dias e sentiu, profundamente, a falta dos donos mas, recuperou. O instinto primário de conservação da vida foi mais forte do que o desamparo da ausência, do que a agonia da saudade!

A Xica, a macaquinha meio-selvagem, encontrada sozinha no mato, não!
Deixou-se ficar, teimosamente, sentada num recanto do jardim, com os olhos grandes, escuros e redondos como contas, à espera de ver entrar a minha Mãe, a qualquer momento.
Nunca mais comeu, nunca mais quis brincar, recusou, furiosa, sentar-se no ombro da minha tia e nunca mais saiu do recanto onde seria mais provável ver chegar, enfim, a luz que lhe iluminava a vida, cada dia mais débil, os olhos, sem expressão, cada vez maiores e mais redondos!
Uma manhã, pouco tempo depois, os meus tios encontraram a Xica estendida, imóvel, as mãozinhas esguias, escuras e felpudas, abertas num pungente abandono, o olhar vazio, transfixo. Tinha morrido!

A minha Mãe, que faleceu meses depois, nunca soube que a Xica, a macaquita indefesa que resgatara do mato, resgatando-a, assim, da fome, da solidão e do perigo, tinha desistido de viver, mergulhada na tristeza da sua falta, esgotada pela angustiante expectativa de a voltar a ver e abraçar!
Eu, a filha única, desejada e querida, sobrevivi à dor, sem remédio, da sua perda; ao vazio, nunca inteiramente preenchido, da sua ausência; à amputação dolorosa do pequeno mundo dos meus afectos e bebi, cada dia de vida, a haustos longos e ávidos!Mas, a Xica não! A Xica desistiu e deixou-se morrer, presa numa dolorosa teia de amargura e afundada no desespero de uma infinita saudade!

Às vezes, nas minhas noites de insónia, como esta, imagino-as juntas, num jardim imenso, luminoso e perfumado: a minha Mãe sorrindo e a Xica, os olhos grandes, escuros e redondos como contas, para sempre feliz, sentada no seu ombro esquerdo, enquanto a abraça, amorosamente, com o seu bracinho longo e peludo, como na velha fotografia , a preto e branco mas, onde, incompleta, ainda permanecem vazios, os braços de minha Mãe!


Nota: Só é possível tirar a cria a uma macaca, matando-a! Imagino hoje, como a minha Mãe deve ter sentido então, o desespero da mãe da Xica e dela própria, quando, desgraçadamente, se perderam uma da outra!
Mas, só assim, a Xica pôde ser uma benção de dedicação, de ternura e de alegria na nossa família, especialmente, para com a senhora de olhos claros, a quem dedicou, amorosamente, inteiramente, a sua vida!


M.C.