quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

O perú


Numa planície , viviam um Pavão e um Urubu. Certo dia, o Pavão reparando bem no Urubu, pensou: "Sou a ave mais bonita do mundo animal , tenho uma belíssima plumagem, macia, colorida e exuberante, porém, nem voar eu posso, de modo a mostrar, a todos, a minha beleza! Feliz é o Urubu que é livre para voar, para onde o vento o levar!
O Urubu, por sua vez, também reflectia, no alto de uma árvore: "Que infeliz ave sou eu, a mais feia de todo o reino animal e ainda tenho que voar e ser visto por todos! Quem me dera ser belo e vistoso tal qual aquele Pavão!
Foi então que ambas as aves tiveram uma brilhante ideia e juntaram-se para discorrer sobre ela: cruzarem-se seria óptimo para ambos, gerando, assim, um descendente que tivesse a beleza e a graciosidade de um Pavão e voasse, livre, como um Urubu .
Cruzaram-se, cheios de esperança, e nasceu o Perú! Que é feio e não voa!

Moral da história: Se a situação não está boa, é melhor não tentar compor, porque pode ficar pior!

Os Bichos na Mitologia

MC

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Natal de quem?

Mulheres atarefadas
Tratam do bacalhau,
Do peru, das rabanadas.

-- Não esqueças o colorau,
O azeite e o bolo-rei!

- Está bem, eu sei!

- E as garrafas de vinho?

- Já vão a caminho!

- Oh mãe, estou pr'a ver
Que prendas vou ter.
Que prendas terei?

- Não sei, não sei...

Num qualquer lado,
Esquecido, abandonado,
O Deus-Menino
Murmura baixinho:

- Então e Eu,
Toda a gente Me esqueceu?


Senta-se a família
À volta da mesa.
Não há sinal da cruz,
Nem oração ou reza.
Tilintam copos e talheres.
Crianças, homens e mulheres
Em eufórico ambiente.
Lá fora tão frio,
Cá dentro tão quente!

Algures esquecido,
Ouve-se Jesus dorido:
- Então e Eu,
Toda a gente Me esqueceu?


Rasgam-se embrulhos,
Admiram-se as prendas,
Aumentam os barulhos
Com mais oferendas.
Amontoam-se sacos e papeis
Sem regras nem leis.
E Cristo Menino
A fazer beicinho:
- Então e Eu,
Toda a gente Me esqueceu?


O sono está a chegar.
Tantos restos por mesa e chão!
Cada um vai transportar
Bem-estar no coração.
A noite vai terminar
E o Menino, quase a chorar:
- Então e Eu,
Toda a gente Me esqueceu?

Foi a festa do Meu Natal
E, do princípio ao fim,
Quem se lembrou de Mim?
Não tive tecto nem afecto!

Em tudo, tudo, eu medito
E pergunto no fechar da luz:

- Foi este o Natal de Jesus?!!!


(João Coelho dos Santos
in Lágrima do Mar - 1996)

Natal

Nasce mais uma vez,
Menino Deus!
Não faltes, que me faltas
Neste inverno gelado.
Nasce nu e sagrado
No meu poema,
Se não tens um presépio
Mais agasalhado.
Nasce e fica comigo
Secretamente,
Até que eu, infiel, te denuncie
Aos Herodes do mundo.
Até que eu, incapaz
De me calar,
Devasse os versos e destrua a paz
Que agora sinto, só de te sonhar.

(Miguel Torga)

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

O Pavão e a ursa


Júpiter era um amante do sexo feminino e, por esse motivo, Juno, sua esposa e rainha dos deuses, representada por um pavão, possuía muitas rivais, entre elas, a bela Calisto, que Juno, enciumada, transformou numa ursa. Calisto passou, assim, a viver sozinha com medo dos caçadores e das outras feras da floresta, esquecendo-se de que ela própria era uma.
Um dia, Calisto reconheceu, num caçador, o seu filho Arcas. Esquecida que era uma ursa felpuda, ela quis dirigir-se a ele e abraçá-lo ternamente, como a mãe amorosa que era, mas Arcas, ao ver aquele enorme animal correr direito a si, assustou-se e já erguera sua lança para matá-lo, quando Júpiter, vendo a desgraça que estava para acontecer, afastou-os e lançou-os ao céu, transformando-os nas constelações de Ursa Maior e Ursa Menor.
Juno, enfurecida por Júpiter ter dado tal privilégio à sua rival, sai à procura de Tétis e Oceanus, as antigas divindades do mar. Conta-lhes que essas estrelas, pedaços flutuantes de luz e de brilho no céu, são a eternização de uma das mais dolorosas ofensas que Júpiter lhe fizera, e pede para que eles não deixem que essas constelações se escondam nas suas águas. É por isso que a Ursa Maior e a Ursa Menor se movem em círculo no céu mas nunca descem por trás do oceano, como as outras estrelas.

Os bichos na Mitologia


MC

sábado, 19 de dezembro de 2009

As andorinhas

Era uma casa térrea, pintada de branco, com um jardinzinho, bem cuidado, à frente e uma pequena horta, com três árvores de fruto, atrás.
À entrada, na parede branca, pousavam, em fila, da maior para a mais pequena, seis andorinhas toscas, de barro, como um símbolo ingénuo de alegre harmonia familiar, como um singelo prenúncio de uma Primavera eterna naquele lar.
A casa estava mobilada sem luxos, mas com um gosto simples, onde não faltavam os naperons de renda, tecidos com mil pacientes laçadas e sempre meticulosamente limpa.
Na cozinha, uma mulher baixa e roliça, preparava o jantar. Curvava-se, ligeiramente, para a banca e desprendia-se dela, a aura cinzenta de um infinito cansaço e de um triste desalento, a boca sumida num rictus de amargura.
À entrada, soaram uns passos pesados e, ligeiramente incertos.
Nesse instante, uma incontrolável aversão, mesclada de medo e de uma imensa incerteza, submergiu-a.
Pouco depois, entrou, de rompante, na cozinha, um homem de estatura mediana, gordo, com os olhos injectados, pequeninos e piscos, e o pescoço baixo, um rolo de gordura lustroso e vermelho, como o de um porco. O cabelo grisalho, ralo mas comprido, colava-se, em desordem, à testa.
Ela percebeu, de imediato, que ele já estava meio bêbedo. Como sempre!
“ O jantar está pronto?” rosnou, grosseiro.
“ Está quase!” respondeu ela, sem olhar para ele, o coração a bater, num desatino, muito quieta, junto do fogão.
Parecia ainda mais baixa, encolhida e curvada sobre o tacho que fervia. Estava exausta! Estava farta! Dele, daquela amargura, da vida!
“ Não sei o que fazes todo o dia, em casa, mulher! Nem agora que estás desempregada, as coisas estão prontas a horas! És uma preguiçosa, uma relaxada, é o que tu és!”
Ela suspirou e não respondeu.
Estava, realmente, desempregada, há três meses, mas continuava a trabalhar! Trabalhava, talvez, ainda mais duramente, a dias e a lavar as escadas de uns escritórios.
“ Faço o que posso e não te peço dinheiro, pois não? Não te peço nada, aliás!”
Ele ignorou-a e ela começou a servir o jantar.
Já sentado, ele comeu,sôfrego, a sopa e logo a seguir a massa guisada com frango, sem esperar por ela.
Ao vê-lo sorver a comida, como um animal esfaimado, uma onda de nojo e de desesperado ódio, inundou-a, sufocando-a.

Tinham dois filhos.
A filha, uma rapariga de dezanove anos, trabalhava, para seu desgosto, num bar, à noite. A mãe mal a via. Entrava em casa, já alta manhã. Dormia horas a fio e só se dignava sair do quarto, para comer e tomar banho. Falava continuamente, ao telemóvel e estendia, na mais absoluta desarrumação, as roupas e os sapatos, pelo quarto.
Curiosamente, o pai não a enfrentava! Desde sempre, tivera para com a filha, gestos, inesperados nele, de delicada doçura e de meiguice! Ela tinha sido sempre a sua menina, a quem perdoava tudo, a quem permitia tudo! Levava-a ao parque, ao circo, ao cinema e comprava-lhe guloseimas, brinquedos e revistas.
Já crescida, quando se tentara impor, ela enfrentara-o, provocadora, uma luz estranha, maligna, no olhar. E ele calara-se submisso e sumira-se, sorrateiro!
O filho, um bom rapaz, inteligente e sensato, era a luz dos seus olhos, o seu enlevo e o seu orgulho! E, como a sua ternura, o calor do seu sorriso lhe faziam falta! Tanta falta!
Trabalhava em Espanha e mandava-lhe, sem o pai saber, algum dinheiro, dádiva preciosa para equilibrar as despesas, em casa.
Como se lesse os seus pensamentos, ele disse, com incontida raiva: “ Aquele ingrato do Alberto não diz nada! Lá está em Espanha, a viver como um lorde. Quando cá veio, no Verão, parecia um principe, vaidoso e tolo!” E, a inveja que ressumava, ferina, das suas palavras, atingiu-a como uma bofetada.
“ Se ele está bem, é porque trabalha muito. E, telefona, todas as semanas, bem sabes!” disse ela com os olhos, rasos de lágrimas, uma fúria danada a crescer, impetuosa, dentro dela.
“ Telefona, todas as semanas? E dinheiro? Manda dinheiro para casa? Não é obrigação dele, mandar dinheiro para casa?”
“Obrigação dele, mandar dinheiro para casa? Porquê? Ele é um homem de bem e um bom filho! Tu, que és forte e saudável, porque não deixas de beber e trabalhas, a sério, como ele? Como eu, mesmo desempregada, como não te cansas de mo lembrar?”
Ele levantou-se, os olhos faiscantes de cólera, o rosto torcido de ódio, o pescoço arroxeado, as veias dilatadas, a latejarem, ameaçadoramente!
O diabo, ele lembra-me o diabo, do meu catecismo, quando eu era criança, pensou ela, num sobressalto aflito!
Um ronquido irado escapou-se-lhe, então, da garganta e ele fez menção de lhe atirar com o copo, que tinha mão, ao rosto, mas não se atreveu! O olhar dela, agora duro e frio, donde pareciam desprender-se chispas acesas de ódio e de desprezo, fixava-o desafiador!
Descontrolado, atirou o copo ao chão que se estilhaçou em mil pedaços de raiva! Depois, com um esgar de maldade, puxou uma ponta da toalha e a louça que estava em cima da mesa, partiu-se, em mil bocados.
Com a casquinada estrídula e alvar, de um vencido, saíu, cambaleante, da cozinha.
Poucos minutos mais tarde, a porta da frente bateu com tanta força que a casa abanou e pareceu desconjuntar-se. Ela estremeceu assustada mas, em seguida, respirou de alívio.
"Logo vem a cair de bêbedo! Como sempre!" E, exausta, encolheu os ombros!
A filha passou por ela, numa pressa indiferente, como se não se tivesse apercebido de nada. “ Até amanhã, mãe!” E dirigiu-se para a porta da rua.
Vestia uns jeans muito justos, um top muito decotado, que também lhe deixava parte da barriga de fora, um casaco de curto a imitar pele, o rosto, ainda muito jovem, carregado de maquilhagem. Atrás de si deixou o rasto forte de um perfume barato. Era tudo barato e vulgar nela! Ela própria, a sua filha, era uma prostituta barata e vulgar!
Abanou a cabeça e prendeu as lágrimas que se amontoavam no seu coração, que insistiam, teimosas, em subir e ameaçavam estrangulá-la, num nó apertado!
No súbito silêncio da casa, ela respirou fundo e começou a varrer os estilhaços dos copos e os cacos da louça, como destroços das vidas, que as telhas da sua casa encobriam, e que, agora, juncavam o chão da cozinha.

Lá fora, pousadas, em fila, na parede branca, da maior para a mais pequena, como um símbolo ingénuo de alegre harmonia familiar, como um singelo prenúncio, de uma Primavera eterna naquele lar, as inocentes andorinhas de barro continuavam, imperturbáveis, o seu infinito e infantigável voo, sem saírem do mesmo sítio!

MC

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

O Pavão e a bezerra











Juno, também conhecida como Hera na mitologia grega, a esposa de Júpiter é a rainha dos deuses. É representada pelo pavão, a sua ave favorita.

Júpiter era um amante do sexo feminino e, por esse motivo, Juno possuía muitas rivais, entre elas, a bela Io, que Júpiter, para defender de Juno, transforma numa bezerra. Juno, desconfiada, pede a bezerra de presente. Ora, Júpiter não podia negar um presente tão insignificante a sua mulher, e então, pesaroso, entrega a bezerra a Juno que a coloca sob os cuidados de Argos, um monstro de muitos olhos. Como Argos tinha cem olhos e nunca fechava mais do que dois para dormir, vigiava Io dia e noite.
Júpiter, perturbado pelo sofrimento da amante, pede a Mercúrio que mate Argos. Com músicas e histórias, Mercúrio consegue fazer com que Argos feche seus cem olhos e corta-lhe a cabeça. Juno entristecida recolhe os olhos que haviam perdido toda a luz e coloca-os na cauda de seu pavão, onde permanecem até hoje.

Os bichos na Mitologia



MC

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Confissões de uma cobaia humana

Ainda não nasci, nem sei quando vou nascer. Ainda não vejo, não conheço mas, já ouço tudo!
Sei, por isso, que, juntamente com a minha mãe, sou uma cobaia humana. Co-bai-a, gosto deste som!
A minha mãe tem o vírus da Sida! Ouvi-a contar que foi infectada pelo meu pai, um drogado manhoso. Eu não sei o que é um pai, nem sabia que tinha um, mas parece que pai é coisa ruim que traz desgraça! Também não sei o que é drogado manhoso mas, coisa boa, não pode ser!
Estamos as duas a experimentar um medicamento novo, que trata e pode impedir a transmissão da Sida, a doença da minha mãe, para mim e eu serei saudável.
Para que isso aconteça, somos cobaias humanas! Não sei o que é uma cobaia mas, deve ser bom, pelo menos, acho que sempre será melhor do que pai!
Sinto-me muito confortável, neste ambiente quentinho e aquoso da barriga da minha mãe embora, uma vez por outra, me tenha sentido mal, muito inquieta e aflita!
Sei tudo isto, porque ouvi a minha mãe dizer ao senhor doutor, (não sei o que é um senhor, nem sei o que é doutor), que me sente inquieta e aflita.
Ele disse-lhe que é normal e que estou a crescer cheia de energia.
Se calhar, energia são umas espetadelas fininhas que fazem doer, e os meus pontapés, quando me apetece mudar de posição!
A minha mãe diz que sou uma menina e que me vai comprar roupinhas bonitas, com lacinhos e um bercinho branco e cor-de-rosa, com o dinheiro que lhe deram para deixar experimentar o medicamento novo, nela e em mim.
Parece que era pobre mas, agora está tranquila e feliz! Acho que pobre é uma outra doença que ela também tinha mas o dinheiro, que, parece, é um medicamento muito bom, curou-a!
Ouço-a dizer que não me vai faltar nada, vou ter muitos peluches fofinhos, um quarto branco e cheio de luz!

Não sei o que é ser menina, não sei o que são lacinhos, não sei o que é o branco, nem sei o que são peluches. O que será a luz? E, fofinho, o que será?
Pela vibração da voz e do riso da minha mãe, deve ser tudo, assim muito quentinho, muito suave, como a barriga dela e, por tudo isso, estou ansiosa por nascer!
Mas, de há umas semanas para cá, ela não se tem sentido bem e eu também não. Ouvi-a dizer que está assustada e tem medo, por mim e por ela! Por sermos cobaias humanas! Mas, eu acho que deve ser bom ser cobaia, afinal, foi ela que quis!
Eu ouvi o doutor, (doutor faz-me lembrar pai!), dizer-lhe que ela sabia, perfeitamente, o que fazia quando assinou o contrato! Não gosto deste som: con-tra-to! Magoa, quando o ouço! Não é macio, como bercinho, cor-de–rosa ou roupinhas!
Senti que ela estava nervosa e ele disse-lhe para ter paciência, que esse mal-estar, (também não sei o que é um mal-estar!), não tem importância, vai tudo correr bem, ela vai ficar melhor e eu vou ser uma menina saudável! Saudável, eu acho que deve ser como o ninho macio, onde que me estendo e me enrolo!
Às vezes, a minha mãe diz-me, muito baixinho, que espera que eu tenha cabelo loiro e olhos azuis, como ela.
E, eu, embora não tenha a mínima ideia do que sejam cabelo, olhos, loiro e azuis, estou ansiosa por ter o cabelo loiro e os olhos azuis , para ser igualzinha a ela!
A minha mãe costuma cantar para mim e eu ficava muito quieta, só para a ouvir! Ultimamente, tenho andado muito agitada e, mesmo quando ela canta, já não me aquieto, dou pontapés e revolvo-me, revolvo-me, no ninho morno e sedoso, onde me aconchego! A voz da minha mãe já não suaviza estes picos fininhos, que me espetam tanto...
Sei que não estou bem, porque foi, exactamente isso, que a ouvi dizer ao doutor, quando também lhe disse que está farta de sermos cobaias humanas, que nunca devia ter assinado o contrato, (este som magoa!) e preferia nunca não ter recebido dinheiro nenhum!
Acho que, agora, preferia, mesmo, ter ainda aquela doença que se chama pobre, porque afinal isto de ser cobaia é que me tem feito mal! A mim e a ela!
Hoje, ouvi a minha mãe falar muito alto com o doutor, (não gosto dele!), que falou ainda mais alto e disse-lhe: “Cale-se!” A minha mãe não disse mais nada, mas chorou, que eu ainda a ouvi, embora um bocadinho ao longe, o que é estranho, porque estamos sempre muito juntinhas...!
De repente, apercebo-me que nem sequer me revolvo, ou dou pontapés! Já mal consigo respirar ou mexer-me Estou muito cansada!
Já pensei que talvez esteja assim porque estou, mesmo, para nascer e poderei, então, rebolar-me nos lacinhos cor-de–rosa, no bercinho, nos peluches e na luz! Gosto deste som: luz!
Se for isso, fico muito contente porque vou, enfim, ver o rosto da minha mãe e tocar e sentir o cheiro da pele dela. Ouvi-la, já não é muito importante porque já lhe conheço a voz e o riso e o choro.
Mas não! Não devo estar, ainda, a nascer! E, estou tão ansiosa por nascer...
Mesmo agora estou a ouvi-la gritar:” Doutor, que me deu para tomar? Porque me convenceu a ser cobaia e, comigo, a minha filha, desse medicamento novo, se não o conhecia, se não tinha a certeza de nada? Não sinto o meu bebé! A minha menina morreu! Posso não lhe ter transmitido a Sida, mas matei-a!”
Não sei o que é matar, nem quero saber! Estou muito cansada!
Continuo sem saber, realmente, o que é ser cobaia mas, seja o que for, agora sei, que não é bom! Estou muito cansada e tenho muito frio, tanto frio, apesar da barriga da minha mãe ser muito quentinha!
Para falar verdade, também não sei o que é morrer! Ou, talvez saiba!
Porque, se morrer, é não respirar, se morrer, é deixar de ouvir, se morrer é este indiferente e gelado abandono, então...morri!

Nota:Este texto, que pretende ser uma sentida homenagem a tantas vítimas inocentes de um doloroso flagelo, não foi lido, na sessão de 9/12 e ainda bem, porque o seu registo, que é o meu registo, é completamente diferente dos óptimos textos, que ouvi ler.

MC

domingo, 6 de dezembro de 2009

Uma vida

O quarto estava escuro, cheirava a mofo, a suor, a corpo mal lavado e a doença.
No meio, sobressaía a cama, onde mal se vislumbrava um vulto, sob as cobertas enxovalhadas.
Marta aproximou-se. Sobre a almofada, salpicada de nódoas de sangue e de pus, descansava uma cabeça mirrada, com o cabelo fino e ralo, em desordem, o rosto desfigurado, a pele amarela e enrugada. Na dobra do lençol encardido, descansava uma mão grande, descarnada, coberta de manchas castanhas.
Marta debruçou-se sobre a cama e viu uns olhos escuros, brilhantes de febre, fixarem-se nos seus. A vida que ainda teimava resistir, naquele corpo em ruínas, parecia ter-se concentrado, naqueles olhos remelosos, com pálpebras vermelhas e purulentas.
Ao inclinar-se, Marta quase pousou a mão no lençol áspero e os dedos esguios e ossudos, com unhas compridas, como garras, esgravataram, de leve, numa tentativa aflita para a alcançarem. Ela retirou a mão bruscamente, assustada e com repugnância.
Cheirava a urina infecta, aos fluídos escuros e pútridos que enchiam sacos pendurados ao lado da cama e, sobretudo, cheirava a abandono e a solidão!
Os olhos escuros, brilhantes de febre continuavam fixos nela. Seria num apelo ou, seria aquele, um último lampejo de maldade?
Ela sentou-se, recostou-se no sofá duro e desconfortável e os olhos vermelhos, orlados de pus, fecharam-se devagarinho...

Marta era a rapariga mais bonita do bairro. Alegre, ladina e estuante de vida, tinha uma graça e uma beleza que despertava acesas paixões.
António era um rapaz sem grandes atractivos físicos, calado, teimoso e, diziam, com mau feitio.
No dia que o conheceu, Marta apaixonou-se, irremediavelmente, por ele que, em silêncio, já há muito, morria de amores por ela!
Eram, no entanto, tão diferentes, que aquele namoro foi um espanto, para todos.
Marta tentou ajustar o corpo ao sofá e, recordou, com umestremecimento, o dia do casamento: um dia bonito e luminoso! Um dia de rosas e de alegres girassóis! Girassóis altos, radiosos, vibrantes de cor, virados para a luz! Mil sóis a brilharem só para ela!
Foram felizes mas, o nascimento do filho, o Ruizinho, marcou um subtil ponto de viragem no casamento, como se um dos nós que os prendia, se tivesse tornado lasso ou se tivesse mesmo desatado.
E, o António começou a mudar! Tornou-se ainda mais calado, mais frio, mesmo irascível! Distanciou-se e fechou-se num mundo só dele!
A vida estava cada vez mais dificil. António era ambicioso, queria ser rico e decidiu ir trabalhar para a África do Sul, em busca de fortuna!
A sua partida, se, até certo ponto, foi um alívio, foi também uma tristeza! Ficara um vazio. Abrira-se no coração de Marta um buraco pequenino, insistente, incomodativo! Era talvez saudade! Apesar de tudo!
Ela escrevia-lhe muitas vezes. Ele, só de vez em quando, escrevia umas linhas e mandava-lhe algum dinheiro! Que, mesmo sendo pouco, era uma dádiva.
Os dias arrastavam-se. Marta trabalhava numa fábrica e, ao Sábado, fazia limpeza em casa de uma das patroas. Sentia-se cansada mas não lhes faltava nada e o Ruizinho era um bálsamo e a sua companhia.
Quatro anos depois, o António escreveu-lhe a propôr-lhe que fosse ter com ele a África do Sul, onde, dizia, tinha, agora, uma bonita fazenda e vivia bem.
Com o coração a transbordar de alegria, tudo, em seu redor, se transformou num campo vasto de girassóis altos, radiosos, vibrantes de cor, virados para a luz. Mil sóis a brilharem, de novo, só para ela!
E aquela carta fria, quase formal, fez-se um poema, fez-se um hino, fez-se uma esplendorosa sinfonia!
Marta embarcou com o filho, cheia de esperança e de sonhos! O Ruizinho tinha crescido, era um menino desenvolto, bonito e inteligente e o pai iria, certamente, gostar muito dele!
A viagem de avião foi longa e penosa! Fechada naquele pássaro de aço, enorme, tolhida numa teia densa, de medo e de insegurança, do que iria encontrar, quase se arrependeu de ter saído da sua terra!

Já no aeroporto de Johannesburg, Marta, ainda que ligeiramente apreensiva, desembarcou com o coração a repicar de esperança e ansiosa por se lançar nos braços fortes de António! Para começarem uma vida nova, num país novo, tão diferente, tão colorido, tão luminoso, a cheirar a vida e a sol!
No aeroporto, de mão dada com o Ruizinho, sentiu-se, subitamente, perdida e inquieta, porque não via o António, em lado nenhum.
Começava a entrar em pânico, quando um homem mestiço, ainda jovem, se aproximou dela e perguntou: “ D. Marta Medeiros?”
“ Sim, sou eu”, respondeu com espanto. “ Eu sou o João Chipenda, o capataz, da fazenda da D. Mary Anne Tyler e sou eu que vou levar a senhora e o menino, até lá. O sr. Medeiros não pôde vir.”
Um imenso desapontamento estampou-se-lhe no rosto bonito e uma tremenda confusão e uma infinita tristeza desceram sobre ela, envolvendo-a num manto de gelo que a paralisou!
“ Não tenha receio,D. Marta! Ainda hoje, estaremos na fazenda!”, disse João com simpatia. Ela agradeceu e pareceu-lhe vislumbrar, nos olhos daquele desconhecido, uns laivos de comiseração que a assustaram.
A viagem de jeep foi longa, parecia nunca mais acabar e o nome Mary Anne Tyler pairava no seu cérebro, como uma nuvem negra a ameaçar temporal e desgraça!
Quando chegaram a Bethlehem, Marta estava exausta, tinha o corpo dorido, a cabeça meio-zonza e uma expectante ansiedade oprimia-lhe o coração.
Então, avistou António na enorme varanda, de uma casa ampla e ensolarada.
“O meu marido, a minha nova casa, ali, já tão perto, à minha espera!”, pensou Marta, com alegria e nervosismo, a tristeza e o cansaço já esquecidos!
Como uma noiva, na noite do casamento, Marta tremia de embaraço e de excitação, antecipando, numa trepidação de menina apaixonada, os abraços e os beijos do marido!
Mas, António recebeu-a friamente e ignorou o filho a quem não dirigiu um sorriso ou, uma palavra.
A seu lado apareceu uma mulher forte, sardenta e loira que ele abraçou pela cintura e que a fixou, curiosa, com uns olhos inexpressivos, de um azul deslavado!
Era Mary Anne, a mulher com quem António vivia e a quem parecia amar.
E, mesmo ali, Marta ficou a saber que seria uma espécie de governanta: orientaria e ajudaria na lida da casa e, como boa cozinheira que era, ocupar-se-ía da preparação das refeições.
Atónita, coberta de suor, morta de humilhação, destroçadas as suas expectativas de dias felizes, gritou que era ela a mulher dele mas, António, empertigado e arrogante, voltou-lhe as costas.
Estupidificada de assombro e de dor, Marta deixou-se levar para o quarto que partilharia com o filho, nos anexos da casa grande.
Sozinha, presa numa revolta brutal que parecia envenená-la, Marta, numa agonia, vomitou uma aguadilha amarga, verde e amarela, e chorou! Chorou incontrolavelmente!

Mary Anne era uma mulher branda e desligada, que parecia desconfortável na presença dela. Sentada na varanda, sombreada por exuberantes buganvílias, que se entrelaçavam, numa explosão de cor, gostava de ler avidamente os jornais e as revistas que recebia, regularmente, de Johannesburg, de passar um tempo infinito a arranjar e a pintar as unhas e jogar a canasta, duas vezes por semana, com três amigas, que viviam em fazendas vizinhas. Não era simpática mas, não era autoritária, nem exigente.
António, porém, parecia não ver Marta, não lhe dirigia palavra e, quando o fazia, era ríspido, sobranceiro e rude.
Com Mary Anne era, ostensivamente, terno, solícito, mesmo deferente!
O filho foi obrigado a trabalhar na fazenda e não ía à escola. Marta trabalhava incansavelmente, preparava refeições para os dois e para os muitos amigos que estavam sempre a receber. A qualidade e variedade da sua comida tornaram-se conhecidas e muito apreciadas! Contudo, não tomava as refeições que preparava, à mesa com eles, o que até era uma benesse, nem recebia qualquer salário, o que era uma injustiça!
Soube, entretanto, como presumira, que a fazenda era de Mary Anne. Depois da morte do marido, num terrível acidente, nunca inteiramente esclarecido, António, que trabalhava na fazenda, insinuara-se, assumira-se, um ano mais tarde, como senhor da casa e soubera tornar-se imprescindível, na gestão dos negócios!
Marta sentia-se como um pequeno rato que, imprudente e indefeso, mordera o pedacinho de queijo que servia de engodo e ficara, mortalmente, preso na ratoeira!
O isco que ela, sôfrega, mordera, tinha sido a esperança de ser feliz, ter uma vida famíliar equilibrada, feita de afecto, de alegria e de companheirismo! E, enfeitada de girassóis!
E, como abundavam girassóis, naquela terra! Girassóis altos, radiosos, vibrantes de cor, virados para a luz! Mas, esses mil sóis amarelos não brilhavam para ela!
Marta não tinha dinheiro nem conhecia ninguém a quem pudesse pedir ajuda. Nem mesmo em Portugal!
O ódio e o nojo que sentia por aquele homem cresciam... cresciam... Um ódio profundo que lhe preenchia a única fantasia que lhe era permitido ter: vê-lo morto!
Desejou-lhe, todos os dias, ardentemente, a morte! Uma morte lenta, dolorosa, solitária! Pensou, até, matá-lo! Mas, abafou esse pensamento negro, dentro de si: matá-lo seria perder-se e perder, magoar o filho! E isso, nunca!
Entretanto, António parecia, agora, segui-la, guloso, com os olhos. Aparecia-lhe, de repente, nos corredores, na cozinha, pelos cantos da casa. Quando a apanhava sozinha, agarrava-a, tentava apalpar-lhe os seios, abrir-lhe a blusa e meter-lhe a mão por baixo da saia, tocando-a, conspurcando-a!
Enojada, Marta gritava e, como uma enguia enfurecida, fugia-lhe por entre os dedos.
Um dia, ao entardecer, quando ela, como de costume, ía a entrar no quarto, para refrescar o rosto e dar um jeito ao cabelo, ele surgiu-lhe de um canto, prendeu-a, com violência e fechou a porta à chave. Marta gritou. António, meio louco, fora de si, talvez bêbedo, continuou a prendê-la entre os seus braços fortes, bateu-lhe para a dominar e rasgou-lhe a blusa. “ És minha, és minha e faço de ti e contigo o que eu quiser, ouviste?”
Estarrecida, Marta gritou com a força de uma desmedida raiva e ele tapou-lhe a boca com a mão, sufocando-a.
De repente, ouviu-se a voz do João, o capataz, gritar: “ D. Marta, o que se passa? Abra a porta! Mrs. Mary Anne Tyler anda a passear no jardim, aqui perto! Vou chamá-la!”
António, subitamente quieto, olhou esgazeado para a porta, largou-a e atirou-a, violentamente para o chão. Depois, como um animal acuado, perdeu-se, cobarde e rasteiro, na escuridão que, entretanto, caíra.
Ainda no chão, Marta recusou aceitar que aquele horror, aquele assalto nojento, tinha acontecido a ela. E, de repente, teve a estranha sensação de se ter perdido de si própria e de, num total desligamento, ter abandonado o corpo e pensar que, aquela mulher humilhada que, de um canto do quarto, via estendida, a seus pés, ferida e meio-desnuda, não ser ela!
Aquilo era um invólucro vazio que talvez já tivesse sido ela... Aquele podia ter sido o seu corpo mas, ela já não estava ali! Então ela, a essência dela, onde estava?
Desmaiou e tudo se desvaneceu num imenso caos!
Mrs. Mary Anne Tyler, naturalmente, nunca apareceu e nunca soube de nada!

Uns dias depois, João perguntou-lhe: “ D. Marta, a senhora quer voltar para Portugal?” A chorar, ela respondeu baixinho: “ Quero! Mas, João, como posso pensar em voltar se não tenho dinheiro, nem conheço ninguém que me possa ajudar?”
“ Vamos ver, D. Marta! Tenha calma e não tenha receio! Quero que saiba que estou sempre atento e por perto! Conte comigo, com a minha ajuda e protecção!”
Na semana seguinte, uma irmã do João e o marido levaram-nos , de noite, em segredo, a Johannesburg e meteram-nos num avião, para Lisboa.
Marta nunca soube como o João arranjou o dinheiro para comprar os bilhetes, como os comprou, vivendo eles nos recônditos do país, assim como também nunca mais teve notícias dele.
Gostava de pensar naquele rapaz mestiço, que tanto a ajudara , como se ele fosse um anjo, uma daquelas pessoas que atravessam os caminhos mais negros e mais tortuosos, dos mais infelizes, para os suavizar, e para os iluminar e enfeitar com mil girassóis, com mil sóis amarelos!
Já em Portugal, nunca contou a ninguém o que se passara em Bethlehem, a não ser à Clara, sua amiga desde sempre e viúva do irmão do António, que morrera uns meses antes.
Marta não voltou para a fábrica. Foi trabalhar para a loja do sr. Clemente, um solteirão simpático e educado, com quem começou a viver, tempos depois. Ele amou-a e foi, para o Ruizinho, o pai que ele, verdadeiramente, nunca tinha tido. Educou-o, acompanhou-o e ajudou-a a fazer dele, o homem de bem que era hoje.
Clemente fora uma dádiva preciosa que transformou o deserto árido que era a sua vida, num jardim imenso de ternura e de paz.
Tinha sido a Clara que lhe dissera, uma semana antes, que António tinha regressado ao país, há uns meses, vivia num quartito miserável, estava muito doente e pedira para vê-la.

Marta estremeceu como se acordasse de um medonho pesadelo e, antes de os ver, sentiu os olhos grandes, brilhantes de febre e orlados de pus, fixos intensamente, nela .
Não sentiu ódio, nem piedade, nem a compreensível satisfação, perante a morte lenta, dolorosa e solitária daquele homem desumano e perverso, carrasco feroz, de tantos dos seus sonhos!
Levantou-se, olhou-o uma vez mais e, friamente, com uma profunda indiferença, voltou-lhe as costas.
Nesse momento, numa voz, inesperadamente forte e rouca, o seu nome rasgou, num apelo desesperado, o silêncio pesado, doentio do quarto: “Marta!”
Parou, hesitou uma fracção de segundo mas não olhou para trás, continuou a andar e saiu!
Na rua, a luz quente e poderosa do sol entonteceu-a.
Encostou-se à parede e deixou que essa luz lhe aquecesse o corpo entorpecido e a alma, esgotada pelas recordações que acabara de exorcisar! Para sempre!
Respirou fundo e quase correu, ao encontro do Clemente, que a esperava, no carro, com um sorriso, onde brilhavam os mil sóis radiosos que lhe iluminavam os dias.


Nota: Este “conto” que pode parecer o enredo rocambolesco de uma telenovela mexicana, é quase inteiramente baseado no relato de uma vida, dolorosamente amassada com lágrimas, humilhações, perdas e cardos mas, também adoçada com amor, bondade, esperança e radiosos girassóis, que me foi feito, no hospital, já há uns anos, por uma doente, uma “ Marta”, já velhinha.

MC

domingo, 29 de novembro de 2009

Aniversário

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a.olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

Álvaro de Campos
Heterónimo de Fernando Pessoa

Gato que brincas na rua

Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.

Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.

Fernando Pessoa - Ortónomo

Tão cedo passa tudo quanto passa

Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.


* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * *
Ricardo Reis/ Ode
Heterónimo de Fernando Pessoa

Sim

Sim, sei bem
Que nunca serei alguém.
Sei de sobra
Que nunca terei uma obra.
Sei, enfim,
Que nunca saberei de mim.
Sim, mas agora,
Enquanto dura esta hora,
Este luar, estes ramos,
Esta paz em que estamos,
Deixem-me crer
O que nunca poderei ser


Ricardo Reis - Ode
Heterónimo de Fernando Pessoa

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Os animais e o circo

Nunca gostei de circo! Mesmo em criança, a cara pintada e as gargalhadas dos palhaços assustavam-me, as habilidades dos animais, selvagens ou não, entristeciam-me e o silvo do chicote e os gritos do domador revoltavam-me! Surpreendiam-me, aliás, os risos e os aplausos provincianos, das pessoas, à minha volta!
Os elefantes, os leões e os tigres sempre me pareceram desajustados e infelizes, naquele espaço reduzido, obrigados, nem sabia eu ainda, a poder de quanta tortura, a obedecer a ordens estúpidas e em completo desacordo com a sua natureza.
Não fui muitas vezes ao circo, mas lembro-me de ter pensado, maldosamente, como seria interessante se o feitiço se virasse contra o feiticeiro e o monumental elefante, num momento de pura rebeldia, pousasse, ainda que levemente, a patorra cilíndrica, obedientemente erguida, sobre a ousada menina, que de estendia, mesmo debaixo dela e o leão ou o tigre riscasse, numa súbita fúria e numa fracção de segundo, o sorriso alvar, da cara do domador!
Quem, amando e respeitando os animais, nunca teve um inconfessável pensamento, como este, a transbordar indignação, ao vê-los miseravelmente subjugados, para divertimento da populaça?
Sempre me ensinaram que os animais selvagens são seres nobres, livres, poderosos e imponentes, senhores absolutos de uma terra que é sua!
Assim, talvez porque nasci em África, sempre detestei vê-los, no circo, sujeitos a uma humilhante submissão, e espoliados da sua nobreza, e da sua dignidade!
Confrangia-me, igualmente, ver cães, pateticamente, vestidos com ridículos tutus e saloios arrebiques na cabeça, a dançarem mecanicamente, apenas apoiados nas patas traseiras!
Por tudo isto, aplaudi, com entusiasmo, a lei que aponta para o fim do uso dos animais, no circo, como fonte de entertenimento!
Embora ainda haja muito para fazer, em relação aos maus tratos e ao abandono dos animais, congratulo-me que, pelo menos nesta vertente, lhes seja, enfim, dada a protecção que lhes é devida e lhes seja reconhecido o respeito a que têm direito e os deixem viver, majestosos e tranquilos, no seu habitat natural!

MC

domingo, 15 de novembro de 2009

Sinead

A Sinead morreu!
A Sinead faz-me falta, Faz-me tanta falta!
Depois de ter estado comigo, mais de catorze anos, a Sinead morreu, no dia três, deste Novembro chuvoso e triste, e deixou-nos uma infinita saudade e um irremediável vazio!
Foi-me confiada, quando tinha seis meses, por uma amiga que não podia ter aquela cachorrinha linda mas, travessa e cheia de energia, no apartamento, onde vivia. Durante todo este tempo,connosco, ela foi uma dádiva de amor, de ternura e de alegria que nunca pude, nem poderei agradecer bastante!
A Sinead era uma Setter-irlandês, com uma pelagem ruivo-fogo, com reflexos de ouro, lindíssima! Tinha uns olhos escuros, expressivos e doces! Era uma cadelinha terna, delicada e generosa.
Gostava de correr, de brincar e adorava dormir, debaixo do pinheiro manso, no jardim.
Agora, já velhinha, não corria, passeava devagarinho, não brincava muito mas, abanava, contente e vigorosamente, a cauda, para dizer que nos amava e dormia, cada vez mais tempo, no seu cantinho preferido, no jardim.
A partir de uma certa idade, tornou-se muito frágil mas, com uma vontade, férrea, de viver, foi, corajosamente, ultrapassando todos os problemas de saúde, alguns bastante graves.
No dia três, já perdida, dei-lhe a última prova de amor e de respeito, que lhe podia dar: uma morte assistida, sem sofrimento, serena e digna, como lhe era devido! E, regada de lágrimas amargas!
Estive sempre com ela. Morreu nos meus braços, a minha filha, que ela adorava, e que tanto a acompanhou, a segurar-lhe, amorosamente, as mãozinhas felpudas.
A Sinead partiu e deixou-me, também, a eterna e aflitiva interrogação, inevitável perante a morte: será que lhe dei todo o amor e toda a atenção que ela merecia, ela que tanto nos deu, sem, em troca, nada pedir?
É que, se, seguramente, nunca se ama, nunca se cuida demais, a verdade é que, se calhar, nunca se ama e nunca se cuida, o suficiente! Não sei...
Como última homenagem, a Sinead foi cremada. Entregaram-me, dias depois, as cinzas dela, numa caixinha de madeira branca, com o nome gravado e, delicadamente, rematada com uma fitinha de cetim castanho.
A caixinha ainda está comigo! Um dia, as cinzas da Sinead vão repousar, para sempre, debaixo do pinheiro manso, onde ela gostava tanto de dormir umas sonecas e de preguiçar!
Mas, por estes dias, não! Por estes dias, ainda não...

MC

domingo, 25 de outubro de 2009

Uma paixão revisitada... Dois olhares!

Ele

Ele recostou-se, esgotado, no sofá do escritório! A mulher já tinha ido para a cama, ver a sua série preferida, no AXN.
As filhas dormiam placidamente!
Tinha-a visto hoje! Pela segunda vez, em onze anos, tinha-a visto, esta manhã! Ela saía da carrinha Volvo que conduzia, bonita, elegante, flexível, como a recordava! Mais mulher, talvez! Mas, também mais atraente!
Ela não o vira. Melhor assim! O coração dele disparara, num turbilhão de doidas emoções, como se uma rajada de vento o tivesse atingido brutalmente e as mãos, trémulas e suadas, atrapalharam-se, como se, de repente, não soubessem o que fazer com o volante!
Nunca a tinha esquecido, a imagem dela tinha permanecido gravada, no mais íntimo de si e essa secreta permanência dela, junto dele, dera-lhe sempre um certo conforto!
Tinha viajado muito mas, para onde quer que as suas atribulações o tivessem arrastado, ela estivera lá, a seu lado e, por isso, nunca se sentira, totalmente sozinho. Porque, como alguém escreveu, “ se a imagem do ser amado continuar viva no nosso coração, o mundo inteiro é a nossa casa.”
É estranho, pensou, nunca tinham sido namorados! Mas, tinham-se amado! Ele amara-a! Muito!
Ela era uma menina azougada, cheia de carácter e de energia e ele tivera de crescer muito depressa e aprender, antes de tempo, que a vida é feita de penosas cedências e de dolorosas opções! E, ele cedera! E optara! Talvez, aparentemente, pelo mais fácil, pelo mais agradável, pelo mais conveniente! Pelo que, mais tarde, o pudesse realizar plenamente, e fazer feliz, como homem, seguramente, não!
A mulher apareceu à porta e perguntou, num tom plangente que o aborreceu e irritou: “ Não vens deitar-te? Amanhã, levantamo-nos tão cedo!”
“ Já vou! Não te preocupes comigo! Dorme!”
A mulher parecia recusar-se a crescer! Comportava-se como a menina rica, fútil, mimada e aborrecida que era, e cobria telas e telas de tintas coloridas, a que chamava, pomposamente, pintura! Era, pois, na cabeça dela, pintora!
Ele tinha as motos, as corridas, o Paris/Dakar, os carros!
Nunca tinha havido entre a mulher e ele essa delicada intimidade, essa terna cumplicidade que só os verdadeiros amantes conhecem! Era como se uma parede invisível mas, indestrutível , se interpusesse, permanentemente, entre eles! Constrangendo-os! Separando-os!
Recostou-se, outra vez, no sofá e recordou o momento em que o amigo de sempre, o Alex, lhe telefonou a dizer que ela tinha acabado de ter um acidente.
O dia ensolarado e luminoso tornou-se, então, subitamente sombrio, o coração bateu desorientado, como se tocasse a rebate, as pernas tremeram, de repente velhas e fracas mas, em minutos, estava ao lado dela!
Encontrou-a vestida com uma enorme farda de bombeiro, porque tinha caído, com o jeep, a um riacho, numa prova de obstáculos! Viu-a sã e salva, o cabelo encharcado, ainda a tremer, como um gatinho assustado e perdido no jardim, em dia de chuva e, lembrava-se bem, sorriu feliz! O dia, então, clareou, o sol cobriu de ouro, tudo em redor, e o peso na alma dissolveu-se, como um pedaço de gelo, em água quente.
Abraçou-a e respirou fundo! De alívio!
Levou-a a casa e esteve a seu lado, enquanto ela contava aos pais, assombrados, aquele incidente de menina travessa!
Em catadupa, reviveu a noite, em que a foi acompanhar a casa e o portão da garagem desceu mais depressa do que esperava e ele, absorvido nela, bateu-lhe em cheio, com o jeep que, então conduzia. O portão estragou-se completamente. A recordação dessa noite, a inquietação e o susto dos dois, bem resolvidos graças à compreensão dos pais dela, fizeram-no sorrir de novo, no aconchego do escritório!
Entretanto, a vida dele tinha ficado num caos: o relacionamento dos pais quase em ruptura e as empresas de família, em queda vertiginosa, devido à cabeça doida do pai, com mulheres e jogo! A aflição e o desgosto da mãe era mais do que podia suportar!
Interrompeu o curso que nunca mais terminou, e deitou mãos a uma das empresas, com a ajuda do pai da, agora, sua mulher que, entretanto, decidira que ele seria seu marido, custasse o que custasse e a quem ele se submeteu, para poder suportar a casa, ajudar a mãe e permitir que as duas irmãs mais novas continuassem a estudar! Sem dificuldades!
Como se nada tivesse acontecido e a vida, sem um balanço, sem um tropeço, continuasse serena e deslizante, como um belo passeio, à beira- mar, em tarde amena, de verão!
Trabalhou, duramente, no interior de Moçambique, na exploração de madeira e tornou-se o empresário bem sucedido que era hoje!
O noivado e os preparativos para o casamento, passaram por ele, como um sonho, de que ele parecia não fazer parte!
Quando, enfim, acordou daquele sonho estranho e inquieto, daquele amontoado de cenas confusas, daquele pesadelo delirante, estava casado!
Vendi-me, fui um fraco e, no fundo, todos os que diziam que me amavam, quiseram que me vendesse, em seu próprio benefício, pensou com amargura!
Ele casou no Verão. No início desse ano, quando ela fez, com êxito, o exame na Ordem dos Advogados, ele, que acompanhava, de longe, todos os seus passos, mandou-lhe entregar, no escritório, duas dúzias de maravilhosas rosas chá! Sem cartão! Não era preciso... Ela sabia!
Um mês depois, no dia dos Namorados, um dia que, afinal, não era deles, mandou-lhe, também e ainda assim, um precioso ramo de rosas, agora, vermelhas! Sem cartão! Não era preciso... Ela sabia!
À namorada não foi capaz de dar flores! À namorada, não!
Ele nunca lhe falou das rosas. Ela nunca lhas agradeceu! Não era preciso... Eles sabiam!
Um Sábado, à noite, encontrou-a numa discoteca e ficaram, longas horas, a conversar, enquanto os olhos namoravam e, apaixonadamente, diziam o que as bocas não se atreviam dizer, as mãos se enredavam e o coração batia, batia...
À saída, a namorada estava à espera dele, viu-os juntos e fez uma patética cena de ciúmes, de choro e de lamentações que o envergonhou e enfureceu tanto, que se dispunha a pôr fim a tudo e a assumir que a amava e era ela que ele queria, quando ela, com uma voz firme e o olhar azul, frio e duro, disse à chorosa rapariga, agora sua mulher, abrindo, inteiramente, mão dele: “ Não se preocupe! Somos só amigos! Não há nada entre nós! Sejam felizes!”
Um dia, pouco antes do casamento, encontraram-se numa estação de serviço, na auto-estrada.
Lembrou-se, com angústia, da sensação de desamparo e de perda, quando a viu, do tornado violento de paixão e de mágoa que se apossou dele e fez desaparecer tudo, num louco rodopio, numa rajada de vento que a deixou, só a ela, à sua frente!
Ela nunca soube quão difícil foi para ele, tentar manter a calma e dizer-lhe, em jeito de despedida e num mal disfarçado despreendimento:
“ Não sou o homem que mereces! Não sou digno de ti! Vais encontrar alguém, muito melhor do que eu, que te vai fazer muito feliz!”
E abraçou-a! Apertou-a nos braços e aspirou, pela última vez, o perfume da pele dela! Com o coração desfeito, com a vida em farrapos, perdido num túnel frio, escuro, sem retorno e sem saída!
Separaram-se e, hoje, em onze anos, era a segunda vez que a via! Tentou respirar fundo, para aliviar a opressão que parecia esmagar-lhe o peito!
E, compreendeu, que o seu amor por ela, continuava vivo e infatigável, sempre renascido, como um braseiro que se reacende, vibrante, com uma rajada de vento!
Esfregou os olhos e, numa urgência, quis, plasmado em si, o aroma suave dela, dos cabelos revoltos dela, quis, desesperadamente, sentir o toque macio de pele dela, na sua, de mergulhar o olhar dele, turbulento e impaciente, no oceano azul, puro e sereno dos olhos dela!
Então, como a árvore que, sempre que chove, chora, também ele, porque a vira tão perto e a soube tão longe, como a árvore, fustigada pela chuva, chorou!



Ela

Eram quase onze horas da noite quando ela estacionou o carro na garagem.
Ao longe, ouvia os latidos de alegria da Maggie, a fiel lab que, ansiosa com a chegada da dona, descia apressadamente as escadas para, aos saltos, lhe dar as boas vindas!
Estava cansada…o dia tinha sido longo e ainda tinha um trabalho para entregar, por email, em mais um curso que decidira fazer para valorizar o seu CV.
Era obcecada por trabalho, sabia disso... Uma qualquer doença que a impelia ocupar-se até à exaustão! Questionava-se se o fazia por efectiva necessidade de se aperfeiçoar ou, para se abstrair da vida rotineira que vivia com Miguel, o seu companheiro de há quase seis anos.
Subiu as escadas e viu-o, no corredor, sorridente e afável, como habitualmente. Pensou que o final da paixão é triste e que não aceitará, de novo, a presença de um homem dentro de casa, da sua casa… Precisava de espaço! Sentia-se asfixiar dentro do único local onde deveria ser capaz de relaxar e descansar, a sua casa. Abriu a boca, num esgar cínico, ao lembrar-se que o Miguel nunca se mudara definitivamente para a sua casa, conservando vazio o apartamento que comprara há anos, em Matosinhos Sul. Tinha sido uma decisão acertada.
Cumprimentou-o, distraída e distante, e avisou-o que tinha de trabalhar. Como sempre….
Precisava de estar sozinha e.. de pensar. A Maggie acompanhou-a, num silêncio cúmplice, sossegando-a, com a sua respiração ritmada, na caminha ao lado da secretária dela. Ela olhou com ternura para aquele focinho preto que, tranquilamente dormia, virado para ela. Apesar da alegada irracionalidade dos cães, ela não deixava de se surpreender com o amor e carinho que aquele corpo felpudo tinha para lhe dar.
O dia fora complicado. Muito trabalhoso e cheio de adrenalina e desafios. Mas não era essa a razão da pontada que sentia na nuca…
Tinha-o visto, parado num grande Mercedes, naquela manhã, perto de casa dela. Não sabia se ele a teria visto. Ela viu-o e muito bem…
Ele, de todos os homens que se cruzaram com ela, foi o único a ter lucidez suficiente para perceber que nunca conseguiria viver com ela.. Apesar de ser o mais arrogante e truculento de todos, foi o único que compreendeu que com ela nunca conseguiria sustentar uma relação amorosa convencional. Os outros, tolos, ainda se acharam capazes…para depois capitularem… Um vive ainda numa eterna adolescência… Mas, se esse a ensinou que o casamento não era para ela, o Miguel mostrou-lhe que ela é incapaz de partilhar o seu espaço com quem quer que seja, embora ele tenha tido o melhor dela e o tenha desperdiçado quando, há três anos a abandonou durante seis meses. Os actos têm consequências, ainda que estas se revelem muito mais tarde… Pecados velhos têm longas sombras...
Lembrou-se que lera, numa revista no cabeleireiro, que ele tinha duas filhas. Ele seguiu um percurso que ela, teimosamente, não segue ... A mulher dele, aparentemente fútil, mas, na verdade madura e decidida, tinha conseguido construir com ele, a família grande com que sempre sonhara.
A verdade é que o amava muito mais do que ela o amou. Soube abdicar de tudo, incluindo do amor próprio, para casar com ele. Ela não...! Orgulhosa, arrogante e senhora de si, deixou-o ir. Protegeu-o, inclusivamente, perante aquela que seria mulher dele, quando esta, numa espera enciumada, a viu a deixá-lo junto ao carro, um dia de madrugada, na Ribeira, depois de uma noite apaixonada… Ele nunca lhe perdoou a frieza e o sangue frio, quando abriu mão dele, para sempre… “Se fosse ao contrário, eu teria dito que nós tínhamos um romance… eu tinha estragado tudo, quanto mais não fosse, pelo prazer de estragar…” disse-lhe ele, numa das últimas vezes que a viu junto à praia, naqueles encontros, à socapa, dos amantes que não eram, ao que ela, segura e firme, retorquiu, “Não queiras que seja eu a resolver os teus problemas!”
Viram-se na estação de serviço da Mealhada há onze anos.
Não foi por acaso… Ele sabia que ela frequentava o mestrado em Coimbra, porque já se tinham encontrado, mais do que uma vez, na auto-estrada, quando ele ia ao cardiologista nos HUC. Chamou-a com o pretexto de não ter bateria no carro. Ela foi ter com ele… Como sempre! Ele queria despedir-se dela... Nunca lhe disse que casava esse Verão… Meses antes, tinha-lhe enchido o escritório, de rosas chá, como presente pelo sucesso nos exames da Ordem e por outra coisa qualquer, ( talvez o Dia dos Namorados que nunca foi deles)… mandou-lhe, então, um fantástico ramo de rosas vermelhas, da Florista Antónia, situada na rua da Venezuela, onde vivia a namorada dele e onde ela viveu poucos anos depois... Ri-se, ao lembrar-se que, por momentos, ainda tinha posto a hipótese que aquelas maravilhosas flores, tivessem sido mandadas pelo colega de escritório, o João, que, coitado, nem uma esmola tinha para dar a um pobre!
Ele admirava-a intelectualmente como nenhum outro a admirou... Sem complexos! Talvez porque foi o único que sempre soube e teve a consciência que não viveria com a capacidade intelectual e a tenacidade dela! Os outros não...
Foi, nesse dia, que se despediram. Disse-lhe, então, como que para se convencer e a convencer, que ela encontraria alguém melhor. Ela achou que sim! Aquela paixão esgotava-a e amarfanhava-a, apesar de a ter feito crescer. Ela até já tinha encontrado um namorado interessante(o tal que lhe mostrou que o casamento não era para ela)e para ela aquela despedida era para sempre, definitiva.
A libertação de um jugo que se cansara de transportar, uma dor que jurou nunca mais voltar a sofrer …
Recordou o dia em que ela tivera aquele acidente com o jeep, numa prova TT, ele correra a socorrê-la! Chamaram-no e ele assustou-se... Protegeu-a à frente de todos, sem hesitação! Abraçou-a, com força, ansioso! Mas, não a ajudou a contar aos pais ... ela fê-lo sozinha, assumindo as consequências. Ainda assustada mas, sem medo!
Sorriu ao lembrar-se do incidente da porta da garagem. Completamente perdido, a olhar para ela, que estava do lado de fora a aguardar que ele saísse, para estacionar o jeep que conduzia, nem viu o portão descer. Ainda há semanas ela e o melhor amigo dela lembraram esse episódio com gargalhadas… Terá feito treze ou catorze anos, no dia do aniversário da mãe dela… Premonição…
Também aí, ele não a ajudou a explicar nada ao pai.. ela fê-lo , aliás, como quase tudo na vida, sozinha! Assumiu as consequências… O pai é que nunca acreditou que a filha fizesse tamanho disparate ao volante do seu querido jeep! E a verdade foi reposta. A mãe dela soube sempre a verdade. Foi uma bizarra prenda de aniversário…
Ele viajou muito, trabalhou em Moçambique. Ela lembrou-se , com um tremor, dos telefonemas que ele fazia quando se sentia só e dos reencontros emocionados, às vezes, ainda mal refeito do jet lag.
Mas ele casou, porque quis...! Não foi, certamente, assim tão mau… Ele sabia que jamais o faria com ela… não, com ela!
Hoje, ela sabe que a decisão não foi difícil, porque nunca houve alternativa.
Actualmente, ele é um empresário com sucesso, a que não será estranho o capital do sogro. O seu hobby continua a ser competir com motas. Tem mesmo uma equipa. No entanto, os êxitos não são muitos. Parece que ainda não conseguiu acabar o Paris Dakar. Mas, irá, certamente, continuar a tentar! E, para isso é essencial ter dinheiro, muito dinheiro...
Sim… ele hoje tinha-a visto no carro... Ela também o viu... Sentiu o coração a bater mais depressa quando recordou o rosto dele. Aos olhos um do outro ter-se-ão visto, como naquele encontro na estação de serviço: ele, esguio e tenso... ela, bonita e firme, sem que fossem visíveis, as marcas que, por dentro, foram sendo cinzeladas, ao longo dos últimos onze anos.
Mas, como há cinco anos, quando ela o viu sozinho na discoteca, sem ele a ter visto, ignorou-o e seguiu, segura e impassível, em frente, sem olhar para trás!
Ele tinha tentado telefonar-lhe, nessa tarde, depois de a ver… Ela, por acaso, não atendeu… Era um número privado que ela soube não ser da mãe dela…

Nota: Este texto, "... Dois olhares!", foi, como o título indica, escrito a duas mãos!

MC/SC

domingo, 18 de outubro de 2009

Terror azul

Amélia era uma senhora alta, magra, já entrada em anos, mas ainda bonita.
Vivia naquela rua desde que casara, há mais de três décadas, e era uma referência de afecto e simpatia para os vizinhos, porque sempre tinham tido a sorte de poderem contar com ela, para ficar com os filhos, quando tinham de sair à noite, nas férias escolares ou, quando chegavam tarde do trabalho. Amélia não tinha tido filhos mas ajudara a criar muitas crianças.
Enquanto o marido foi vivo, elas vinham para casa dela. Ali, lanchavam, brincavam, faziam os trabalhos e casa e, muitas vezes, almoçavam ou jantavam. Em casa, havia sempre uma alegre agitação que lhe preenchia os dias.
Agora, que estava sozinha, não se importava de ir ela, sobretudo à noite, a casa dos vizinhos, ficar com as crianças que adoravam os seus biscoitos gostosos e estaladiços e as histórias que lhes contava ou lia, antes de adormecerem.
Havia, no entanto uma casa onde jurara a si própria nunca mais voltar. O André, um rapazinho de oito anos, loiro, com olhos azuis e rosto angélico era, mais do que muito travesso, um menino inquieto e inquietante, imprevisível, com reacções estranhas, que lhe causava uma inexplicável repulsa e lhe provocava arrepios e aquele incómodo friozinho na base do estômago!
Havia qualquer coisa de maligno no brilho metálico e gelado do olhar azul, daquele menino com aspecto de anjo!
Na última noite que lá estivera, faltara, subitamente, a luz e, na profunda escuridão que pareceu submergir tudo na sala, bateram portas, soaram gemidos angustiados e gritos roucos, medonhos, à mistura com gargalhadas pesadas, horrendas a ressumarem maldade! Umas mãos, certamente umas mãos, grandes e carnudas, enrolaram-se-lhe, no pescoço, como uma serpente assassina! Sentiu-se quase morrer de susto e de aflição!
Quando aquele horror parou e a luz inundou, de novo, todos os recantos da sala, o André dormia, serenamente, , a seu lado, no sofá e, quando ela, numa incontrolável perturbação, tentou comentar, com ele, um pouco do torvelinho de horripilante violência que vivera, ele olhou-a, com espanto e com uma indisfarçável desconfiança, como se ela fosse louca!
Nunca tivera coragem de falar com alguém sobre aquela estranha noite! Muito menos com os pais do André. Teve medo que a julgassem doida ou, que pensassem que estava a ter uma perigosa recaída, no abismo negro da tristeza depressiva que a amarfanhara, depois da morte súbita do marido!
Tanto mais, que os sulcos fundos e vermelhos, deixados por aquelas mãos, eram certamente mãos, fortemente, enroscadas no seu pescoço, tinham desaparecido, como por magia!
Amélia estava nervosa.
A mãe do André telefonara a pedir-lhe que ficasse com o filho, na noite seguinte. Ela recusara de imediato mas, a senhora insistiu no seu pedido, porque confiava inteiramente nela, não tinha mais a quem recorrer e tinha de acompanhar o marido áquele jantar que, na verdade, a aborrecia mas que era muito importante para a carreira dele.
Por fim, acedera mas sentia-se inquieta, quase zangada consigo própria pela sua fraqueza e, sem saber porquê, levou a Bíblia consigo!
Nessa noite, porém, o André parecia cansado e sem disposição para travessuras.No ambiente sereno e acolhedor, da casa, Amélia começou a sentir-se melhor, mais calma e descontraída!
Deu, aliás, consigo a admirar a beleza suave e pura daquele rosto de menino que falava sobre a escola, os amigos e as brincadeiras no recreio, e sorria, inocente, para ela!
No quarto, leu-lhe uma história particularmente bonita de que ela sempre gostara muito: “O Principe Feliz”. Depois aconchegou-lhe a roupa e, quando ía a sair do quarto, o André pediu-lhe que se sentasse um bocadinho no sofá azul, perto da cama. Surpreendida, foi à sala buscar a Bíblia e sentou-se. Abriu-a, à sorte, e começou a ler o “ Sermão de Montanha”, Evangelho, segundo S. Mateus: "Olhai os lírios do campo; eles não trabalham nem fiam...”
Lindo e muito poético este sermão! E os lírios, tão bonitos, tão aveludados, tão esguios!
Tinha de plantar lírios, lírios brancos, roxos e amarelos, no jardim e reler o belíssimo livro de Erico Veríssimo, decidiu, com um ligeiro sorriso.
De repente, o André, com uma vozinha ensonada, pediu-lhe que lhe desse um beijo de boa noite. Um pouco aturdida, levantou-se, pousou o livro aberto no sofá e surpreendeu-se, de novo, com a serenidade, a beleza delicada daquele rosto de criança e com a doçura dos olhos azuis do André.
“Que engraçado, nunca tinha reparado como esta criança é linda e como são ternos e irresistíveis os seus olhos de um azul tão límpido mas tão profundo!” pensou, com espanto.
Debruçou-se e quando se preparava para lhe beijar a face macia, o André abraçou-a. Com força! Com uma força brutal que ele não podia ter e que quase a sufocou!
Depois o abraço enfraqueceu ligeiramente e ela viu, com horror, aquele belo rosto de criança, escurecer e desfigurar-se, num esgar maligno, assustador.
No quarto, avançava, aos roldões, uma escuridão densa que parecia engulir tudo. As coisas íam perdendo a forma, fundindo-se num todo viscoso, informe, afogado num mar de repugnante negrume! Como se a essência das coisas, dissolvendo-se, se tornasse parte de um caos infinito!
Aterrada, apenas viu dois pontos de luz: uns olhos que já não eram olhos, mas eram duas chamas vivas, brilhantes e vermelhas e os braços que, agora, a estrangulavam, eram fortes, negros, gelados e coleantes como cobras poderosas.
Simultaneamente, explodiam , no ar, gargalhadas roucas, enlouquecidas,demoníacas e,
no ar, espalhava-se o cheiro acre a queimado, da Bíblia, agora reduzida a um pequeno monte de cinzas, em cima do sofá azul.

MC

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

A despedida

Quando ela entrou no restaurante, já ele a esperava. Era um homem alto, interessante, que esbanjava o charme discreto das pessoas bem nascidas . Elegante, como sempre, pensou ela, com amargura.
Tinham tido uma relação feliz, estável e longa. Ela, pelo menos, sempre pensara que tinham sido felizes. Que eram felizes! Amara-o muito! Amava-o ainda. Tanto!
Fazem um lindo par, diziam os amigos. Completam-se tão bem, diziam os familiares.
Às vezes, do que temos mais saudade, pensou, são das pequenas coisas, dos pequenos gestos, do banho apressado, de manhã, dos beijos roubados, debaixo do chuveiro, de um passeio molhado por uma chuva inesperada, de um filme especialmente bom, das conversas ligeiras ao jantar, do vinho tinto apreciado, lentamente, junto à lareira, do beijo à saída de casa, do beijo do reencontro, à noite, da partilha das novidades, das historietas do dia. Mas, era sobretudo o sorriso dele, aquele sorriso bonito, que vinha de dentro e lhe iluminava o rosto, lhe aquecia a alma e lhe dava sentido à vida, que lhe fazia mais falta!
Ele viu-a à porta e dirigiu-se a ela. Sorriu ligeiramente e cumprimentou-a com dois beijos distraídos, de circunstância.
Ela estremeceu de ansiedade, possuída de uma súbita incerteza, quando o sorriso dele, outrora caloroso e terno, a trespassou, gelado, como uma lâmina fria e afiada.
Acompanhou-a à mesa, trocaram trivialidades e escolheram o almoço.
Ela tinha-se esmerado e, sabia-o bem, estava muito bonita e elegante. Mas, também nervosa e angustiada.
“ Quando é o casamento?”
“ Dentro de quinze dias, mas isso, aqui, não interessa nada! Ainda não me disseste foi, porque razão, precisáste, palavra tua, deste almoço comigo.”
“ Para me despedir de ti e para te entregar esta caneta que esqueceste lá em casa. Fui eu que ta ofereci, lembras-te? É tua!
“ Ah! A caneta! Obrigado! Pensei que a tinha perdido.
“ Não, não a perdeste, embora se tenha perdido tanto, entre nós, ultimamente! Quase não acredito ainda, que tudo acabou, que tudo morreu e vai, dentro de quinze dias, ser esquecido e enterrado, definitivamente, no teu fraque de noivo!
“ Não digas isso! Nada acaba! Apenas, às vezes, como aconteceu connosco, se modifica! Continuo a ter um grande carinho por ti e os anos que vivemos juntos marcaram, profundamente, a minha vida!Esse é o meu passado, o nosso passado, e um pedaço de mim ficou, para sempre, preso a ele!"
Ela não respondeu, a garra na garganta cada vez mais apertada e o coração a debater-se no peito, numa pulsação aflita, de animal enjaulado.
Apeteceu-lhe bater-lhe, insultá-lo e...chorar! Mas, ficou quieta, calada!
Mantiveram-se em silêncio, durante grande parte do almoço, como se todas as palavras, entre eles, já tivessem sido ditas!
Ele, depois da sua tirada dramática, parecia enfastiado e distraído.
E ela, à sobremesa, com o coração quase a estourar de agonia, a garra na garganta, quase a soltar-se, manhosa, para se desafogar nas lágrimas que lhe começavam a alagar os olhos, disse, num rompante:
“ É muito bonito e comovente o que disseste há pouco! Mas, a verdade, é que nunca quiseste casar comigo e vais casar com essa rapariguinha loira, bem mais nova do que eu, é claro, e que, com o ar inocente e cândido de um anjo, te assegura, entre beijinhos castos, que nunca amou, nunca se entregou a nenhum homem, senão a ti! E tu, embasbacado e vaidoso, finges que acreditas...”
“ Cala-te! Não estragues o almoço, não amargures, ainda mais, esta despedida que quiseste, que me pediste!”
De cabeça perdida, sem o ouvir, doida de raiva e consumida na labareda incandescente , incontrolável do ciúme, continuou:
“ Essa rapariga que te enfeitiçou, já deve ter tido mais de uma dúzia de namorados, dormiu com todos eles mas, só porque ela te disse, num sussuro angélico: “ Só tu, antes e agora, meu amor!”, acreditas que é pura, como um recém-nascido, não é?
“ Vou-me embora! É melhor para ambos! Esquece-me! Deixa-me ir e segue com a tua vida!”
“ Tens assim tanta pressa de ir para os braços magricelas e desajeitados dela? E eu? Queres que, depois de todos os anos, todos os dias, todas as horas de amor que vivemos juntos, e que vejo agora lançados fora, como farrapos velhos, esteja serena, bem disposta e te deseje felicidades?”
Já sem a ouvir, cansado, meio-assustado com aquela veemência desesperada e com o coração pesado e submerso numa súbita tristeza, ele pagou a conta, junto à caixa, e saiu.

Ela continuou sentada à mesa, o coração aos tombos, o olhar vazio e as mãos a tremerem. Quando o empregado levantou os pratos, viu a caneta que lhe oferecera no dia 14 de Fevereiro, dois anos antes, e que ele usava sempre! Era uma Cartier, com as iniciais AC gravadas a ouro. As iniciais dela e dele: Ana Cristina / António César. Esse tinha sido, lembrava-se bem, um dia luminoso, prenhe de promessas e de amor!
Ele não levara de casa, nada que o fizesse lembrar-se dela! Nem a caneta!
Ficou muito tempo com aquela pequena jóia, comprada com tanto carinho, na mão.
Sentia-se pesada, carregada de recordações, de mágoa e de saudade. Era um carrego quase insuportável que estava condenada a arrastar consigo!
Aquele, fora apenas mais um almoço. Lamentável e escusado!
Compreendeu, no mais íntimo de si, que nunca seria capaz de, realmente, se despedir dele, nunca seria capaz de o “deixar ir”, como ele pedira! Iria guardá-lo, teimosamente, ciosamente, pateticamente, com ela, para sempre!
Esse pensamento doeu-lhe e...enfureceu-a!
Levantou-se para ir embora. Quando ía a sair, o empregado que os servira, veio a correr ter com ela, com a caneta na mão: “Esqueceu-se disto, minha senhora!” Ela olhou para ele e, sem um sorriso, perguntou-lhe: “ Como se chama?”
Aturdido, ele respondeu: “ João Miguel”
“ Fique com a caneta! Mande apagar essas iniciais e gravar as suas!
Boa tarde!”

MC

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Educação: Espanha vs Portugal!

Numa das minhas últimas estadas em Espanha, tomei conhecimento, pela imprensa, que o Governo Regional de Madrid pretende fazer aprovar uma nova lei para reforçar a autoridade dos Professores e dos Funcionários escolares.
A Presidente do Governo Regional de Madrid, Esperanza Aguirre explicou que o objectivo desta lei é ” ensinar os jovens a comportarem-se de forma civilizada” já que, como se sabe “ não se pode falar de liberdade sem regras”, sendo “ esta a melhor forma de prevenção contra o vandalismo”. E contra a marginalidade, digo eu!

De acordo com esta Lei da Autoridade do Professor,” todos os docentes e funcionários do ensino Básico e do Ensino Secundário terão a condição de Autoridade Pública”, como a polícia e os magistrados.
Deste modo, todas as agressões físicas ou verbais, que possam vir a sofrer, são consideradas crime público, não dependendo de queixa, com consequente agravamento das sanções penais a aplicar. Esta alteração intensifica, sob ponto de vista legal e social, a censura destes comportamentos.

Assim sendo, os Directores de cada escola enviaram aos pais e aos encarregados de educação, cujo envolvimento é considerado vital, os detalhes das normas, algumas das quais já vigoram mas, que serão reforçadas pela nova lei.
As Equipas Directivas terão uma acrescida responsabilidade na manutenção da ordem e da disciplina, nos Estabelecimentos de Ensino que dirigem, pelo que, os seus salários serão reforçados, tanto mais que,
esta medida tem, naturalmente, o apoio do governo de Zapatero.

Qualquer semelhança entre o carinho, o respeito e a preocupação das autoridades espanholas, para com os seus Professores, e o que se tem passado, nesse domínio, em Portugal, nestes últimos quatro anos, é pura ficção e a mais delirante fantasia!

Nota:Este texto não foi aceite, para publicação, pelo JN! Obviamente!!!!!

MC (23/09/2009)

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

No jacuzzi, ao entardecer...

Ele estava sentado no jacuzzi da piscina do hotel, talvez demasiado caro mas, a verdade é que, ultimamente, tudo, na sua vida, se tinha tornado muito relativo. Desde que adoecera, a espessura do tempo modificara-se, tinha-se tornado mais fluída, mais fugidia, como fluíam e se esbatiam, agora, as cores fortes e incandescentes, daquele entardecer tropical.

Sentia-se confortável e quase sem dores. O sol, embora já menos intenso, aquecia-lhe a pele e a água, em rebuliço, adormecia-lhe os ossos cansados e enfraquecidos.
Tinha estado muito doente, estava ainda doente, mas aquelas duas semanas longe de tudo o que lhe lembrava decadência e dor, eram preciosas. Para ele, para a mulher e para a filha que também sempre estivera, terna e vigilante, a seu lado.
A doença assaltara-o, de repente e deixara-o prostrado, num susto medonho e num espanto gelado! É sempre assim, pensou! Um susto e um espanto! E, depois, aquela sensação, sem misericórdia, do mundo a desabar, fragorosamente! E, tudo isso contido na pergunta inútil e inconformada: “ Porquê eu?”
Sabia que tinha mau aspecto! Estava muito magro, o cabelo ralo e baço, muito grisalho, os olhos , que tinham sido bonitos, sem brilho e encovados e a pele amarelada e envelhecida, pelos tratamentos agressivos.
O pior tinha passado, dissera o médico. E ele queria acreditar, precisava de acreditar que iria vencer a doença! Mais por elas, até, do que por si!

Três mulheres sentaram-se, a seu lado, no jacuzzi. Seriam, talvez, a mãe e duas filhas. Portuguesas, como ele, em busca de calor e de sol, num país tropical.
Exuberantes de carnes e de risos, falavam alto e gesticulavam muito, numa agitação frenética e completamente dissonante da serenidade macia, daquele entardecer.
Pelo canto do olho, viu que elas o observavam, contraíam os rostos, em esgares de escárnio, até que, suas gargalhadas, com cheiro a acinte e a grosseria, rasgaram, subitamente, o ar.
Ele permaneceu quieto, aparentemente indiferente, como se não as visse, nem as entendesse.
E, pontilhada de risos alvares e pretensiosos rolares de olhos, começou a desenrolar-se, entre elas, uma patética conversa.
“ Já repararam, neste homem? Parece que tem sida, coitado!
É tão magro e tão esquisito!”
“ É esquisito, é! Mas, já o vi com duas madamas, todas espampanantes. Uma loiraça, mais velha e uma meio-ruiva, mais nova!”
“ Eu também já os vi! Ele parece que morreu e ainda não sabe mas será fogoso e gostará de variedade!”
“ Pois é! As madamas andam sempre muito bem vestidas! Ali, o dinheiro fluí! Realmente, só por dinheiro!”
“ Eu, nem por dinheiro, queria alguma coisa com este destroço de homem! Safa!”
“ Elas parecem duas perúas, de facto! Especialmente a loiraça!”
“ Já repararam que quase todas as mulheres, depois dos quarenta, são loiras? Ficam todas iguais! Que suburbano!Voltando aqui ao gentleman...”
“ Cala-te que ele pode entender!”
“ Entender? A palavra, talvez, mas a conversa, não. Como eu ía a dizer, o cavalheiro, (gostas mais, assim?), deve gostar de uma boa “menáge à trois”!
“ Cala-te, que ele pode mesmo entender, sei lá! Pode ser francês...”
“ Deve ser americano, não está a perceber nada! A verdade é que não deviam deixar gente, com este aspecto, frequentar a piscina! Nem quero pensar nisso, mas... imagina que tem mesmo sida?”
E, riram alarvemente, enquanto davam palmadinhas na água em torvelinho ou, tentavam prender nas mãos, o revolteio da espuma.
Ele continuava a olhar em frente, sem fixar os olhos, como para os descansar, e permanecia imóvel e calado, como se não entendesse a malícia viscosa que rastejava, virulenta, mesmo ali, a seu lado.
O doirado do sol do fim de tarde, refulgia no azul límpido da água que, numa girândola de pequenos jactos, acariciava o seu corpo dorido e cansado, aconchegando-o!
De repente, viu a mulher e a filha que se aproximavam. Sorriu, orgulhoso delas. Eram lindas e corajosas!
Elas eram, de facto, o amor da sua vida, o seu aconchego, a força poderosa que o tinha impedido de desistir! De tudo!
“ Olhem, ali vêm as damas! São convencidas, mas lá que são giras, são! Para estarem com um homem com o este aspecto, este esqueleto ambulante, velho e feio, só mesmo por dinheiro, muito dinheiro mesmo! As madamas são finas e devem estar a governar-se, muito bem!”
E, riram, risadas desbragadas que ressumavam um profundo despeito e uma desmedida inveja!
Então, enojado, farto daquela conversa ordinária, dos risos estridentes, das carnes gordas, a saltarem dos biquinis demasiado pequenos, levantou-se devagar, fixou-as com um desprezo e uma dureza que as paralisou e emudeceu e, disse-lhes com uma raiva mal contida:
“ As víboras rastejam nas profundezas dos fossos negros, imundos e letais, onde pertencem! Nunca, impunemente, entre pessoas!

MC

sábado, 19 de setembro de 2009

Orquídea

Chamava-se Orquídea e era tão bonita e delicada, como a flor de que tinha o nome.
Foi minha aluna, quando, há muito tempo, há tanto tempo que já não o sei contar, eu leccionava, à noite, numa escola, à Estrela, em Lisboa.
Orquídea era alta e esguia, tinha uns lindíssimos olhos verdes, e os cabelos pretos caíam- lhe sobre os ombros, numa cascata rebelde, de caracóis largos e brilhantes.
Era uma aluna simpática e interessada, embora, às vezes, parecesse perdida em sonhos, de que acordava bruscamente e em sobressalto,quando eu a interpelava directamente. Olhava, então, meio- atordoada, para mim, com os grandes olhos verdes, muito abertos e quase me apetecia pedir-lhe desculpa por a ter feito descer, assim de repente, à comezinha rotina, da aula! Qualquer aula, por muito interessante que seja, é sempre maçadora, quando comparada com o sonho.

Uma noite, vi-a com um rapaz alto, bem parecido que, pelo modo como a abraçava, pelos ombros, devia ser o namorado. Ele escutava-a embevecido e olhava para ela, com uma adoração enternecida. Ela, contudo, parecia desprendida, e tão alheada, que nem reparou, quando passei por eles.
Nesse momento, vi, à minha frente, o retrato vivo de certas relações, em que um ama irremediavelmente e o outro, deixa-se, passivamente, amar.
O ano lectivo acabou e Orquídea, tendo acabado o curso que frequentava, saíu da escola. Arrumei-a, então, na gaveta onde guardo todos os que foram meus alunos e donde só saem, se nas voltas da vida, os torno a encontrar ou se, de algum modo, alguma maré do destino, os traz até mim.

Anos mais tarde, ao dobrar uma dessas esquinas do meu caminho, encontrei a Orquídea numa confeitaria, no Rossio. Abraçou-me com efusão e reparei que, junto dela, estava o mesmo rapaz que, fiquei a saber, era agora o seu marido.
Sou, naturalmente, discreta e não faço perguntas! Por isso, ainda hoje não sei porque perguntei se estava tudo bem com eles.
Ele sorriu ligeiramente, corou, disse que sim, numa voz sumida e lançou-lhe o olhar triste de um cãozinho assustado que abana o rabo, ansioso e terno, sempre que o dono, eternamente severo e descontente, está por perto.
A Orquídea, contudo, com uma voz áspera, meio- estrangulada mas dura, respondeu, intempestiva, com secura breve: “Não!”.
Olhei-a atónita e encontrei apenas a parede fria, implacável mas belíssima, dos seus olhos verdes. Sacudiu a cascata de caracóis pretos que ondulava, rebelde, sobre os seus ombros, e desviou o olhar, num suspiro de profundo enfado.
A virulência, a dureza e a indiferença de Orquídea, constrastava brutalmente, com a delicada beleza dos traços puros do seu rosto.
O marido, a seu lado, agora, um bloco de gelo, tenso, a olhar em alvo, como se estivesse muito longe dali, lembrava uma casa branca, solitária, de persianas severamente corridas, uma casa sem vida, inexpressiva, abandonada numa imensidão deserta, tal a impressão de vazio e de morte, que a rigidez do seu rosto e o desligamento gélido da sua postura, me deram.
Apeteceu-me, nesse instante de infinita tristeza e de desamparo, passar-lhe a mão pelos cabelos aloirados e, como se fosse um miúdo choroso, por ter caído e esfolado os joelhos, poder dizer-lhe com um sorriso e convicção: “Está tudo bem! Vai ficar tudo bem!”
Desajeitadamente, despedi-me e afastei-me depressa, ansiosa por chegar a casa para tomar uma aspirina que abrandasse a terrível dor de cabeça que quase me cegava e beber um chá bem quente que me confortasse a alma e dissolvesse o espanto de gelo que a envolvia.

Um ou dois anos depois, vi a Orquídea sair de uma boutique requintada e exclusiva, na Avenida de Roma, e cuja montra eu admirava. Seguia-a uma empregada que carregava vários sacos de compras.
Nunca saberei se ela me viu quando passou por mim! Bonita, elegante e segura de si, sacudiu a cascata de caracóis pretos que lhe emoldurava o rosto e brilhava, suavemente, ao sol de inverno e entrou, sorridente, num carro luxuoso, já com a porta aberta por um perfilado motorista, e onde a esperava um homem de cabelos grisalhos.
O motorista fechou, delicadamente, a porta, tomou o seu lugar, ao volante e o carro arrancou silenciosamente.

MC

Casamento, mentiras e ... chá!

Tinham ficado, em casa, nessa noite de Sábado. Ricardo queria ver o jogo de futebol e Paulina estava tão cansada e deprimida que nem se importou de não sair.
O Gui, o filho de um ano, dormia placidamente.
Paulina, sentada a lado de Ricardo, fingia seguir o jogo.
Presa num vazio, numa flutuação e num desencorajamento, que já lhe eram familiares, ía recordando, ao acaso, pedaços de vida que, às vezes, nem lhe pareciam ser a sua.
Tinham namorado sete anos e depois casado. Paulina fora educada para casar, ser dona de casa e constituír família, sem pensar mais, na carreira profissional
A mãe, que o marido deixara, era ela pequenina, sempre lhe dissera, com uma surpreendente convicção, que só um homem, em casa, dá estabilidade e segurança! Depois, falava-lhe dos imensos sacrifícios que fizera para a criar, para a educar e para lhe dar o curso de Gestão! Sozinha!E, em vez de um legítimo orgulho, havia uma frustração triste na voz de mãe e um inexplicável desgosto, no brilho húmido dos seus olhos que, simultaneamente, a enervavam e a comoviam!

Estava casada há seis anos. Casara verdadeiramente apaixonada? Paulina, realmente não sabia!
O namoro com Ricardo fora sempre muito tranquilo, sem grandes quezílias, mas também sem arroubos ardentes de paixão, sem cenas loucas, causadas pela chama incandescente, do ciúme e, simplesmente, quando puderam casar, casaram! Como previsto!
Ao princípio, no entanto, tinha sido, até, excitante: o cheiro a novo do apartamento, as mobílias bonitas, a rescenderem a madeira encerada, os cortinados, escolhidos com muito cuidado, e a cairem, elegantes e tersos, até ao chão, os tapetes fofos, onde os pés se afundavam e se perdiam, os primeiros cozinhados, as primeiras visitas dos amigos! Tinha sido mesmo uma exaltação, fazer amor em todas as divisões da casa!
Luxos e fantasias! Pequenos luxos e pequenas fantasias, como pequena e previsível, era, agora, a sua vida, pensou insatisfeita!
Sentia-se emparedada numa rotina pesada que a sofucava e não acabava nunca! Não era esta a vida que sonhara para si!
O Ricardo continuava com os olhos presos no ecrã do televisor, a seguir, meio-estupidificado, o jogo.
Sou feliz no casamento? Não, não sou!, pensou.
“ Que disseste, Lina?”
“ Nada! Não falei!” Ele olhou-a, por momentos, desconfiado. “ “ Estou a organizar a semana e, se calhar, falei alto, sem querer!”
Tinha de ter cuidado, pensou, e não confessar, mesmo baixinho, o frustrante desapontamento que era o seu dia a dia! Pelo menos, por enquanto...

Quando o casamento parecia estar a entrar em queda livre, ficara grávida do Gui. Foi uma alegria e um espanto! Já tinha desistido da ideia de ter filhos mas, essa esperança deu um impulso novo ao casamento e fizera renascer a relação deles, das cinzas quase mortas, de um amor, pouco mais que tépido!
Paulina viveu a gravidez, no chamado estado de graça! Talvez este seja mais um lugar comum, pensou sorrindo mas, como a mãe dizia, o que é a vida, senão um conformado lugar comum?
Nesses meses, mesmo com uma barriga disforme, sentira-se quase bonita, importante, e deixara-se mimar, como se o mimo e uma especial atenção lhe fossem, simplesmente, devidos!
O Ricardo tornou-se, então, inacreditavelmente solícito e terno!

Ele nunca fora um homem interessante e os anos não estavam a ser bondosos com ele! Engordara, e os traços grosseiros do seu rosto, tornavam-se ainda mais grosseiros e pesados.
Paulina, no entanto, tinha de reconhecer que era um homem bom e generoso.
A sogra que tinha sido sempre muito desligada, mas simpática, transformou-se, depois do casamento deles! Recebia Paulina com indisfarçada frieza e aproximou-se, ternamente, do filho. Convidava-o para almocinhos, sem a mulher, telefonava-lhe e chegara mesmo a dizer-lhe que a porta de casa estava sempre aberta e o quarto dele, exactamente, como o deixara, à sua espera! Se, um dia, fosse preciso...
Quando o Gui nasceu, tiveram a primeira grande discussão. Ele queria o menino entregue à mãe dele, porque não confiava na sogra; ela, no entanto, tinha prometido à mãe que seria ela que tomaria conta do neto.
Foi uma briga feia que quase os deixou à beira da ruptura. Por fim, decidiram que a criança iria para um infantário, que escolheram com infinito cuidado e pago a peso de ouro.
Contudo, para gáudio de Paulina, há um ano que ela seguia, religiosamente, o ritual de entregar e ir buscar o Gui, a casa da avó materna, continuando, no entanto, a pagar o óptimo infantário, como se a criança lá estivesse, e onde, Paulina não se cansava de afirmar, o filho era muito bem tratado! Na verdade, estava lindo, esperto e simpático, o pequeno Gui, que era o orgulho e o enlevo de Ricardo!
Paulina olhou, de soslaio, para o marido que continuava a torcer, nervoso, pelo seu clube e sorriu. Um sorriso matreiro, quase mau que lhe iluminou o rosto macilento, a pele um pouco baça.
Ele nem sonha que o Gui está com a minha mãe! Nem a sogra, essa megera que interferia tanto na vida deles!
Mas, ela pregara-lhe uma valente partida! E, imersa nos seus pensamentos, Paulina riu baixinho, com deleite.
“ Porque te estás a rir?” perguntou Ricardo, surpreendido.
“ Eu, a rir?”
“ Sim, exactamente tu, a rir sozinha!”
“Ora, não é nada! Estou a recordar algumas marotices do Gui!”
Ricardo calou-se, depois pareceu que ía dizer qualquer coisa mas, continuou, silencioso, a ver o jogo.

E, ela continuou a seguir, muito quieta, o fio do seu pensamento...
Um dia a sogra fora a casa deles e Paulina serviu-lhe um chá, com bolo de chocolate, que fez para a ocasião e umas sandes gostosas, pequeninas e fofas.
Quando estava na cozinha a preparar o tabuleiro, com uma bonita toalhinha de linho, caprichosamente bordada e com o delicado serviço de porcelana, prenda de casamento, lembrou-se do laxante que lhe tinham trazido do Brasil. Era um produto especial, em pó, sem gosto, que se desfazia em qualquer bebida e muito eficaz.
Decidiu, então, pôr um pouco de laxante na chávena de chá da sogra que o tomou, deliciada e foi pedindo mais. Paulina, divertida, foi-lhe servindo chá, com um bocadinho de laxante.
No dia seguinte, Ricardo chegou a casa muito preocupado porque a mãe estava doente, com uma séria gastro-enterite! Devia ter sido de um arroz de marisco que comera ao jantar...
Esteve assim uma semana!

O futebol acabou com a vitória do clube do Ricardo. Satisfeito com o resultado, levantou-se, espreguiçou-se e perguntou:
“ Ficas, ou desligo o televisor?”
“ Fico ainda mais um bocadinho! Vou já!”
Com um sorrisinho cínico, Paulina decidiu que estava na hora de oferecer outro requintado chá à sogra que a hostilizava tanto mas, que ela, como dedicada nora que era, recebia com tanta simpatia!
Se a sogra adoecesse, se desaparecesse, tudo se tornaria tão fácil!
Afinal, sobre ela pairava, cada vez mais próxima e aflitiva, a ameaça de, um dia, ter de afastar o Gui dos cuidados da avó materna...

De repente, lembrou-se da sua amiga, de longa data, a Sofia. E, subitamente, a picada venenosa da inveja sobressaltou-a.
Sofia era tudo o que ela queria ter sido: bonita, elegante e independente. Nunca quisera casar. Vivia com o namorado, um rapaz bem parecido, culto e interessante mas, a casa era dela! Uma casa alegre, espaçosa, decorada com gosto e com um lindo jardim, onde brincava a linda e meiga cadela labrador, a Naomi, a princesa reinante! Tinham estado com eles, umas semanas antes, e jantado juntos, lá em casa. A mesa estava posta com elegância, a comida, vinda de fora, estava óptima e o vinho delicioso! A Sofia recebeu-os fresca, sorridente e perfeita. Como uma rosa, a florir, na primavera.
No entanto,trabalhava muito: dava pareceres de Direito, leccionava no Ensino Superior, estava a acabar a tese de doutoramento, falava várias línguas. E, continuava a investir, fortemente, na sua formação!
Os anos, porém, pareciam não passar por ela!
A Sofia tinha uma vida tão diferente da dela! E Paulina sentiu-se tão limitada, tão comezinha, tão sem graça, tão infeliz, e tão... enraivecida!

Será possível que dois eus diferentes partilhem a minha personalidade, pensou, subitamente inquieta!
Um, o seu eu das boas recordações, dos amigos, do afecto, que fazia, dela, a Paulina simpática e solidária de quem todos, normalmente, gostavam! O outro, o seu eu tenebroso, do ciúme, e da raiva que fazia dela a amiga invejosa; a nora vingativa e velhaca, que já idealizava oferecer à sogra outro chá com laxante e uma pretensa simpatia; a mulher mentirosa, com parte do casamento assente numa tremenda falsidade que envolvia o filho, uma criança inocente e um marido confiante!
Será mesmo confiante ou, também ele, um credenciado fingidor, por cansaço e por comodismo?
Estes dois eus que se degladiam ferozmente, dentro de mim, torturam-me e esgotam-me, confessou, em segredo, a si própria!
Às vezes, Paulina sentia um imenso gozo e um impulso irresistível de deixar à solta esse seu eu matreiro e malévolo que, no entanto, lhe infligia, também, tanta ansiedade, tanta solidão!
Talvez eu destrua um pedaço deste meu eu esconso, quando o Gui começar a falar e tiver mesmo de ir para o infantário, pensou ansiosa!
Mas, eram horas de dormir e por enquanto não queria pensar nisso!
Por enquanto... não!

MC

Mudam-se os tempos...

Lembro-me, de a Liberdade de Expressão, uma das mais preciosas conquistas do 25 de Abril, merecer, de todos, uma imensa atenção e um vaidoso carinho, e, ter sido, agora, tão fortemente abalada, com a suspensão do Jornal Nacional da TVI que, quer se goste ou se abomine este tipo de jornalismo, constituía um sinal claro, dessa mesma liberdade!
Lembro-me, de a vida ser uma dádiva, não ter preço e matar, violentar e violar serem considerados crimes hediondos, sem perdão e, como tal, exemplarmente punidos!
Lembro-me, de a honra, o respeito, o sentido de responsabilidade e a tolerância fazerem a diferença e o egoísmo, a arrogância, o oportunismo e a ingratidão tornarem tudo tão igual, entre si,tudo tão perdido, no lado mais escuro da vida!
Lembro-me, de na Escola se ensinar com saber e exigência e de se aprender com interesse e empenhamento e a casa, mesmo a mais modesta, ser o aconchego morno e disciplinado, dos afectos, da formação moral e cívica, das brincadeiras e dos sorrisos!
Lembro-me, de a educação, a gentileza e a correcção no trato serem tão naturais, como respirar!
Encaro o futuro com Esperança, não sou saudosista e, todos sabemos que os tempos, agora mais do que nunca, estão em permanente mudança! E, isso é óptimo!
Mas, também sabemos que os princípios e os valores básicos da humanitude e da democracia, são eternos e sagrados mesmo quando, mudando-se os tempos, se mudam as vontades!

MC

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Terá havido mudança positiva no Ensino...?

Foi num ambiente festivo que o Primeiro Ministro e a Ministra da Educação apresentaram, na Escola Secundária D. Dinis, em Lisboa, os bons resultados, em termos de uma considerável redução no abandono escolar e no insucesso, no ano lectivo transacto.

É, no entanto, legítima a questão, se terá havido, de facto, uma mudança positiva na Educação ou, se estaremos, simplesmente, perante um perigoso facilitismo, traduzido por uma drástica simplificação de conteúdos programáticos e uma quase ausência de rigor e exigência na avaliação dos alunos, imposta pela tutela, na Escola Pública, com vista à obtenção de bonitas estatísticas, para apresentar na UE!!
Os Docentes sabem bem, quanta burocracia, quantos relatórios e quanta papelada têm de preencher, para “ reter ” um aluno!

A ideia, incontornável, de um demagógico facilitismo na Escola Pública, não é, pois, um insulto aos professores, como afirmou o Primeiro Ministro. É uma realidade!

Insulto, foram os rasgados e inusitados elogios, agora tecidos aos Professores, a um mês de eleições, depois de quatro longos anos de calvário, vividos sob uma intolerável pressão da tutela e a ser, por ela, continuamente, desvarolizados, desconsiderados e desautorizados!
Sabemos que não foi possível à Ministra da Educação, ter feito qualquer mudança positiva na Escola, depois de, como afirmou, para ganhar a opinião pública, ter perdido os Professores, precisamente, os principais agentes de Ensino!

MC

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Assim... uma espécie de Ramadão...

O Ramadão, o nono mês do calendário islâmico, começou, com a entrada da Lua, na fase de lua nova e é um dos cinco pilares do Islão.
Este é, para os islamitas, um mês santo, uma época de espiritualidade viva , de recolhimento e de profunda reflexão.

Precisávamos todos, nestes dias de turbulência, de um tempo assim, uma espécie de Ramadão, dedicado, ao nosso mundo interior.
Nesse tempo de auto-conhecimento, os nossos políticos, no geral, e os nossos governantes, em particular, poderiam e deveriam fazer uma profunda reflexão sobre o estado da Nação!

Os senhores detentores do poder deveriam, humildemente, reflectir sobre as esplendorosas promessas que agitam, sedutoras, como bandeiras de vitória mas que, sabem-no bem, são impossíveis de cumprir; deveriam debruçar a sua atenção, sobre a Escola Pública, ferida de morte pelo facilitismo, sobre a fraude que é o programa “Novas Oportunidades” e sobre o engano que são os Cursos Tecnológicos; deveriam, arrependidos, penitenciar-se pelo desastre que é o Serviço Nacional de Saúde, que tem vindo a ser, paulatinamente, destruído; deveriam pedir perdão pelo caos que grassa na Justiça, enfraquecida e descredibilizada pela montanha de processos que se arrastam pelos Tribunais e pela voragem de legislação, mal feita ou, feita sob medida; deveriam lamentar, amargamente, os milhões de Euros desbaratados e gastos em projectos, em seguida, postos de lado, para as obras públicas megalómanas, do nosso endividamento!

Num tempo assim, de auto-disciplina, de respeito e de serenidade, os nossos governantes deveriam, também, fazer uma profunda reflexão sobre o nepotismo, a corrupção, os favorecimentos ilícitos, as mentiras descaradas, os exílios dourados, já destinados a ex-membros do governo e as reformas de luxo de tantos!

Nessa espécie de santo Ramadão, quem nos governa deveria, ainda, reflectir sobre o ousado vitupério que é o auto-elogio, especialmente, perante a calamidade do desemprego galopante, das falências em catadupa, da miséria em crescendo, no país, e da vergonha e do desencanto de um povo cada vez mais pobre, cada vez mais triste mas, também, cada vez mais passivo e apático! Talvez, porque já nada pareça valer a pena!

No período conturbado e ruidoso de eleições que se aproxima, mesmo só uns laivos do espírito introspectivo, calmo, generoso do Ramadão, seriam altamente benéficos para o nosso cansaço!

MC
( Não publicado no JN! Obviamente!!)

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

A Justiça está uma velha decrépita!

A pujante representação da Justiça, uma mulher altiva, que impõe respeito, com os olhos vendados para se manter imparcial e longe de compadrios e da corrupção e apoiada à espada, para bem julgar, é, hoje, uma velha decrépita, a venda meio-arrancada, que, perdida a altivez, se arrasta, claudicando, servindo-lhe de apoio, a espada romba!
Uma Justiça envelhecida, que suscita dúvidas!

Imersa numa vertigem de legislação, a Justiça enfraquece e perde credibilidade!
Hoje, quem legisla, deixou, em muitas circunstâncias, de criar leis gerais e abstractas para, por via de influências, passar a legislar, com vista a casos concretos, tendo, como objectivo, as políticas de interesse!
O legislador esclarecido, imparcial e experiente, foi sendo afastado pelo jovem politicamente comprometido, arrogante e pouco habilitado. A título de exemplo, note-se que o Regulamento de Custas, depois de publicado, foi sujeito a três alterações, antes da sua entrada em vigor!

No geral, os juízes não merecem ser tratados com a arrogância destes últimos anos! Cumprem a sua missão de aplicadores da justiça, embora, nem sempre sigam a cartilha que lhes é imposta, p. exp, no que diz respeito ao princípio de “Continuidade de Audiência”, ( a não interrupção do processo em curso, admitindo, pelo meio, outros processos, ficando aquele suspenso, por ser considerado mais complicado ou, simplesmente, por gestão deficitária), princípio que, a não ser observado, é uma das fortes razões para que os processos se arrastem, anos e anos, pelos tribunais, para desespero de quem a eles recorre!

Os advogados são cada vez mais, não se especializam e procuram, na lei, soluções para os seus variados casos, sem saberem, muitas vezes, onde as encontrar, dado o disparo legislativo e a formação duvidosa que lhes é ministrada, no estágio.

Os funcionários judiciais, atolados em processos e confinados a cubículos, são continuamente surpreendidos por alterações informáticas, e pela complexa avalancha de leis, sobre as quais, não lhes é dada formação adequada, que lhes permita cumprir, cabalmente, as suas funções.

A Justiça está mergulhada numa profunda crise e necessita urgentemente, de uma reforma que, não se compadecendo com os “facilitismos” do simplex, tem de ser feita com inteligência, saber, rigor e responsabilidade!

MC

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Choveram promessas, no CCB...

Na noite de quarta-feira passada, não choveu prata mas, choveram promessas, no CCB! Sócrates apresentou o seu Programa Eleitoral, com os olhos postos numa vitória, com maioria absoluta!Que não interessa, de modo nenhum, ao país!

Sócrates que, em quatro anos, não conseguiu mudar estruturalmente o país e não cumpriu as grandiosas promessas, feitas em 2005, deixa um povo mais pobre, deprimido e farto de ser tratado com arrogância e, em muitas áreas, mesmo em acesa convulsão!

Não choveu prata na noite de quarta-feira, no CCB, mas choveram promessas de uma vida melhor e mais fácil para todos, promessas vagas, e algumas, demagógicas, como os 200 Euros oferecidos aos bebés que nasçam a partir de agora, com um nome demasiado pomposo, para a ridícula quantia, “Conta Poupança – Futuro”, embora tudo indique que, em 2010, a recessão deva continuar, que o pior esteja ainda para vir, em termos sociais e de desemprego e que o défice possa atingir entre 6% a 7%!

Sem reformas reais, num país no limiar da pobreza e imerso num profundo cansaço , Sócrates tenta, desesperadamente, ganhar votos, acenando com a defesa do Estado Social, sem que o Estado tenha dinheiro para suportar as várias medidas de ordem social, que anunciou! Prometeu não desistir da concretização das grandes obras, nomeadamente, do TGV, uma teimosia megalómana que, na opinião de muitos observadores, irá levar o país à ruína!

Enredado no torvelinho das suas promessas, em que já ninguém acredita, Sócrates não falou, concretamente, no essencial: como sair da crise e, depois, como controlar o défice orçamental público!
Era isso que devia constar, no seu Programa Eleitoral! De promessas está o Inferno cheio! E, o país também...

MC