sábado, 21 de maio de 2016

A bata amarela - Saudades da vida.

A gente morre cheio de saudades da vida.
Mia Couto



Ali, agrilhoada à cama, ela.
Enfraquecida pela doença, mas aterradoramente lúcida....
 

Ela, ali, esqueleto vivo que a pela seca, amarela, quebradiça cobre, rosto exangue, olhar baço, um sorriso ténue, para quem a visita, num apego torrencial, à vida.
Um apego ávido, destemido, comovente, uma luta titânica, tumultuada, desigual, com uma inimiga feroz, implacável, matreira, que finge, maldosa, recuar, uns dias, umas horas, mas vence sempre: a morte.

A morte que ronda, medonha, ronda; a morte que espreita; a morte que espera; a morte que não tarda...

E ela ali, naquele apego sôfrego, à vida.
Um apego brutal, teimoso, incansável, mais forte do que toda a degradação que a consome, que a devora, que a mata. Minuto a minuto.

Quando parece que se entregou, que cedeu, que finalmente se rendeu, ela reage e ergue-se e sai do recanto de sombra, onde se exaure. E desesperadamente, luta. Corajosa, indómita! Osso e pele! Pele e osso!

Ela sozinha a impedir, desesperadamente, o desatar dos nós e dos laços.

Ela sozinha, inquieta, aterrada certamente, mas sempre guerreira, o coração a bater leve, tão leve, como coração de passarinho, no desconcerto do peito, mas ainda ao compasso de uma esperança vinda lá do fundo de si mesma, do fundo do sangue aguado, das entranhas doentes, da alma exausta.

E ela ali, já numa saudade infinita.

Para duas grandes Mulheres que, no meu serviço de voluntariado, atravessaram o meu caminho.
 

domingo, 15 de maio de 2016

Bata amarela - Regresso a Casa


Falei com ela na Segunda-feira. Ainda não tinha quarenta e cinco anos e estava muito doente. Uma doença feroz que, há muito tempo, a mantinha ali internada. Exausta, desligada e triste. Como se, perdida num amargo, desamparado negrume, estivesse a desistir.
Nesse dia,  surpreendeu-me.   Pareceu-me diferente. Com um brilhozinho nos olhos, disse-me que se sentia melhor e que, talvez em breve, fosse para casa. Falou-me da alegria de voltar para casa e, no rosto esquálido, perpassou uma breve cintilação de contida ansiedade. Voltar para casa. Para a família, para o jardim, para o cão.

Sorriu de leve e estendeu-me a mão magra e pálida.
Com as palavras sufocadas na garganta, obriguei-me, também, a sorrir e prendi-lhe a mão emaciada, nas minhas, como se a abraçasse. Na sua quase absoluta fragilidade, aquele era o abraço possível.

Na Quarta-feira, regressou a casa. Não à casa onde se enleavam os laços e se atavam e desatavam os nós da sua vida; não, onde no jardim nu, a terra pesada e escura se revolve e se prepara para uma profusa explosão de veludo, de cor, e de perfume; não, onde o cão,  ansioso,  ainda a espera para, num abraço, lhe contar o quanto as saudades dela o consumiram e doeram.
Mas, como previu, regressou a Casa.

 
Na minha bata amarela tenho dois bolsos. Num, guardo palavras, afagos, sorrisos e pequenas mentiras que não fazem mal e, talvez, possam dar algum alento, não sei. E, sobretudo, guardo silêncios. Aqueles delicados silêncios, de que também são feitas as palavras e, atrás dos quais, elas se escondem e se diluem, quando são de mais.

No outro bolso, guardo as perdas. Em dezasseis anos, são já  muitas,  as perdas.  Sentidas, todas. Dolorosas, algumas.
Ela lá está, serena, aconchegada, no bolso da minha bata amarela. Uma lembrança, cada dia, mais ténue. Um fio invisível, infinito, de ausência.

MC