segunda-feira, 27 de abril de 2009

O gato

O gato tinha uns olhos grandes, de um verde intenso, com frinchas amarelas e um risco preto ao centro, que se fixavam inexpressivos no seu rosto. E, ela tentava advinhar-lhe o que escondiam aqueles olhos que pareciam devassavar-lhe a alma e a assustavam mas, que também a atraíam irresistivelmente.

O gato tinha aparecido, um dia, à porta de casa. Aninhara-se-lhe aos pés, numa atitude mansa e terna que, de imediato a conquistou. Enternecia-a a dedicação dquela bolinha de pêlo macio, branco e cinento mas, aqueles olhos grandes e verdes que a seguiam, amorosos, por toda a casa, conservaram uma fixidez desarmante e fria, que era quase uma admoestação, quando recebia amigos para jantar ou, simplesmente, para um serão descontraído.

Era jornalista, estava, muitas vezes fora e, por isso, o gato fazia-lhe um certo transtorno em casa mas, nunca conseguira, nem quisera, libertar-se dele! Porque, estupidamente, os olhos dele faziam-lhe lembrar os olhos verdes e serenos do noivo que morrera três meses antes, num acidente de viação, uma semana antes do casamento.
E, curiosamente, o gato aparecera junto à sua porta, exactamente, no dia em que ele partira!
Talvez, por isso, e quase inconscientemente, chamara-lhe Afonso, o nome do noivo!
O gato tornou-se parte da sua vida! Esperava-a, seguia-a por toda a casa e dormia na cama, enroscado a seu lado.
A presença de Afonso parecia ter ficado entranhada na casa, como se o corpo tivesse partido mas o espírito tivesse permanecido preso a ela! Muitas vezes, ainda sentia, vivo e forte, o cheiro das cigarrilhas que ele gostava de fumar e o aroma do seu perfume preferido!

Passaram três anos, a correr, como se fossem três dias!

Num dia frio, de chuva, conheceu o João, no parque de estacionamento , do Jornal. Era um homem alto, magro e de uma simpatia cativante. Ficaram amigos, conversavam muito e, às vezes, almoçavam juntos.
Com o tempo, apaixonaram-se e ela, um dia, convidou-o a ir lá a casa, tomar uma bebida, antes do jantar.
O Afonso olhou-o indiferente, pareceu ignorá-lo mas, ficou, de longe, a observá-lo.
O João sentia-se cada vez menos à vontade. O gato enervava-o e... constrangia-o!
“O Afonso não gostou de mim! O teu gato tem ciúmes! Eu, francamente, também não gostei muito dele!” disse ele, a rir.
Ora, deixa-te disso, João! O meu Afonso é um amor! Adoro-o!” , disse ela, muito séria.

Tempos depois, ela convidou-o para jantar . O gato, imponente e silencioso, olhou-o, fixamente, com aqueles olhos grandes, de um verde intenso, com frinchas amarelas e um risco negro ao centro e com uma sobranceria petulante que, se não fosse assustadora, seria até engraçada!
O João sentia-se minuciosamente observado e foi ficando tenso e um pouco amedrontado! Não conseguiu, sequer beijá-la ou, prender as mãos dela, nas suas! Ela sentiu-lhe a frieza e ele confessou-lhe que o gato o assustava, o intimidava e aborrecia!
Riram-se, sem alegria, num ambiente, subitamente pesado, ela preocupada e ele ansioso por se ir embora!
À saída, quando o João se preparava para vestir a gabardina, o gato que os seguira, silencioso, saltou como um relâmpago, e atirou-se a ele, com fúria!
O João libertou-se e, com a face direita a escorrer sangue, bateu a porta e correu, pelo jardinzinho , até ao carro!
Ela gritou de aflição e de horror e o gato, subitamente, manso e terno, enroscou-se nela que, sentada no chão, chorava e tremia, ainda aturdida, e lambeu-lhe as mãos , o rosto e as lágrimas que corriam, corriam, sem cessar, com a sua linguinha cor-de-rosa e áspera!

Nessa noite, como já acontecera antes, ela acordou sobressaltada, com a sensação de alguém a acariciá-lhe o rosto. Quase sem se mexer, acendeu a luz e viu o gato a olhar, ternamente para ela, com uma patinha macia e fofa, pousada no seu pescoço!
No ar espalhava-se, vivo e forte, o cheiro das cigarrilhas e o aroma do perfume preferido, do Afonso... Lembrou-se de uma frase que lera: " O perfume ou o aroma das suas mãos...", e estremeceu, aterrada!

O João nunca mais voltou lá a casa mas, o amor deles crescia firme e faziam planos, para um futuro em comum!
Evitavam, no entanto, falar no gato!

Em Maio, combinaram passar uns dias no Alentejo. Como ele tinha de ir, em trabalho, a Lisboa, ela iria lá ter com ele.
Ela preparou um pequeno saco de viagem e pediu à D. Hermínia, a vizinha, que viesse, a casa, ver o Afonso e cuidar dele, todos os dias.
O gato, tão reservado e quieto, adorava a D. Hermínia! Como o Afonso, pensou, num sobressalto!
O gato parecera-lhe, desde há uns dias, irritadiço e distante por isso, quando ele dormia, placidamente enroscado, no seu cantinho, na cama, ela saiu de casa, o mais silenciosamente possível, como uma criança marota que, desobedecendo à mãe, vai, às escondidas, brincar com as amigas, no parque.

Quando se sentou no carro, respirou fundo, de alívio. Depois, deitou a cabeça no volante e pensou: “Como é possível, eu ter medo do meu gato, do Afonso que adoro, que tem sido a minha companhia e sair de casa, sorrateira, como se estivesse a fazer algo de terrivelmente errado, algo de condenável?
Ligou a ignição, desconcertada e furiosa consigo própria, pela a sua infantilidade.
A deliciosa perspectiva daqueles dias no Alentejo, em sossego e nos braços do João, inundou-lhe a alma de uma alegria e de uma serenidade, que já não sentia há muito!
Sorriu e, nesse sorriso feliz, abraçou o futuro, de rosas e de ternura, que antevia para os dois!

De repente, sentiu uma presença e o aroma forte e vivo, do perfume e das cigarrilhas, no carro. Não, não era possível, estava completamente sozinha!
Olhou em volta e não viu ninguém mas, a verdade é que sentia, ali, uma presença forte, incomodativa, quase maligna! “Estou exausta”, pensou.
Olhou, então, para o retrovisor e viu, com espanto e pavor, o gato sentado no cimo do banco de trás, erecto, inexpressivo, os olhos enormes, brilhantes, incendiados numa labareda verde e amarela, fixos nela!
Aterrorizada, gritou “Afonso”, já sem saber se gritava pelo gato ou, pelo noivo morto, perdeu a direcção do carro e, numa vertigem de pânico e de horror, ainda viu o camião e ouviu o som estridente e desesperado de um claxon.
Mas, já não viu o salto do gato, nem o sentiu prender-se a si, fundindo-se, consigo, num profundo abraço, antes de se precipitar no abismo infinito, negro, e gelado do Nada!

MC

terça-feira, 14 de abril de 2009

" Imagens "

Diálogo entre Ulisses e Circe, construído com base no livro de poemas “ IMAGENS” de Ana Luísa Amaral.


Ulisses, na ilha Aeaea, (Eana), olha absorto e esfíngico, o mar que se desdobra em ondas de espuma, a seus pés, e brilha, sereno, ao sol.
Circe, bela e lânguida, aproxima-se.



C. – Ulisses... que se passa contigo? Pareces tão longe... tão perdido nesse labirinto de anseios, de emoções, de sentimentos, só teu e que, ultimamente, guardas só para ti! Que tens?

U. – Nada!

C. – Nada? Estás estranho, Ulisses! Fala comigo desse mundo que não conheço mas, onde te refugias... Se é um sonho, partilha-o comigo! Se é um pesadelo, partilha-o também! Se é uma visão, deixa-me mergulhar nela, contigo...

U. – Não podes! Não quero falar, Circe! Talvez logo...amanhã! Agora, deixa-me só!


Furiosa, Circe, a rainha dos mil feitiços, dos venenos e dos medonhos encantamentos, volta-lhe, abruptamente, as costas e começa a afastar-se.


U. -- Volta, Circe! Fica!

C. – Olha para mim, Ulisses e deixa que o teu olhar, agora, fugidio
encontre o meu olhar, toma a minha mão, entra no meu leito e vem acalmar o teu desassossego, na maciez morna e acetinada do meu corpo...

U. – Não mais sedução, rainha feiticeira! Mais não! Não posso permanecer, aqui, nesta ilha contigo!
Não me devias ter obrigado, com as tuas artimanhas e feitiços de amor, a ficar aqui, tanto tempo!

C. – Porquê? Inventa desculpas, Ulisses mas, não negues que me desejas; não negues que sou, para ti, uma visão de beleza e de irresistível tentação!
Não negues, Ulisses, que no meu leito, te fiz sentir um homem viril, perfeito e, depois, saciado! Não negues que, perdido nos meus braços, viveste aquele arrebatamento mágico, único, aquela plenitude que quase faz doer, de tão intensa, aquele êxtase, quase divino, em que só o Olimpo parece ser o limite...!

U. – Fui fraco, sim, sucumbi, como um rapazinho tonto, aos teus encantos feiticeiros e entreguei-me, loucamente, a ti! Eu sei e lamento-o!
Não sou teu inimigo mas, não te amo, Circe e nunca te amei!
É Penélope, a minha mulher que, torpemente, traí contigo, que amo e sempre amei, com todo o meu coração!
Ela, sim é a minha visão de beleza, a luz pura, poderosa e constante que ilumina os recantos mais sombrios da minha alma!

C. – Que fui eu, então, para ti, Ulisses?

U. – Tu, Circe, foste, durante tempo demais, a luz baça, maligna mas sedutora e encantatória, ainda assim, que me fascinou e encandeou, na exaltação doida dos sentidos! Tu foste a teia sensual, pesada de erotismo e feitiçaria, que urdiste, para me me seduzir e onde elanguesci e, tragicamente, me deixei enredar e prender!
Mas o encanto quebrou-se, Circe! Terminou!
E, é neste mar, onde o meu olhar se deslumbra e se perde que vou
encontrar o caminho de volta ao aconchego sereno e casto do meu lar, o caminho de volta ao amor e ao perdão de Penélope!
E, longe, muito longe de ti, Circe!
Não peço mais nada à vida!

Nota: Neste diálogo teriam de, obrigatoriamente, constar as seguintes palavras e expressões, que são parte, em discurso directo, do livro " Imagens": não quero; um sonho; nada; não mais"; porquê?; entra; uma visão; nunca; volta; fica; toma; inventa; talvez; mais não; terminou; não posso; permanecer; inimigo; a luz.

MC

A jarra de cristal...Josefa?

Não era uma rapariga atraente nem, particularmente simpática.
Trabalhava numa repartição das Finanças e, apesar de ser muito reservada, dava-se bem com todas as outras funcionárias. Era prestável e atenciosa! Vestia modestamente, não ía ao cabeleireiro, não se maquilhava e não se lhe conheciam amigos.
Não comentava os filmes ou, os livros do momento e nunca aceitava os convites das companheiras de trabalho, para uma saída à noite.
Parecia ter dificuldades económicas e poupava tudo o que podia! Comia, no escritório, num canto da sua secretária, o almoço frugal que trazia de casa.
As outras raparigas, às vezes convidavam-na, com o pretexto de uma qualquer celebração, para almoçar com elas, porque as incomodava a melancolia, o acanhamento e a pobreza envergonhada que julgavam advinhar na Josefa.
E, lamentavam a vida estreita e vazia daquela mulher ainda jovem mas, tão despojada, tão limitada, tão tristemente, solitária!

No entanto, a Josefa não era pobre! Tinha dinheiro, muito dinheiro, que herdara de uma velha tia de quem tratara com desvelo mas, com os olhos postos no testamento e na avultada herança que ela, por sua morte, esperava, avara e ansiosa!

Tinha, no apartamento onde morara com a tia, um pequeno cofre, aparafusado, num roupeiro, onde guardava, com reverência, algumas dezenas de notas, novas e tersas, só para ter o infinito prazer de as ver, de as tocar suavemente, de as cheirar, deliciada!
Despida, deitada na cama, era já um ritual seu, colocá-las sobre o rosto, sobre os seios, sobre a barriga e sobre as coxas.
Com os olhos fechados, muito quieta, a respiração um pouco opressa, sentia uma ansiedade esquisita, uma exaltação que quase fazia doer e o suor escorria, como se estivesse em fogo, deixando-lhe a pele viscosa e o cabelo empastado na nuca!
O seu corpo nunca tinha sido fonte de prazer para ninguém, nem ela nunca sentira aquele arrebatamento, aquela plenitude quase divina, de dois corpos que se fundem, no acto carnal de desejo e de, digamos, amor!
Mas, nesses momentos de intenso deleite, em que as notas pousadas, de leve, sobre si, pareciam ter dedos, que a acariciavam e lhe tocavam a pele com a sensualidade morna, fremente e erótica de um amante, era como se , sem ela saber, estivesse a viver uma impensável relação de amor e de sexo, com aqueles pedaços de papel, que a cobriam! Era, então, que lhes chamava queridas e sentia a profunda frustação de não as poder abraçar com força, contra o peito nú!
Era, certamente, uma perversidade mas, Josefa amava o dinheiro com a avidez, o encantamento e a luxúria com que se entregaria ao ser amado!
Eram lindas e coloridas as notas que, nos seus momentos de delírio, pareciam dedilhar, docemente, o seu corpo e que ela manuseava com um imenso cuidado e carinho!

Era, talvez, esse traço estranho, desagradável e perverso que se escondia na Josefa, que afastava as pessoas que conviviam com ela, sem que, elas próprias soubessem explicar o porquê da sua instintiva repulsa!

Um dia, uma das raparigas do escritório, a Inês, que comprara um apartamento, convidou-as para um pequeno jantar, no Sábado seguinte, para celebrar a a beleza da sua casa nova e o seu arrojo na compra!
Pensaram na Josefa, sempre só, e decidiram que ninguém levaria os namorados: era um jantar de mulheres!
A Inês mandaria vir pizzas, a Madalena, a Rita e a Sofia ofereceram-se para tratar das sobremesas, que teriam de ser variadas!
A Josefa não se ofereceu para levar nada, o que não surpreendeu ninguém e recusou participar no pequeno presente que todas queriam dar, em conjunto, dizendo que queria fazer uma surpresa!

A Inês e ela apanhavam, cada uma o seu autocarro, na mesma paragem.

Num fim de tarde, nessa semana, era ainda cedo e entretiveram-se a ver a cara e requintada loja de porcelanas e de cristais, que ficava mesmo em frente.
De repente, a Inês apontou para uma lindíssima e elegante jarra de cristal cor-de rosa e disse que um dia teria uma exactamente assim, fosse qual fosse o seu preço! Depois riu-se da sua tolice, despediu-se e correu para o autocarro que, entretanto, chegara.

A Josefa mal a ouvia! Desde o convite para o jantar, andava inquieta e preocupada com o presente, com a tal surpresa que prometera fazer! Não queria, isso não, gastar dinheiro!

Na Sexta-feira, antes de apanhar o autocarro, olhou, distraída para a montra da loja dos cristais e decidiu entrar. Talvez, quem sabe, encontrasse qualquer bugiganga pequenina e barata.
Quando entrou, viu, quase junto ao balcão, cinco pedaços de cristal cor-de–rosa que lhe lembraram, de imediato, a jarra da montra.
Josefa olhou, curiosa, para a empregada e disse:” Não me diga que estes pedaços, aqui caídos, são o que resta daquela linda jarra que esteve na montra?
“ Foi um cliente que a partiu! Felizmente, eu tinha outra em armazém mas, o descuido ficou-lhe caro! Levou uma jarra e pagou duas!”
A empregada, uma rapariguita com um aborrecimento mortal estampado no rosto, preparava-se para os apanhar os cinco pedaços quebrados quando, num relâmpago, a Josefa teve o que lhe pareceu ser uma ideia genial! Observou a empregada que lhe pareceu pouco esperta e muito contrariada por ter de estar ali, na loja, sem clientes!
Então, respirou fundo e disse: “ Ao ver estes pedaços de cristal, pensei pregar uma partida à minha irmã mais nova que tem estado insuportável. Poderia, por favor, pô-los na embalagem e fazer um embrulho bonito, como se a jarra estivesse perfeita e fosse um presente?
A empregada olhou para a Josefa com espanto e meio-desconfiada! Josefa apressou-se a dizer: “ Irmã mais nova, sabe? Fazia-lhe muito bem uma liçãozinha...!

Enquanto ela fazia o embrulho com um bonito papel e um vistoso laço com duas pequenas rosas de cetim presas, no centro, a Josefa foi passeando pela loja, sentindo uma excitação quase incontrolável que não a deixava estar parada, inundada por um imenso alívio e uma satisfação fantástica consigo própria!
“Foi uma sorte! Foi uma sorte!” repetia baixinho.

No Sábado, à noite, quando a Inês abriu a porta, foi uma Josefa quase sufocada de aflição e lavada em lágrimas, que lhe entrou , de rompante, pela casa dentro: “ Caí, Inês! Comprei-te aquela jarra de cristal cor-de–rosa de que tanto gostaste, lembras-te? Mas, tropecei ao descer o passeio, caí desamparada e a jarra partiu-se! Tenho a certeza, Inês, partiu-se! E agora...?
A Inês tentou acalmar a Josefa abraçando-a com afecto: “ A jarra de cristal... Josefa? Para mim? Sossega! O que interessa é a intenção e tu foste amorosa!
Mas, sabes, acho que a jarra está intacta! Não se partiu, vais ver! Aliás não se ouve o som de pedaços de cristal a chocalhar!”
E, abanou suavemente a caixa que permaneceu silenciosa!
Josefa empalideceu e ficou rígida! Não podia ser possível...

Inês, tirou o o laço e o papel devagar e com muito cuidado, como que, para saborear, por mais tempo, o momento delicioso de abrir um presente tão desejado! A jarra era tão linda!
Depois, com um gesto manso, abriu a caixa onde, perante o desapontamento da Inês, o assombro de todas e o olhar horrorizado da Josefa, se aninhavam, num nicho, em forma de jarra, forrado a papel de veludo azul, cinco pedaços de cristal cor-de-rosa, cada um dos quais, cuidadosamente, embrulhado em delicado papel de seda!

"A Luxúria é como a Avareza: quanto mais tesouros tem, mais sôfrega se torna"
(Montesquieu)

Luxúria/ Avareza( Pecados mortais)

MC