Ele estava sentado no jacuzzi da piscina do hotel, talvez demasiado caro mas, a verdade é que, ultimamente, tudo, na sua vida, se tinha tornado muito relativo. Desde que adoecera, a espessura do tempo modificara-se, tinha-se tornado mais fluída, mais fugidia, como fluíam e se esbatiam, agora, as cores fortes e incandescentes, daquele entardecer tropical.
Sentia-se confortável e quase sem dores. O sol, embora já menos intenso, aquecia-lhe a pele e a água, em rebuliço, adormecia-lhe os ossos cansados e enfraquecidos.
Tinha estado muito doente, estava ainda doente, mas aquelas duas semanas longe de tudo o que lhe lembrava decadência e dor, eram preciosas. Para ele, para a mulher e para a filha que também sempre estivera, terna e vigilante, a seu lado.
A doença assaltara-o, de repente e deixara-o prostrado, num susto medonho e num espanto gelado! É sempre assim, pensou! Um susto e um espanto! E, depois, aquela sensação, sem misericórdia, do mundo a desabar, fragorosamente! E, tudo isso contido na pergunta inútil e inconformada: “ Porquê eu?”
Sabia que tinha mau aspecto! Estava muito magro, o cabelo ralo e baço, muito grisalho, os olhos , que tinham sido bonitos, sem brilho e encovados e a pele amarelada e envelhecida, pelos tratamentos agressivos.
O pior tinha passado, dissera o médico. E ele queria acreditar, precisava de acreditar que iria vencer a doença! Mais por elas, até, do que por si!
Três mulheres sentaram-se, a seu lado, no jacuzzi. Seriam, talvez, a mãe e duas filhas. Portuguesas, como ele, em busca de calor e de sol, num país tropical.
Exuberantes de carnes e de risos, falavam alto e gesticulavam muito, numa agitação frenética e completamente dissonante da serenidade macia, daquele entardecer.
Pelo canto do olho, viu que elas o observavam, contraíam os rostos, em esgares de escárnio, até que, suas gargalhadas, com cheiro a acinte e a grosseria, rasgaram, subitamente, o ar.
Ele permaneceu quieto, aparentemente indiferente, como se não as visse, nem as entendesse.
E, pontilhada de risos alvares e pretensiosos rolares de olhos, começou a desenrolar-se, entre elas, uma patética conversa.
“ Já repararam, neste homem? Parece que tem sida, coitado!
É tão magro e tão esquisito!”
“ É esquisito, é! Mas, já o vi com duas madamas, todas espampanantes. Uma loiraça, mais velha e uma meio-ruiva, mais nova!”
“ Eu também já os vi! Ele parece que morreu e ainda não sabe mas será fogoso e gostará de variedade!”
“ Pois é! As madamas andam sempre muito bem vestidas! Ali, o dinheiro fluí! Realmente, só por dinheiro!”
“ Eu, nem por dinheiro, queria alguma coisa com este destroço de homem! Safa!”
“ Elas parecem duas perúas, de facto! Especialmente a loiraça!”
“ Já repararam que quase todas as mulheres, depois dos quarenta, são loiras? Ficam todas iguais! Que suburbano!Voltando aqui ao gentleman...”
“ Cala-te que ele pode entender!”
“ Entender? A palavra, talvez, mas a conversa, não. Como eu ía a dizer, o cavalheiro, (gostas mais, assim?), deve gostar de uma boa “menáge à trois”!
“ Cala-te, que ele pode mesmo entender, sei lá! Pode ser francês...”
“ Deve ser americano, não está a perceber nada! A verdade é que não deviam deixar gente, com este aspecto, frequentar a piscina! Nem quero pensar nisso, mas... imagina que tem mesmo sida?”
E, riram alarvemente, enquanto davam palmadinhas na água em torvelinho ou, tentavam prender nas mãos, o revolteio da espuma.
Ele continuava a olhar em frente, sem fixar os olhos, como para os descansar, e permanecia imóvel e calado, como se não entendesse a malícia viscosa que rastejava, virulenta, mesmo ali, a seu lado.
O doirado do sol do fim de tarde, refulgia no azul límpido da água que, numa girândola de pequenos jactos, acariciava o seu corpo dorido e cansado, aconchegando-o!
De repente, viu a mulher e a filha que se aproximavam. Sorriu, orgulhoso delas. Eram lindas e corajosas!
Elas eram, de facto, o amor da sua vida, o seu aconchego, a força poderosa que o tinha impedido de desistir! De tudo!
“ Olhem, ali vêm as damas! São convencidas, mas lá que são giras, são! Para estarem com um homem com o este aspecto, este esqueleto ambulante, velho e feio, só mesmo por dinheiro, muito dinheiro mesmo! As madamas são finas e devem estar a governar-se, muito bem!”
E, riram, risadas desbragadas que ressumavam um profundo despeito e uma desmedida inveja!
Então, enojado, farto daquela conversa ordinária, dos risos estridentes, das carnes gordas, a saltarem dos biquinis demasiado pequenos, levantou-se devagar, fixou-as com um desprezo e uma dureza que as paralisou e emudeceu e, disse-lhes com uma raiva mal contida:
“ As víboras rastejam nas profundezas dos fossos negros, imundos e letais, onde pertencem! Nunca, impunemente, entre pessoas! “
MC
segunda-feira, 21 de setembro de 2009
sábado, 19 de setembro de 2009
Orquídea
Chamava-se Orquídea e era tão bonita e delicada, como a flor de que tinha o nome.
Foi minha aluna, quando, há muito tempo, há tanto tempo que já não o sei contar, eu leccionava, à noite, numa escola, à Estrela, em Lisboa.
Orquídea era alta e esguia, tinha uns lindíssimos olhos verdes, e os cabelos pretos caíam- lhe sobre os ombros, numa cascata rebelde, de caracóis largos e brilhantes.
Era uma aluna simpática e interessada, embora, às vezes, parecesse perdida em sonhos, de que acordava bruscamente e em sobressalto,quando eu a interpelava directamente. Olhava, então, meio- atordoada, para mim, com os grandes olhos verdes, muito abertos e quase me apetecia pedir-lhe desculpa por a ter feito descer, assim de repente, à comezinha rotina, da aula! Qualquer aula, por muito interessante que seja, é sempre maçadora, quando comparada com o sonho.
Uma noite, vi-a com um rapaz alto, bem parecido que, pelo modo como a abraçava, pelos ombros, devia ser o namorado. Ele escutava-a embevecido e olhava para ela, com uma adoração enternecida. Ela, contudo, parecia desprendida, e tão alheada, que nem reparou, quando passei por eles.
Nesse momento, vi, à minha frente, o retrato vivo de certas relações, em que um ama irremediavelmente e o outro, deixa-se, passivamente, amar.
O ano lectivo acabou e Orquídea, tendo acabado o curso que frequentava, saíu da escola. Arrumei-a, então, na gaveta onde guardo todos os que foram meus alunos e donde só saem, se nas voltas da vida, os torno a encontrar ou se, de algum modo, alguma maré do destino, os traz até mim.
Anos mais tarde, ao dobrar uma dessas esquinas do meu caminho, encontrei a Orquídea numa confeitaria, no Rossio. Abraçou-me com efusão e reparei que, junto dela, estava o mesmo rapaz que, fiquei a saber, era agora o seu marido.
Sou, naturalmente, discreta e não faço perguntas! Por isso, ainda hoje não sei porque perguntei se estava tudo bem com eles.
Ele sorriu ligeiramente, corou, disse que sim, numa voz sumida e lançou-lhe o olhar triste de um cãozinho assustado que abana o rabo, ansioso e terno, sempre que o dono, eternamente severo e descontente, está por perto.
A Orquídea, contudo, com uma voz áspera, meio- estrangulada mas dura, respondeu, intempestiva, com secura breve: “Não!”.
Olhei-a atónita e encontrei apenas a parede fria, implacável mas belíssima, dos seus olhos verdes. Sacudiu a cascata de caracóis pretos que ondulava, rebelde, sobre os seus ombros, e desviou o olhar, num suspiro de profundo enfado.
A virulência, a dureza e a indiferença de Orquídea, constrastava brutalmente, com a delicada beleza dos traços puros do seu rosto.
O marido, a seu lado, agora, um bloco de gelo, tenso, a olhar em alvo, como se estivesse muito longe dali, lembrava uma casa branca, solitária, de persianas severamente corridas, uma casa sem vida, inexpressiva, abandonada numa imensidão deserta, tal a impressão de vazio e de morte, que a rigidez do seu rosto e o desligamento gélido da sua postura, me deram.
Apeteceu-me, nesse instante de infinita tristeza e de desamparo, passar-lhe a mão pelos cabelos aloirados e, como se fosse um miúdo choroso, por ter caído e esfolado os joelhos, poder dizer-lhe com um sorriso e convicção: “Está tudo bem! Vai ficar tudo bem!”
Desajeitadamente, despedi-me e afastei-me depressa, ansiosa por chegar a casa para tomar uma aspirina que abrandasse a terrível dor de cabeça que quase me cegava e beber um chá bem quente que me confortasse a alma e dissolvesse o espanto de gelo que a envolvia.
Um ou dois anos depois, vi a Orquídea sair de uma boutique requintada e exclusiva, na Avenida de Roma, e cuja montra eu admirava. Seguia-a uma empregada que carregava vários sacos de compras.
Nunca saberei se ela me viu quando passou por mim! Bonita, elegante e segura de si, sacudiu a cascata de caracóis pretos que lhe emoldurava o rosto e brilhava, suavemente, ao sol de inverno e entrou, sorridente, num carro luxuoso, já com a porta aberta por um perfilado motorista, e onde a esperava um homem de cabelos grisalhos.
O motorista fechou, delicadamente, a porta, tomou o seu lugar, ao volante e o carro arrancou silenciosamente.
MC
Foi minha aluna, quando, há muito tempo, há tanto tempo que já não o sei contar, eu leccionava, à noite, numa escola, à Estrela, em Lisboa.
Orquídea era alta e esguia, tinha uns lindíssimos olhos verdes, e os cabelos pretos caíam- lhe sobre os ombros, numa cascata rebelde, de caracóis largos e brilhantes.
Era uma aluna simpática e interessada, embora, às vezes, parecesse perdida em sonhos, de que acordava bruscamente e em sobressalto,quando eu a interpelava directamente. Olhava, então, meio- atordoada, para mim, com os grandes olhos verdes, muito abertos e quase me apetecia pedir-lhe desculpa por a ter feito descer, assim de repente, à comezinha rotina, da aula! Qualquer aula, por muito interessante que seja, é sempre maçadora, quando comparada com o sonho.
Uma noite, vi-a com um rapaz alto, bem parecido que, pelo modo como a abraçava, pelos ombros, devia ser o namorado. Ele escutava-a embevecido e olhava para ela, com uma adoração enternecida. Ela, contudo, parecia desprendida, e tão alheada, que nem reparou, quando passei por eles.
Nesse momento, vi, à minha frente, o retrato vivo de certas relações, em que um ama irremediavelmente e o outro, deixa-se, passivamente, amar.
O ano lectivo acabou e Orquídea, tendo acabado o curso que frequentava, saíu da escola. Arrumei-a, então, na gaveta onde guardo todos os que foram meus alunos e donde só saem, se nas voltas da vida, os torno a encontrar ou se, de algum modo, alguma maré do destino, os traz até mim.
Anos mais tarde, ao dobrar uma dessas esquinas do meu caminho, encontrei a Orquídea numa confeitaria, no Rossio. Abraçou-me com efusão e reparei que, junto dela, estava o mesmo rapaz que, fiquei a saber, era agora o seu marido.
Sou, naturalmente, discreta e não faço perguntas! Por isso, ainda hoje não sei porque perguntei se estava tudo bem com eles.
Ele sorriu ligeiramente, corou, disse que sim, numa voz sumida e lançou-lhe o olhar triste de um cãozinho assustado que abana o rabo, ansioso e terno, sempre que o dono, eternamente severo e descontente, está por perto.
A Orquídea, contudo, com uma voz áspera, meio- estrangulada mas dura, respondeu, intempestiva, com secura breve: “Não!”.
Olhei-a atónita e encontrei apenas a parede fria, implacável mas belíssima, dos seus olhos verdes. Sacudiu a cascata de caracóis pretos que ondulava, rebelde, sobre os seus ombros, e desviou o olhar, num suspiro de profundo enfado.
A virulência, a dureza e a indiferença de Orquídea, constrastava brutalmente, com a delicada beleza dos traços puros do seu rosto.
O marido, a seu lado, agora, um bloco de gelo, tenso, a olhar em alvo, como se estivesse muito longe dali, lembrava uma casa branca, solitária, de persianas severamente corridas, uma casa sem vida, inexpressiva, abandonada numa imensidão deserta, tal a impressão de vazio e de morte, que a rigidez do seu rosto e o desligamento gélido da sua postura, me deram.
Apeteceu-me, nesse instante de infinita tristeza e de desamparo, passar-lhe a mão pelos cabelos aloirados e, como se fosse um miúdo choroso, por ter caído e esfolado os joelhos, poder dizer-lhe com um sorriso e convicção: “Está tudo bem! Vai ficar tudo bem!”
Desajeitadamente, despedi-me e afastei-me depressa, ansiosa por chegar a casa para tomar uma aspirina que abrandasse a terrível dor de cabeça que quase me cegava e beber um chá bem quente que me confortasse a alma e dissolvesse o espanto de gelo que a envolvia.
Um ou dois anos depois, vi a Orquídea sair de uma boutique requintada e exclusiva, na Avenida de Roma, e cuja montra eu admirava. Seguia-a uma empregada que carregava vários sacos de compras.
Nunca saberei se ela me viu quando passou por mim! Bonita, elegante e segura de si, sacudiu a cascata de caracóis pretos que lhe emoldurava o rosto e brilhava, suavemente, ao sol de inverno e entrou, sorridente, num carro luxuoso, já com a porta aberta por um perfilado motorista, e onde a esperava um homem de cabelos grisalhos.
O motorista fechou, delicadamente, a porta, tomou o seu lugar, ao volante e o carro arrancou silenciosamente.
MC
Casamento, mentiras e ... chá!
Tinham ficado, em casa, nessa noite de Sábado. Ricardo queria ver o jogo de futebol e Paulina estava tão cansada e deprimida que nem se importou de não sair.
O Gui, o filho de um ano, dormia placidamente.
Paulina, sentada a lado de Ricardo, fingia seguir o jogo.
Presa num vazio, numa flutuação e num desencorajamento, que já lhe eram familiares, ía recordando, ao acaso, pedaços de vida que, às vezes, nem lhe pareciam ser a sua.
Tinham namorado sete anos e depois casado. Paulina fora educada para casar, ser dona de casa e constituír família, sem pensar mais, na carreira profissional
A mãe, que o marido deixara, era ela pequenina, sempre lhe dissera, com uma surpreendente convicção, que só um homem, em casa, dá estabilidade e segurança! Depois, falava-lhe dos imensos sacrifícios que fizera para a criar, para a educar e para lhe dar o curso de Gestão! Sozinha!E, em vez de um legítimo orgulho, havia uma frustração triste na voz de mãe e um inexplicável desgosto, no brilho húmido dos seus olhos que, simultaneamente, a enervavam e a comoviam!
Estava casada há seis anos. Casara verdadeiramente apaixonada? Paulina, realmente não sabia!
O namoro com Ricardo fora sempre muito tranquilo, sem grandes quezílias, mas também sem arroubos ardentes de paixão, sem cenas loucas, causadas pela chama incandescente, do ciúme e, simplesmente, quando puderam casar, casaram! Como previsto!
Ao princípio, no entanto, tinha sido, até, excitante: o cheiro a novo do apartamento, as mobílias bonitas, a rescenderem a madeira encerada, os cortinados, escolhidos com muito cuidado, e a cairem, elegantes e tersos, até ao chão, os tapetes fofos, onde os pés se afundavam e se perdiam, os primeiros cozinhados, as primeiras visitas dos amigos! Tinha sido mesmo uma exaltação, fazer amor em todas as divisões da casa!
Luxos e fantasias! Pequenos luxos e pequenas fantasias, como pequena e previsível, era, agora, a sua vida, pensou insatisfeita!
Sentia-se emparedada numa rotina pesada que a sofucava e não acabava nunca! Não era esta a vida que sonhara para si!
O Ricardo continuava com os olhos presos no ecrã do televisor, a seguir, meio-estupidificado, o jogo.
Sou feliz no casamento? Não, não sou!, pensou.
“ Que disseste, Lina?”
“ Nada! Não falei!” Ele olhou-a, por momentos, desconfiado. “ “ Estou a organizar a semana e, se calhar, falei alto, sem querer!”
Tinha de ter cuidado, pensou, e não confessar, mesmo baixinho, o frustrante desapontamento que era o seu dia a dia! Pelo menos, por enquanto...
Quando o casamento parecia estar a entrar em queda livre, ficara grávida do Gui. Foi uma alegria e um espanto! Já tinha desistido da ideia de ter filhos mas, essa esperança deu um impulso novo ao casamento e fizera renascer a relação deles, das cinzas quase mortas, de um amor, pouco mais que tépido!
Paulina viveu a gravidez, no chamado estado de graça! Talvez este seja mais um lugar comum, pensou sorrindo mas, como a mãe dizia, o que é a vida, senão um conformado lugar comum?
Nesses meses, mesmo com uma barriga disforme, sentira-se quase bonita, importante, e deixara-se mimar, como se o mimo e uma especial atenção lhe fossem, simplesmente, devidos!
O Ricardo tornou-se, então, inacreditavelmente solícito e terno!
Ele nunca fora um homem interessante e os anos não estavam a ser bondosos com ele! Engordara, e os traços grosseiros do seu rosto, tornavam-se ainda mais grosseiros e pesados.
Paulina, no entanto, tinha de reconhecer que era um homem bom e generoso.
A sogra que tinha sido sempre muito desligada, mas simpática, transformou-se, depois do casamento deles! Recebia Paulina com indisfarçada frieza e aproximou-se, ternamente, do filho. Convidava-o para almocinhos, sem a mulher, telefonava-lhe e chegara mesmo a dizer-lhe que a porta de casa estava sempre aberta e o quarto dele, exactamente, como o deixara, à sua espera! Se, um dia, fosse preciso...
Quando o Gui nasceu, tiveram a primeira grande discussão. Ele queria o menino entregue à mãe dele, porque não confiava na sogra; ela, no entanto, tinha prometido à mãe que seria ela que tomaria conta do neto.
Foi uma briga feia que quase os deixou à beira da ruptura. Por fim, decidiram que a criança iria para um infantário, que escolheram com infinito cuidado e pago a peso de ouro.
Contudo, para gáudio de Paulina, há um ano que ela seguia, religiosamente, o ritual de entregar e ir buscar o Gui, a casa da avó materna, continuando, no entanto, a pagar o óptimo infantário, como se a criança lá estivesse, e onde, Paulina não se cansava de afirmar, o filho era muito bem tratado! Na verdade, estava lindo, esperto e simpático, o pequeno Gui, que era o orgulho e o enlevo de Ricardo!
Paulina olhou, de soslaio, para o marido que continuava a torcer, nervoso, pelo seu clube e sorriu. Um sorriso matreiro, quase mau que lhe iluminou o rosto macilento, a pele um pouco baça.
Ele nem sonha que o Gui está com a minha mãe! Nem a sogra, essa megera que interferia tanto na vida deles!
Mas, ela pregara-lhe uma valente partida! E, imersa nos seus pensamentos, Paulina riu baixinho, com deleite.
“ Porque te estás a rir?” perguntou Ricardo, surpreendido.
“ Eu, a rir?”
“ Sim, exactamente tu, a rir sozinha!”
“Ora, não é nada! Estou a recordar algumas marotices do Gui!”
Ricardo calou-se, depois pareceu que ía dizer qualquer coisa mas, continuou, silencioso, a ver o jogo.
E, ela continuou a seguir, muito quieta, o fio do seu pensamento...
Um dia a sogra fora a casa deles e Paulina serviu-lhe um chá, com bolo de chocolate, que fez para a ocasião e umas sandes gostosas, pequeninas e fofas.
Quando estava na cozinha a preparar o tabuleiro, com uma bonita toalhinha de linho, caprichosamente bordada e com o delicado serviço de porcelana, prenda de casamento, lembrou-se do laxante que lhe tinham trazido do Brasil. Era um produto especial, em pó, sem gosto, que se desfazia em qualquer bebida e muito eficaz.
Decidiu, então, pôr um pouco de laxante na chávena de chá da sogra que o tomou, deliciada e foi pedindo mais. Paulina, divertida, foi-lhe servindo chá, com um bocadinho de laxante.
No dia seguinte, Ricardo chegou a casa muito preocupado porque a mãe estava doente, com uma séria gastro-enterite! Devia ter sido de um arroz de marisco que comera ao jantar...
Esteve assim uma semana!
O futebol acabou com a vitória do clube do Ricardo. Satisfeito com o resultado, levantou-se, espreguiçou-se e perguntou:
“ Ficas, ou desligo o televisor?”
“ Fico ainda mais um bocadinho! Vou já!”
Com um sorrisinho cínico, Paulina decidiu que estava na hora de oferecer outro requintado chá à sogra que a hostilizava tanto mas, que ela, como dedicada nora que era, recebia com tanta simpatia!
Se a sogra adoecesse, se desaparecesse, tudo se tornaria tão fácil!
Afinal, sobre ela pairava, cada vez mais próxima e aflitiva, a ameaça de, um dia, ter de afastar o Gui dos cuidados da avó materna...
De repente, lembrou-se da sua amiga, de longa data, a Sofia. E, subitamente, a picada venenosa da inveja sobressaltou-a.
Sofia era tudo o que ela queria ter sido: bonita, elegante e independente. Nunca quisera casar. Vivia com o namorado, um rapaz bem parecido, culto e interessante mas, a casa era dela! Uma casa alegre, espaçosa, decorada com gosto e com um lindo jardim, onde brincava a linda e meiga cadela labrador, a Naomi, a princesa reinante! Tinham estado com eles, umas semanas antes, e jantado juntos, lá em casa. A mesa estava posta com elegância, a comida, vinda de fora, estava óptima e o vinho delicioso! A Sofia recebeu-os fresca, sorridente e perfeita. Como uma rosa, a florir, na primavera.
No entanto,trabalhava muito: dava pareceres de Direito, leccionava no Ensino Superior, estava a acabar a tese de doutoramento, falava várias línguas. E, continuava a investir, fortemente, na sua formação!
Os anos, porém, pareciam não passar por ela!
A Sofia tinha uma vida tão diferente da dela! E Paulina sentiu-se tão limitada, tão comezinha, tão sem graça, tão infeliz, e tão... enraivecida!
Será possível que dois eus diferentes partilhem a minha personalidade, pensou, subitamente inquieta!
Um, o seu eu das boas recordações, dos amigos, do afecto, que fazia, dela, a Paulina simpática e solidária de quem todos, normalmente, gostavam! O outro, o seu eu tenebroso, do ciúme, e da raiva que fazia dela a amiga invejosa; a nora vingativa e velhaca, que já idealizava oferecer à sogra outro chá com laxante e uma pretensa simpatia; a mulher mentirosa, com parte do casamento assente numa tremenda falsidade que envolvia o filho, uma criança inocente e um marido confiante!
Será mesmo confiante ou, também ele, um credenciado fingidor, por cansaço e por comodismo?
Estes dois eus que se degladiam ferozmente, dentro de mim, torturam-me e esgotam-me, confessou, em segredo, a si própria!
Às vezes, Paulina sentia um imenso gozo e um impulso irresistível de deixar à solta esse seu eu matreiro e malévolo que, no entanto, lhe infligia, também, tanta ansiedade, tanta solidão!
Talvez eu destrua um pedaço deste meu eu esconso, quando o Gui começar a falar e tiver mesmo de ir para o infantário, pensou ansiosa!
Mas, eram horas de dormir e por enquanto não queria pensar nisso!
Por enquanto... não!
MC
O Gui, o filho de um ano, dormia placidamente.
Paulina, sentada a lado de Ricardo, fingia seguir o jogo.
Presa num vazio, numa flutuação e num desencorajamento, que já lhe eram familiares, ía recordando, ao acaso, pedaços de vida que, às vezes, nem lhe pareciam ser a sua.
Tinham namorado sete anos e depois casado. Paulina fora educada para casar, ser dona de casa e constituír família, sem pensar mais, na carreira profissional
A mãe, que o marido deixara, era ela pequenina, sempre lhe dissera, com uma surpreendente convicção, que só um homem, em casa, dá estabilidade e segurança! Depois, falava-lhe dos imensos sacrifícios que fizera para a criar, para a educar e para lhe dar o curso de Gestão! Sozinha!E, em vez de um legítimo orgulho, havia uma frustração triste na voz de mãe e um inexplicável desgosto, no brilho húmido dos seus olhos que, simultaneamente, a enervavam e a comoviam!
Estava casada há seis anos. Casara verdadeiramente apaixonada? Paulina, realmente não sabia!
O namoro com Ricardo fora sempre muito tranquilo, sem grandes quezílias, mas também sem arroubos ardentes de paixão, sem cenas loucas, causadas pela chama incandescente, do ciúme e, simplesmente, quando puderam casar, casaram! Como previsto!
Ao princípio, no entanto, tinha sido, até, excitante: o cheiro a novo do apartamento, as mobílias bonitas, a rescenderem a madeira encerada, os cortinados, escolhidos com muito cuidado, e a cairem, elegantes e tersos, até ao chão, os tapetes fofos, onde os pés se afundavam e se perdiam, os primeiros cozinhados, as primeiras visitas dos amigos! Tinha sido mesmo uma exaltação, fazer amor em todas as divisões da casa!
Luxos e fantasias! Pequenos luxos e pequenas fantasias, como pequena e previsível, era, agora, a sua vida, pensou insatisfeita!
Sentia-se emparedada numa rotina pesada que a sofucava e não acabava nunca! Não era esta a vida que sonhara para si!
O Ricardo continuava com os olhos presos no ecrã do televisor, a seguir, meio-estupidificado, o jogo.
Sou feliz no casamento? Não, não sou!, pensou.
“ Que disseste, Lina?”
“ Nada! Não falei!” Ele olhou-a, por momentos, desconfiado. “ “ Estou a organizar a semana e, se calhar, falei alto, sem querer!”
Tinha de ter cuidado, pensou, e não confessar, mesmo baixinho, o frustrante desapontamento que era o seu dia a dia! Pelo menos, por enquanto...
Quando o casamento parecia estar a entrar em queda livre, ficara grávida do Gui. Foi uma alegria e um espanto! Já tinha desistido da ideia de ter filhos mas, essa esperança deu um impulso novo ao casamento e fizera renascer a relação deles, das cinzas quase mortas, de um amor, pouco mais que tépido!
Paulina viveu a gravidez, no chamado estado de graça! Talvez este seja mais um lugar comum, pensou sorrindo mas, como a mãe dizia, o que é a vida, senão um conformado lugar comum?
Nesses meses, mesmo com uma barriga disforme, sentira-se quase bonita, importante, e deixara-se mimar, como se o mimo e uma especial atenção lhe fossem, simplesmente, devidos!
O Ricardo tornou-se, então, inacreditavelmente solícito e terno!
Ele nunca fora um homem interessante e os anos não estavam a ser bondosos com ele! Engordara, e os traços grosseiros do seu rosto, tornavam-se ainda mais grosseiros e pesados.
Paulina, no entanto, tinha de reconhecer que era um homem bom e generoso.
A sogra que tinha sido sempre muito desligada, mas simpática, transformou-se, depois do casamento deles! Recebia Paulina com indisfarçada frieza e aproximou-se, ternamente, do filho. Convidava-o para almocinhos, sem a mulher, telefonava-lhe e chegara mesmo a dizer-lhe que a porta de casa estava sempre aberta e o quarto dele, exactamente, como o deixara, à sua espera! Se, um dia, fosse preciso...
Quando o Gui nasceu, tiveram a primeira grande discussão. Ele queria o menino entregue à mãe dele, porque não confiava na sogra; ela, no entanto, tinha prometido à mãe que seria ela que tomaria conta do neto.
Foi uma briga feia que quase os deixou à beira da ruptura. Por fim, decidiram que a criança iria para um infantário, que escolheram com infinito cuidado e pago a peso de ouro.
Contudo, para gáudio de Paulina, há um ano que ela seguia, religiosamente, o ritual de entregar e ir buscar o Gui, a casa da avó materna, continuando, no entanto, a pagar o óptimo infantário, como se a criança lá estivesse, e onde, Paulina não se cansava de afirmar, o filho era muito bem tratado! Na verdade, estava lindo, esperto e simpático, o pequeno Gui, que era o orgulho e o enlevo de Ricardo!
Paulina olhou, de soslaio, para o marido que continuava a torcer, nervoso, pelo seu clube e sorriu. Um sorriso matreiro, quase mau que lhe iluminou o rosto macilento, a pele um pouco baça.
Ele nem sonha que o Gui está com a minha mãe! Nem a sogra, essa megera que interferia tanto na vida deles!
Mas, ela pregara-lhe uma valente partida! E, imersa nos seus pensamentos, Paulina riu baixinho, com deleite.
“ Porque te estás a rir?” perguntou Ricardo, surpreendido.
“ Eu, a rir?”
“ Sim, exactamente tu, a rir sozinha!”
“Ora, não é nada! Estou a recordar algumas marotices do Gui!”
Ricardo calou-se, depois pareceu que ía dizer qualquer coisa mas, continuou, silencioso, a ver o jogo.
E, ela continuou a seguir, muito quieta, o fio do seu pensamento...
Um dia a sogra fora a casa deles e Paulina serviu-lhe um chá, com bolo de chocolate, que fez para a ocasião e umas sandes gostosas, pequeninas e fofas.
Quando estava na cozinha a preparar o tabuleiro, com uma bonita toalhinha de linho, caprichosamente bordada e com o delicado serviço de porcelana, prenda de casamento, lembrou-se do laxante que lhe tinham trazido do Brasil. Era um produto especial, em pó, sem gosto, que se desfazia em qualquer bebida e muito eficaz.
Decidiu, então, pôr um pouco de laxante na chávena de chá da sogra que o tomou, deliciada e foi pedindo mais. Paulina, divertida, foi-lhe servindo chá, com um bocadinho de laxante.
No dia seguinte, Ricardo chegou a casa muito preocupado porque a mãe estava doente, com uma séria gastro-enterite! Devia ter sido de um arroz de marisco que comera ao jantar...
Esteve assim uma semana!
O futebol acabou com a vitória do clube do Ricardo. Satisfeito com o resultado, levantou-se, espreguiçou-se e perguntou:
“ Ficas, ou desligo o televisor?”
“ Fico ainda mais um bocadinho! Vou já!”
Com um sorrisinho cínico, Paulina decidiu que estava na hora de oferecer outro requintado chá à sogra que a hostilizava tanto mas, que ela, como dedicada nora que era, recebia com tanta simpatia!
Se a sogra adoecesse, se desaparecesse, tudo se tornaria tão fácil!
Afinal, sobre ela pairava, cada vez mais próxima e aflitiva, a ameaça de, um dia, ter de afastar o Gui dos cuidados da avó materna...
De repente, lembrou-se da sua amiga, de longa data, a Sofia. E, subitamente, a picada venenosa da inveja sobressaltou-a.
Sofia era tudo o que ela queria ter sido: bonita, elegante e independente. Nunca quisera casar. Vivia com o namorado, um rapaz bem parecido, culto e interessante mas, a casa era dela! Uma casa alegre, espaçosa, decorada com gosto e com um lindo jardim, onde brincava a linda e meiga cadela labrador, a Naomi, a princesa reinante! Tinham estado com eles, umas semanas antes, e jantado juntos, lá em casa. A mesa estava posta com elegância, a comida, vinda de fora, estava óptima e o vinho delicioso! A Sofia recebeu-os fresca, sorridente e perfeita. Como uma rosa, a florir, na primavera.
No entanto,trabalhava muito: dava pareceres de Direito, leccionava no Ensino Superior, estava a acabar a tese de doutoramento, falava várias línguas. E, continuava a investir, fortemente, na sua formação!
Os anos, porém, pareciam não passar por ela!
A Sofia tinha uma vida tão diferente da dela! E Paulina sentiu-se tão limitada, tão comezinha, tão sem graça, tão infeliz, e tão... enraivecida!
Será possível que dois eus diferentes partilhem a minha personalidade, pensou, subitamente inquieta!
Um, o seu eu das boas recordações, dos amigos, do afecto, que fazia, dela, a Paulina simpática e solidária de quem todos, normalmente, gostavam! O outro, o seu eu tenebroso, do ciúme, e da raiva que fazia dela a amiga invejosa; a nora vingativa e velhaca, que já idealizava oferecer à sogra outro chá com laxante e uma pretensa simpatia; a mulher mentirosa, com parte do casamento assente numa tremenda falsidade que envolvia o filho, uma criança inocente e um marido confiante!
Será mesmo confiante ou, também ele, um credenciado fingidor, por cansaço e por comodismo?
Estes dois eus que se degladiam ferozmente, dentro de mim, torturam-me e esgotam-me, confessou, em segredo, a si própria!
Às vezes, Paulina sentia um imenso gozo e um impulso irresistível de deixar à solta esse seu eu matreiro e malévolo que, no entanto, lhe infligia, também, tanta ansiedade, tanta solidão!
Talvez eu destrua um pedaço deste meu eu esconso, quando o Gui começar a falar e tiver mesmo de ir para o infantário, pensou ansiosa!
Mas, eram horas de dormir e por enquanto não queria pensar nisso!
Por enquanto... não!
MC
Mudam-se os tempos...
Lembro-me, de a Liberdade de Expressão, uma das mais preciosas conquistas do 25 de Abril, merecer, de todos, uma imensa atenção e um vaidoso carinho, e, ter sido, agora, tão fortemente abalada, com a suspensão do Jornal Nacional da TVI que, quer se goste ou se abomine este tipo de jornalismo, constituía um sinal claro, dessa mesma liberdade!
Lembro-me, de a vida ser uma dádiva, não ter preço e matar, violentar e violar serem considerados crimes hediondos, sem perdão e, como tal, exemplarmente punidos!
Lembro-me, de a honra, o respeito, o sentido de responsabilidade e a tolerância fazerem a diferença e o egoísmo, a arrogância, o oportunismo e a ingratidão tornarem tudo tão igual, entre si,tudo tão perdido, no lado mais escuro da vida!
Lembro-me, de na Escola se ensinar com saber e exigência e de se aprender com interesse e empenhamento e a casa, mesmo a mais modesta, ser o aconchego morno e disciplinado, dos afectos, da formação moral e cívica, das brincadeiras e dos sorrisos!
Lembro-me, de a educação, a gentileza e a correcção no trato serem tão naturais, como respirar!
Encaro o futuro com Esperança, não sou saudosista e, todos sabemos que os tempos, agora mais do que nunca, estão em permanente mudança! E, isso é óptimo!
Mas, também sabemos que os princípios e os valores básicos da humanitude e da democracia, são eternos e sagrados mesmo quando, mudando-se os tempos, se mudam as vontades!
MC
Lembro-me, de a vida ser uma dádiva, não ter preço e matar, violentar e violar serem considerados crimes hediondos, sem perdão e, como tal, exemplarmente punidos!
Lembro-me, de a honra, o respeito, o sentido de responsabilidade e a tolerância fazerem a diferença e o egoísmo, a arrogância, o oportunismo e a ingratidão tornarem tudo tão igual, entre si,tudo tão perdido, no lado mais escuro da vida!
Lembro-me, de na Escola se ensinar com saber e exigência e de se aprender com interesse e empenhamento e a casa, mesmo a mais modesta, ser o aconchego morno e disciplinado, dos afectos, da formação moral e cívica, das brincadeiras e dos sorrisos!
Lembro-me, de a educação, a gentileza e a correcção no trato serem tão naturais, como respirar!
Encaro o futuro com Esperança, não sou saudosista e, todos sabemos que os tempos, agora mais do que nunca, estão em permanente mudança! E, isso é óptimo!
Mas, também sabemos que os princípios e os valores básicos da humanitude e da democracia, são eternos e sagrados mesmo quando, mudando-se os tempos, se mudam as vontades!
MC
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