Alunos do 1º ano da Faculdade de Medicina decidiram fazer um trabalho sobre o Serviço de Voluntariado no hospital.
Não sei porquê, pediram-me que conversasse com eles e respondesse às perguntas que certamente iriam fazer. Tarefa ingrata! O voluntariado não se diz, sente-se e faz-se! Não há receitas, nem teorias. É um trabalho difícil que, às vezes, desgasta emocionalmente, e dá, ao voluntário, a justa e tremenda medida da sua impotência, da sua inutilidade perante o sofrimento e a doença! Mas também muito gratificante! Pelo muito que se aprende! Pelo muito que se recebe!
Falei-lhes, por alto, das tarefas comezinhas que competem ao voluntário.
Preocupei-me, sim, em dizer-lhes que quem abraça este serviço, tem, essencialmente, de ter capacidade e paciência para ouvir. Há confissões, angústias e pesadelos que se contam a alguém de bata amarela, figura algo fantasmagórica, que o doente espera não encontrar no seu mundo lá fora, e a mais ninguém.
Disse-lhes que o voluntário lida, impotente e angustiado, não só com a doença e, muitas vezes, com a inexorável aproximação da morte, mas também com o medo, o terror que, como uma cobra, negra e sinuosa, se enrola, poderosa, na alma do doente, esmagando-o e quase destruindo os restos de uma esperança teimosa e débil. E, é esse fiozinho verde de esperança que se tem de manter vivo, ainda que bruxuleante! Com palavras confiantes num final feliz, com pequenas histórias de outros êxitos, em situações semelhantes, com pequenas mentiras...
Disse-lhes que não há regras no voluntariado porque cada caso é um caso. Daí a necessidade de adaptação à maneira de ser, à idade e à cultura do doente. Já ouvi dissertações muito interessantes e pitorescas sobre o plantio das pencas, dos grelos, das cebolas e das “rabas” que, penso, são rábanos, sobre a criação de coelhos e de galinhas e assisti a algumas aulas teóricas de culinária, recheadas de receitas e de segredos! Eu que não gosto nada de cozinhar...
Mas também já tive conversas maravilhosas sobre Literatura, Música, Cinema e... Futebol. Ainda não há muito tempo, foi com espanto que ouvi uma doente falar em Rosalia de Castro, escritora e poetisa galega, de quem, por mero acaso, tinha lido a biografia e uns poemas lindos. Outra falou-me de Mia Couto, que conhecia desde menino, pois tinha sido vizinha dele e dos pais, em Moçambique e foi um gosto enorme, comentar com ela a obra deste escritor africano, que adoro! Acabei mesmo por lhe oferecer o livro “Jesusalém”, um dos poucos dos seus livros que ela ainda não tinha comprado e que estava ansiosa por ler.
Disse-lhes que o voluntário deve ser cauteloso e evitar falar sobre religião. Este é um terreno delicado, movediço e perigoso! Deus não pode ser invocado, como uma muleta, quando as palavras não bastam ou ficam, teimosamente, presas na garganta....
A um ateu, não se pode dizer que Deus é grande, quando ele se sente tão mal, tão enfraquecido, tão desamparado e descrente de tudo! O dom da Fé será arrimo de muitos, mas, verdade seja, falta a tantos!
E, como dizer a uma jovem mãe, que se sente morrer dia a dia, hora a hora, que os desígnios de Deus são sempre benfazejos e que Ele faz tudo pelo melhor, quando ela, esgotada pela doença e já destroçada pela saudade, sabe que a sua ausência vai abrir, no coração dos seus meninos, um vazio tão fundo, tão sombrio e tão gelado que não há tempo que o suavize, não há sol que o ilumine, nem há incêndio que o aqueça? Tinhamos assistido, dias antes, a uma tristeza destas... Que dói muito, que revolta!
Disse-lhes que pensei, um dia, desistir deste trabalho porque aqueles doentes a quem inexplicavelmente, mais me afeiçoava, morriam. Alguns, sem que nada fizesse prever a sua morte.Cheguei a ter medo de me sentir mais atraída por este ou aquele doente, como se essa minha imediata inclinação afectuosa fosse um prenúncio de triste desenlace. Com o tempo compreendi que eram apenas as contigências da doença, da vida, dos afectos, sei lá, e recomendei-lhes a leitura de “Afinidades Electivas” de Goethe. Porque essas afinidades, amorosas, no caso do livro, mas não só, existem! Há pessoas por quem sentimos uma empatia irresistível.
Disse-lhes que é impossível não temer a morte, não pensar na morte, quando se está internado no hospital. O doente é um ser muito fragilizado, cheio de dúvidas e de terrores, mesmo que finja confiança e optimismo, sempre à espera de uma palavra de alento, especialmente, do seu médico que, nesses dias de debilidade e de insegurança toma a forma de um deus poderoso!
E, atrevi-me a indicar-lhes três livros, antigos mas belíssimos, que eles não conheciam, que li ainda muito jovenzinha e que já reli, mais do que uma vez e sempre com o mesmo encantamento: “Olhai os lírios do campo” de Erico Veríssimo, “ A cidadela” de A.J. Cronin e “Retalhos da vida de um médico” de Fernando Namora, um autor injustamente, muito esquecido!
Não sei se cumpri, inteiramente, a tarefa de que fui incumbida, mas tentei dizer a esses jovens, que o voluntário apenas pode suavizar alguns momentos dos dias tristes do doente, ouvindo-os, estendendo-lhes as mãos e ajudando-os a manter a esperança. Por outro lado, tentei dar a esses futuros médicos, a noção da suprema importância da humanização no hospital, do seu compassivo debruçar sobre o ser humano que se esconde atrás do caso clínico, aliados ao seu saber e à sua perícia, no exercício da sua profissão, que, muito mais do que isso, é uma preciosa e nobre missão.
MC
Para reflectir, aqui deixo um texto muito interessante, que encontrei por aí:
“É difícil não pensar em morte quando se está num hospital.
Talvez porque seja o assunto proibido. Não falamos de morte. Só quando é absolutamente necessário.
Mas se pensarmos bem, é a morte que dá sentido à vida.
O que aconteceria se ninguém nunca morresse?
Os dias iam passar e passar e as coisas não teriam tanto sentido. “Correr atrás” para quê? Grandes feitos, com que propósito?
Saber que a vida é curta, que a qualquer momento ela pode terminar, faz todas as demais coisas ganharem importância.
É no leito de morte, ou na iminência da morte que damos a valor aos pequenos prazeres da vida, que perdoamos os desafectos, que confessamos nossas falhas e pedimos absolvição. Faríamos isso se nunca fossemos morrer?
A morte dá cor à vida. Humaniza as pessoas.
Não é estranho pensar que é justamente a morte que valoriza a vida?
É um pensamento meio louco, concordo.
Eu não tenho medo de morrer – tenho medo sim, da forma como vou morrer. E tenho medo, também, de morrer antes de ter vivido tudo que eu quero viver.
Viver até ver meus netos terem netos…
Até não ver mais graça no pôr do sol.
Até não sentir mais amor por nada nem ninguém.
Porque no dia que eu for incapaz de me emocionar com os milagres diários e a magia da vida, é hora da morte me levar.
Eu sei, falar de morte de dentro de um hospital é mau agouro.”