segunda-feira, 30 de março de 2009

Que vais fazer da tua vida...Bernardo?

Chamo-me Bernardo.
Os meus amigos dizem que tenho um nome “ bué” de chic! Eu não acho nada!
Tenho quinze anos e estou na Tutoria ou, melhor, num Colégio de Correcção, em regime de vigilância especial.
A minha mãe é prostituta e era traficante de droga mas, está presa, há uns meses. Compreendo-a! Todo o dinheiro era pouco para fazer face às despesas. Tenho mais dois irmãos e uma irmã. Todos mais novos do que eu.
O meu pai? Sei lá quem é o meu pai! Se calhar, nem a minha mãe sabe! Mas, bem ou mal, criou-nos, a todos, sozinha!

Tinha doze anos quando comecei a andar com um gangue, no gamanço. Até tenho jeito e não me estava a sair nada mal! O chefe, um gajo de dezassete anos, o João, gostava de mim e do meu trabalho mas, tive o azar de ser apanhado!
E, aqui estou na Tutoria, quer dizer, neste Colégio de Correcção, para me corrigir e para me fazer um homem digno e honesto, um cidadão de bem e de valor, na sociedade a que pertenço, como dizem os nossos superiores!
No entanto, acho que nem eles acreditam no que dizem e sabem que, nunca seremos dignos, nem honestos, nem nunca teremos importância nenhuma na sociedade a que, parece, pertencemos!!
No que a mim diz respeito, não será fácil ou, mesmo possível, mudar os hábitos de sorna lazarenta que me agradam e deixar a vida de rua e de roubo, a única que sempre conheci!

Tempos houve, em que a minha mãe tentou mudar o destino: conseguiu arranjar um emprego precário, é claro, e um namorado estável. Durante dois anos vivemos razoavelmente bem e senti-me quase feliz!
Mas, ela engravidou da minha irmã, perdeu, imediatamente,o emprego e o namorado deu à sola!
Voltou tudo à estaca zero!
Acho que é por isso que nunca gostei da minha irmã, nunca lhe consegui pegar ao colo e tudo me impacienta nela! Estragou, ao nascer, o pouco, mas bom, que tínhamos!!

Dizem que sou indisciplinado e agressivo! A verdade é que odeio estar aqui preso, sim, porque isto é uma prisão camuflada sob a caridosa etiqueta de Colégio mas, onde impera o regime autoritário e duro de uma cadeia e me obrigam a estudar!

Temos professores que vêm aqui dar-nos as aulas e são outros, de fora, que vêm fazer-nos os exames.
Esses, os que vêm de fora, dão-me vontade de rir! Falam baixinho, sorriem, com um sorriso plastificado, colado nos lábios e tratam-nos como se estivéssemos doentes e tivessem medo de se conspurcar, em contacto connosco! Algumas, as mais patéticas, trazem-nos rebuçados, chocolates ou bolachas, como quem dá uns ossitos a cãezinhos!
Não, a comparação não é correcta! Porque os cães que recebem ossinhos e bolachas, vão ao veterinário, são bem alimentados, são queridos e têm muito mimo!

Nós, não!

Elas dão-nos os rebuçados, os chocolates e as bolachas porque não se sentem à vontade connosco e bem lá no fundo, têm medo destes rapazes que roubaram, foram agressivos, violaram e, em situações limite, podem, talvez, ter assassinado! E, continuam instáveis!
Na tutoria, quer dizer, no Colégio de Correcção, dizem-nos para agradecer essas amabilidades! A mim, apetece-me atirar-lhes com aquelas míseras guloseimas à cara e mandá-las para o raio que as parta!
Advinho-lhes, aliás, o mal disfarçado alívio, quando se vão embora, com os seus sorrisos de plástico mas, ansiosas e apressadas!

Apesar de tudo e da minha frieza, tenho pena que a minha mãe tenha andado a vender o corpo na prostituição e a alma, no tráfico da droga!
Mas, francamente, acho que não gosto dela! É seca, fria, ríspida e agressiva!
Tenho saudades de beijos, de palavras carinhosas e de incentivo, de mimos inesperados, mesmo sem nunca ter tido nada disso!
Tenho sede do carinho da minha mãe, que já se esqueceu de mim, há muito tempo e do afecto e do companheirismo do pai que nunca conheci!

Às vezes, nos meus momentos de delírio, penso como tudo seria diferente se eu tivesse vivido com os meus pais e com os meus irmãos, numa casa confortável e ter, o que chamam, uma vida normal e tranquila!
Gostava, sobretudo, de poder comprar música, muita música, roupas que me ficassem bem e usar um perfume bom, quente e sensual, como o do nosso director!
Penso que, nessa situação, até ía gostar de ir à escola, curtir umas saídas com os amigos e conhecer umas miúdas giras, que não fossem fáceis e soubessem conversar, sem dizerem um palavrão em cada três palavras!
Gostava , mesmo, de ter uma namorada que me curtisse, como sou: feio, com espinhas na cara e desengonçado!

É por tudo isto, que vivo roído de inveja! Tenho uma inveja tremenda dos gajos da minha idade que são bem-parecidos e atraentes, andam bem vestidos e cheiram bem, que sempre tiveram uma vida confortável, um quarto só para eles, com computador e televisão e nunca se viram atirados para o gamanço, porque era preciso trazer dinheiro para casa!
Tenho inveja da comidinha boa que sempre tiveram, na mesa, da cama quente e do beijo da mãe antes de adormecer!
Tenho uma inveja danada do sucesso que esses gajos têm junto das miúdas mais giras da escola!

Dizem que cobiça é querer o que não se tem!
Inveja é querer que o outro não tenha o que não se tem e mostra o instinto do roubo!
Eu, que não sou filósofo, acho que ando roído por tudo isso, pela cobiça e pela inveja! E, também por esta revolta, esta raiva imensa que me sufoca e me consome e que estas grades pesadas, que me prendem, não conseguem conter e nunca irão extinguir!
Porque não é aqui, nem em lado nenhum que me vou corrigir e tornar-me num homem digno, um homem de bem e honesto, como eles dizem, embora não acreditem!

Mas, tudo isso, agora, não interessa nada!
Sei, isso sim, que já tenho uma vida, à minha medida, lá fora, à minha espera!
Uma vida, como a de nós todos, que aqui estamos, que é um beco escuro, sem saída, onde não se vislumbra a Esperança, nem se vê Futuro! Porque, se calhar, nem queremos!

Vou, aliás, ter de parar de escrever porque, para dizer a verdade, não vejo mesmo nada!
Estou cego pelas lágrimas grossas de pura raiva, que me encharcam o rosto e por esta inveja má, virulenta, medonha, cada vez mais forte, cada vez mais mortal, cada vez mais, profundamente, enraizada em mim!

MC
( A Inveja - Pecado Mortal)

quarta-feira, 25 de março de 2009

Eu, preguiçosamente, a espreguiçar-me ao sol...

O dia está radioso!
O sofá de veludo azul onde, preguiçosamente, me estendo, está inundado de sol.
Estico os meus braços esguios e, as minhas unhas pintadas, brilham suavemente como pedacinhos de nácar.
Estendo as pernas compridas e rebolo, na maciez azul do veludo, o meu corpo voluptuoso, que se expande, num suspiro de intenso prazer!
O sol beija o meu corpo e arranca mil reflexos de oiro,da minha pele, sedosa e macia. Dizem que sou bela! Sei que sou bela e com a vivaz sensualidade que perpassa no quadro “ Olympia”, de Manet!
A luz é intensa e semi-cerro os olhos claros, de um verde tenro e líquido, pontilhados de oiro!
Há pó no ar. Franzo o nariz, pequeno diamante negro e abro a boca, onde brilham os meus dentes, pequeninos e brancos, como pedrinhas de sal, num bocejo de puro gozo, de deliciosa preguiça!
Uma noite, ao serão, ouvi alguém falar de um livro "Oblomov, o magnífico preguiçoso"
de um escritor russo, Ivan Goncharov!
Simpatizei logo com esse Oblomov! Eu sou como ele, uma magnífica e adorável preguiçosa!

Eu sou, aliás, neste momento, a imagem viva da preguiça, a espreguiçar-se, preguiçosamente, ao sol!

Hoje tenho um laço de seda verde, ao pescoço! Adoro a cor verde! Fica-me bem e condiz com os meus olhos!
Daqui a pouco, ele chega. É baixo, careca, e desinteressante. Dizem que é irascível, agressivo e detestável!
Comigo, não! Comigo é terno, sereno e paciente!
Às vezes aborrece-me de morte! Outras vezes, enfurece-me! Como no dia em que, por exemplo, a brincar, ousou pôr, a meu lado, um rato preto de borracha. Delicada, como sou, fugi espavorida, arrepiada quando vi o rato! Tenho horror a ratos!
Eu não sou como essas vadias que andam nas ruas, pelas madrugadas! Eu sou uma menina, respeitável e esplendorosa!

Ele deve estar mesmo a chegar. Que maçada! Sinto-me tão bem, nesta preguiça mole e gostosa!
Quando abrir a porta, vai começar a gritar: Nini, Nini! Que nome ridículo! Chamar-me Nini, a mim, descendente de reis! Eu deveria ter um nome nobre, assim como, Sofia, Letízia, Constança, sei lá...!
Detesto que me chame Nini! Detesto que me chame bichaninha! Detesto! Detesto!
Ah! Que sol tão bom, tão suave!
Como é delicioso preguiçar-me, num sofá de veludo azul, onde posso espetar e polir as minhas unhas cor-de rosa!
Sinto-me bem! Sinto-me bela e absolutamente perfeita, a rebolar-me, feliz, nesta preguiça branda!

Chegou! Já o ouço aos gritos: Nini! Nini!
Se ele pensa que vou levantar, para ir, a correr ter com ele e interromper, assim de repente, este doce enlevo de sossego e de paz, está muito enganado!
Ele é que tem de vir ter comigo e esfregar-me a barriga! Por acaso, hoje, apetece-me imenso que me acaricie a barriga! Que é cor-de-rosa e macia!
Depois de me maçar com os seus cumprimentos, o ritual é sempre o mesmo: bebe o seu whisky de malte e eu bebo também umas gotinhas, desde que seja Glenrothes. Adoro este whisky! É bom e doirado como o sol!
Em seguida, abraça-me! Mas, se amarrota ou, tira do lugar, o meu laço de seda verde, dou-lhe uma arranhadela, na careca! Não, dou-lhe duas arranhadelas, na careca!
Preciso de ir ao instituto de beleza e se o magoar muito, ele leva-me lá mais depressa!

Lá fora, dizem, ele é agressivo e intratável. Até me contaram que confessou, aos gritos, na Assembleia da República, que é uma assembleia muito importante, que gosta de malhar à direita e à esquerda! Mas, cá em casa, sou eu que malho nele, quer dizer, sou eu que lhe dou unhadas e o esgatanho! Quando me aborrece ou, como daquela vez em que me assustou, de morte, com o rato preto de borracha!

Mas, não posso exagerar! A Teté, a minha querida amiga, está tão infeliz, tão magrinha, até envelheceu. O senhor lá da casa era banqueiro, não sei que tipo de bancos fazia, foi à falência e ela, coitadinha, nunca mais comeu filet mignon, nem pescada fresca! Nem parece a mesma!
Este, por enquanto, está no Governo, ouvi dizer que é responsável pela Defesa. O que ele defende, eu não sei, nem interessa nada! O que eu sei é se vai governando e está tudo bem cá em casa!
É que eu sou esquisita! Como membro da mais depurada realeza, sou alérgica a sardinhas e a carapau! Só como carne, se for filet mignon e peixe, só se for suave e carnudo e não tiver espinhas!

“Então, Nini, não vens ter com o papá?”
E, pegou-me ao colo! Adoro ser preguiçosa e odeio que me incomodem, quando descanso! Tirou-me do sol e eu dou-lhe uma unhada!Não, dou-lhe duas unhadas!
“Vá lá, Nini, trouxe-te o teu perfume, um patê francês, que mandei vir, especialmente, de Paris, para ti e arranhas o papá? Menina ingrata!
Por falar em arranhar, amanhã vais ao “Poupée Beauté”, para te tratarem e pintarem as unhas e escovar essa pelagem maravilhosa que está um pouco baça. E, como te sinto muito tensa, Nini, vou marcar-te uma semana no “Ronron`s Spa”. Precisas de umas massagens com óleos relaxantes, uns tratamentos com pedras quentes e uma pequena dieta de desintoxicação! Que dizes, gatinha querida?”

Estou sem fala! Estou entalada de comoção!

“Então, Nini, nem sequer te ouço um Miau de agradecimento?”

Ele ensandeceu! Tanto malhou à direita, tanto malhou à esquerda, que enlouqueceu! Eu, uma gata de raça nobre, eu, uma felina da mais pura linhagem, eu, uma tigreza elegante, requintada, fina, com sangue real persa a correr-me nas veias, soltar um suburbano Miau?
Mas, enfim, enquanto este careca insignificante se vai governando no Governo e vai malhando nos outros, a verdade é que, a mim, enche-me de mimos, e trata-me com todos os cuidados e a veneração a que tenho direito, como a princesa persa que sou! E, simplesmente, adora-me!

A vida é bela!

É claro,que não vou, jamais, soltar um mísero Miau! Mas, para lhe agradar, sussuro-lhe, mesmo junto da possidónia orelhinha, um chic, doce e encantador Miôôôô...

MC
( A Preguiça - Pecado Mortal)

Uma sopa, um par de sapatos e... uns olhos azuis!

Eu tinha casado há pouco tempo e a vida tornara-se muito opressiva, fatigante e maçadora para a menina culta mas, mimada, e displicente que sempre fora.
Como os alemães dizem, “ Aller Anfang ist schwer”! E, de facto, tive dificuldade em me adaptar a um estilo de vida, a uma rotina sem graça, que me era completamente desconhecida: cuidar de uma casa, estudar e dar aulas.
Eu gostava de ter tempo para mim, adorava ler, ouvir música, ir ao restaurante, ao cinema, sair e conversar com as amigas! Agora tudo se modificara!
Vivíamos em Lisboa e eu tentava ser forte e cumprir as minhas novas tarefas mas, sentia-me só, desiludida, insatisfeita! Estava, pois, a atravessar uma fase muito difícil, muito desmotivante e cansativa!

Uma tia tinha-me oferecido, pouco antes de me casar, uma pequena mas lindíssima imagem do Menino Jesus, com os pés descalços, sobre o Mundo.
Era Inverno e faziam-me muita impressão aqueles pézinhos nus, pousados sobre um Mundo gelado, que me parecia tão cinzento, tão complicado e tão diferente do mundo morno e róseo dos meus sonhos!
A realidade pesava-me como uma armadura de ferro que me sofucava e os meus sonhos pareciam-me cada vez mais etéreos e longínquos!

Não sou, propriamente, uma católica praticante regular. Não sei meditar, não sei rezar, porque dificilmente me concentro e não tenho paciência para desfiar orações, com o pensamento a correr doido, à desfilada, por outros caminhos!
Mas, de acordo com as raízes da minha educação judaico-cristã, como a minha filha diz, gostava de “conversar” com a pequena imagem e pedia-Lhe que me ajudasse a ultrapassar o cansaço, o desconsolo e a profunda insatisfação daquela rotina desbotada e esgotante em que a minha vida se estava, paulatinamente, a transformar!
E, porque aqueles pés descalços me afligiam, prometi-Lhe que daria um par de sapatos, a um pobre, como se fosse a Ele mas, só quando eu pudesse, claro! Nesse tempo, as finanças eram muito frágeis!

Num desses meus dias mais cinzentos, vivia, então, num apartamento, no Dafundo, na marginal de Lisboa, tocaram à campainha.
Fui abrir e, no patamar meio-obscurecido, vi diante de mim, um homem alto, magro, o cabelo curto, loiro, encaracolado, quase frisado, com cerca de quarenta e cinco anos, ( pareceu-me, então, um senhor velhote), vestido modestamente, mas limpo.
“ Boa tarde!”
“Boa tarde, menina, pode ajudar-me?”
Quando me voltava para ir buscar uma moeda, ele disse: “Não, dinheiro, não! Uma sopa, por favor!”
Fiquei surpreendida mas, senti-me muito bem comigo mesma, porque tinha precisamente acabado de fazer a sopa para o jantar e, sem pensar, convidei-o a entrar para a cozinha, com o sorriso, a alegria e a confiança, com que se convida um amigo ou, um “velho” conhecido da nossa confiança!
Quando se sentou e o encarei, vi os olhos azuis mais espantosos que, algum dia, se fixaram nos meus!
Eram uns olhos de um azul belíssimo, puro, profundo que não posso comparar a safiras porque estas sairiam a perder e não sei, nunca soube, eu que tanto gosto de brincar com os adjectivos, definir a expressão daquele olhar de céu e de mar!

Não lhe fiz perguntas mas, ele contou-me que tinha saído, nesse dia, do hospital, onde tinha sido operado ao estômago. Não me recordo de me ter dito onde tinha estado internado mas, lembro-me, perfeitamente, da minha consternação porque só tinha, em casa, uma sopa de grão-de-bico para lhe dar!
“ Desculpe, não posso dar-lhe a minha sopa. É de grão-de-bico e é muito pesada! O senhor foi operado ao estômago e pode fazer-lhe mal.”
Nunca, desde que estudei Cesário Verde, digo, ouço leio, vejo ou, como grão-de-bico, que não me lembre do belíssimo poema “A tarde”, a gloriosa tela impressionista, magistralmente pintada com a cor e a beleza das palavras e onde o poeta diz, a certa altura, daquele pic-nic de burguesas “... foste colher, sem imposturas tolas, a um granzoal azul de grão-de-bico um ramalhete rubro de papoulas.”
Mas, ele disse-me com um sorriso sereno e bonito que inundou de luz a cozinha modesta e gasta: “ Posso comer, sim! No hospital davam-me tudo!”
Tirei-lhe a sopa, dei-lhe água, não me lembro se lhe dei pão e retirei-me, para a sala ao lado.
Deixei-o comer sossegado, por delicadeza, para que não se sentisse vigiado e porque, francamente, era difícil despregar os olhos daquele mar de veludo azul!
Quando calculei que tivesse terminado, regressei à cozinha e ofereci-lhe mais sopa. Não quis mais nada mas, delicadamente, disse-me que estava muito boa e que sentia o estômago mais aconchegado.

Meio-encabulada, perguntei-lhe em que o podia ajudar. Ficou calado uns instantes e, quando eu pensava que ele se ía levantar, para ir embora, disse-me baixinho, sem olhar para mim: “Se tivesse uns sapatos que me pudesse dar, agradecia-lhe muito! Os meus estão muito gastos e magoam-me.”
Com espanto, olhei para aqueles olhos de um azul puro, lindíssimo, como nunca vi outros iguais e que, então, fixavam os meus, à espera da minha resposta.
Num impulso, lembrei-me de uns sapatos do meu marido, a um canto da despensa, à espera de serem engraxados.
“ Tenho ali um par mas, não sei se lhe servem!”
Na verdade, os pés dele eram magros mas, aparentemente, bastante mais compridos do que os do meu marido.
“ Não se preocupe, se mos puder dar, servem-me com certeza!”
Dei-lhe os sapatos e ele calçou-os. Mirou os pés com aquele seu sorriso cheio de luz, sereno e bonito e disse: “ Estão muito bem! Muito obrigado! Deus a abençoe!”
Acompanhei-o à porta. Sorriu e eu fiquei, ali, pasmada, por uma fracção de segundos, presa ao azul puro e profundo, daqueles olhos, pousados em mim.
Antes de fechar a porta, desejei-lhe, timidamente, as melhoras. Voltou-se, sorriu, agradeceu e vi aqueles olhos azuis, pela última vez!
Ao escrever este texto, ocorreu-me que nunca soube o seu nome! Não lho perguntei, nem ele mo disse!

Depois de fechar a porta, caí em mim!
Não me preocupei com a minha imprudência, com o perigo em que, impensadamente, me poderia ter posto, ao meter em casa um completo desconhecido, como se fosse um “velho” amigo que merecesse toda a minha confiança!
Não, por estranho que pareça, lembrei-me, primeiro, com um sobressalto de alegria que já tinha cumprido a promessa e, a seguir, preocupei-me, aflita, com os sapatos!
E, se o meu marido me perguntasse pelos sapatos, ele que é e sempre foi, tão cuidadoso e meticuloso, com as suas coisas?
Nesse dia, quando “conversei” com a pequena imagem do Menino ainda descalço, pedi-Lhe que aquela estranha visita ficasse só entre nós! Eu tinha sido muito imprudente e impulsiva!

Pouco tempo depois, mudámos de casa. Aliás, toda a nossa vida mudou! Não mudou, assim de repente, como um milagre divino mas, foi sempre mudando para melhor, para muito melhor, em todos os aspectos!
Se tenho tido fases mais complicadas e dias maus, como toda a gente, a verdade é que, muitas têm sido as bençãos que têm fluído sobre mim, especialmente, as bençãos personificadas nas minhas filhas, duas jóias preciosas que têm enchido de luz, de amor, de alegria e de plenitude, a minha vida!
E mesmo, nos meus dias mais cinzentos e nas fases mais penosas, surge sempre, vindo não sei de onde, um raio de sol que ilumina e cobre de oiro e de paz, todos os recantos da minha alma, confortando-me e amparando-me, como se uma mão amiga, amorosa, permanecesse, docemente, pousada no meu ombro!

Curiosamente, o meu marido nunca se lembrou dos sapatos, a um canto da despensa, à espera de serem engraxados e eu nunca lhe falei neste episódio! Ficou comigo, guardado no meu coração, até ao dia em que o contei às minhas filhas! E, hoje, tantos anos depois, que o registo aqui!

Não sei o que se passou, nesse dia, na modesta e gasta cozinha do meu apartamento!
Não vivi, certamente, um momento de esplendorosa transcendência e recebi apenas, a prosaica visita, ainda que, indiscutivelmente, um pouco singular, de um homem meio-doente, que nunca esqueci e a quem dei uma sopa de grão-de-bico e um par de sapatos.
Mas, sei que, mesmo hoje, tantos anos depois, eu reconheceria aquele rosto magro, aquele sorriso luminoso, sereno e bonito, aquele cabelo loiro, encaracolado, quase frisado e aqueles olhos de um azul belíssimo, puro e profundo, entre outros mil rostos, no mundo!
Talvez, quem sabe, um dia, num outro plano, numa outra
dimensão, a luz daquele olhar azul que não sei, nunca soube definir, atravesse a minha alma, como tem atravessado a minha vida!

MC
( A Caridade - Virtude)

terça-feira, 24 de março de 2009

O Senhor Pinheiro

Sou, há muitos anos, voluntária, num hospital.
No ano passado, talvez, precisamente, por esta altura, o doente que mais me preocupava era o senhor Pinheiro, um velhote modesto, esquelético, amarelo, com o corpo crivado de drenos e com uns sacos pendurados que fediam.
Desistira de tudo e só pedia, angustiadamente , para ir para casa. Mas, as filhas não queriam levá-lo, o que, até certo ponto, se compreendia: cheirava mal, não comia sozinho, era preciso dar-lhe banho, mudar-lhe a fralda cagada ou, na melhor das hipóteses, a pingar de mijo escuro e fedorento!
“ Está melhor, Sr. Pinheiro?”
“Não, menina, não estou! E as putas ruins das minhas filhas não me tiram desta merda! Estou tão cansado! Sinto que estou cada vez pior e sei que, um destes dias, vou direitinho para o caralho! Foda-se, eu só queria ver a minha casa e o meu quintal, uma última vez, menina!”
“ Tenha calma, Sr. Pinheiro! Quando estiver melhor, volta para casa e vai dar muitas passeatas no seu quintal!”
“ Mas, eu tenho tantas saudades, porra! Estou farto de estar aqui e sei que não vou melhorar, merda nenhuma!”
E, na verdade, dias depois, o Sr. Pinheiro foi mesmo direitinho para o caralho, sem que as putas ruins das filhas o tivessem deixado voltar a ver, pela última vez, a casa e matar a porra das saudades que tinha do seu quintal!

Nota – Este texto é a resposta ao desafio que me foi feito pelo Dr. Mário Cláudio, para escrever sobre uma obra de Caridade com palavrões “pesados”, uma vez que, na sua douta opinião, a minha escrita é muito “certinha”, muito "penteadinha" e muito “alinhadinha”!
Este, é o texto conseguido e, creio, absolutamente "despenteado" e“desalinhado”!


MC
A Caridade - Virtude