Que vá Rui Ramos, Fernando Rosas, José Mattoso, Irene
Flunser Pimentel, Henrique Raposo ou até Manuel Loff - de preferência, que vão
todos, da esquerda à direita, porque qualquer historiador serve para explicar
ao senhor Presidente que utilizar a intercessão de Nossa Senhora para
justificar uma determinada linha de actuação política e económica só pode
significar uma de duas coisas: ou uma manifestação de inadmissível ignorância
por parte de um chefe de Estado português; ou uma vergonhosa afronta a todos os
que lutaram para que 2013 não fosse igual a 1963 e que, ao contrário de Cavaco,
nunca escreveram pelo seu próprio punho numa ficha da PIDE "integrado no
actual regime político".
É verdade que com o advento da democracia Fátima se
foi rapidamente despolitizando. Hoje em dia, quem vai rezar ao santuário da
Cova da Iria não tem a menor consciência da identificação de Fátima com o
Estado Novo e da forma como um e outro se foram alimentando mutuamente a partir
do final dos anos 30. Mas factos são factos, e o certo é que a visão
sacrificial dos três pastorinhos, toda ela muita penitência, arrependimento e
oração, mais a sua explícita mensagem anticomunista, assentou como uma luva no
discurso do regime, que com a cumplicidade da Igreja aproveitou, de caminho,
para erguer Fátima a "altar do mundo", reciclando a velha e
mitológica ambição de grandiosidade nacional, agora através da via
transcendente - já que para a via imanente não havia nem gente, nem dinheiro.
Um peregrino que se arrasta de joelhos em torno da
capelinha das aparições não tem de saber isto. Mas um Presidente da República
tem. Cavaco Silva não pode desconhecer as tentativas de invocar a mão de Deus,
via Fátima, na instauração do regime do Estado Novo. E sabendo isso, vir agora
invocar a mão de Nossa Senhora no escrupuloso cumprimento das directivas da
troika e da sétima avaliação é de um mau gosto a toda a prova. Seguindo a sua
fina linha de raciocínio, e em última análise, meter Deus nos assuntos de César
significa neste caso o quê? Significa que é Deus que deseja a austeridade. Como
era Deus que desejava o salazarismo.
Por esta altura, suponho que os leitores do PÚBLICO já
me vão conhecendo: eu próprio acho que não há alternativa à austeridade. Eu,
tal como Cavaco, fiquei contente que tenhamos superado a sétima avaliação da
troika. Mas, por enquanto, ainda não comecei a confundir as minhas opiniões com
as de Nossa Senhora, e muito menos com as de Deus. Não sei se Cavaco está como
a irmã Lúcia, e fala com a Virgem à noite nos seus aposentos. Mas se assim for,
faça como ela: entre para um convento de clausura, escreva vários volumes de
memórias, e deixe a política para quem tem os olhos mais postos na terra do que
no céu.