domingo, 30 de maio de 2010

Violoncelo

Chorai arcadas,
Do violoncelo!
Convulsionadas,
Pontes aladas
De pesadelo...

De que esvoaçam,
Brancos os arcos...
Por baixo passam,
se despedaçam,
No rio, os barcos,

Fundas soluçam
Caudais de choro...
Que ruínas(ouçam)!
se se debruçam,
Que sorvedouro!...

Trémulos astros...
Solidões lacustres...
- Lemes e mastros...
E os alabastros
Dos balaústres!

Urnas quebradas!
Blocos de gelo...
- Chorai arcadas,
Despedaçadas, do violoncelo.

Camilo Pessanha

Ao som plangente do seu "Violoncelo", pareceu-me sentir Camilo Pessanha guardar, num suspiro triste, pesado de lágrimas, a sua profunda mágoa e o seu aterrado espanto pela perfeita actualidade do seu poema, datado do fim do século XIX, neste País, decadente, quase em ruptura, em que hoje vivemos! Ou, será: em que hoje temos de sobreviver?

Pois, como escreveu José Augusto Saraiva, "...das arcadas do violoncelo emerge um choro convulsivo, que é justamente uma elegia pela pátria amortalhada... este poema, de 1900, é um requiem por Portugal...,na curva mais funda da sua decadência". Como nos nossos dias...

Neste belíssimo poema, que tão bem se ajusta ao Portugal empobrecido, cinzento e sofrido de hoje, Pessanha recorda-nos a simbologia da passagem das águas do rio e o som choroso, nostálgico do violoncelo!

MC

sábado, 29 de maio de 2010

Treze anos - Cantilena

Já tenho treze anos,
que os fiz por Janeiro:
Madrinha, casai-me
com Pedro Gaiteiro.

Já sou mulherzinha,
já trago sombreiro,
já bailo ao Domingo
com as mais no terreiro.

Já não sou Anita,
como era primeiro;
sou a Senhora Ana,
que mora no outeiro.

Nos serões já canto,
nas feiras já feiro,
já não me dá beijos
qualquer passageiro.

Quando levo as patas,
e as deito ao ribeiro,
olho tudo à roda,
de cima do outeiro.

E só se não vejo
ninguém pelo arneiro,
me banho co’as patas
Ao pé do salgueiro.

Miro-me nas águas,
rostinho trigueiro,
que mata de amores
a muito vaqueiro.

Miro-me, olhos pretos
e um riso fagueiro,
que diz a cantiga
que são cativeiro.

Em tudo, madrinha,
já por derradeiro
me vejo mui outra
da que era primeiro.

O meu gibão largo,
de arminho e cordeiro,
já o dei à neta
do Brás cabaneiro,

dizendo-lhe: «Toma
gibão, domingueiro,
de ilhoses de prata,
de arminho e cordeiro.

A mim já me aperta,
e a ti te é laceiro;
tu brincas co’as outras
e eu danço em terreiro».

Já sou mulherzinha,
já trago sombreiro,
já tenho treze anos,
que os fiz por Janeiro.

Já não sou Anita,
sou a Ana do outeiro;
Madrinha, casai-me
com Pedro Gaiteiro.

Não quero o sargento,
que é muito guerreiro,
de barbas mui feras
e olhar sobranceiro.

O mineiro é velho,
não quero o mineiro:
Mais valem treze anos
que todo o dinheiro.

Tão-pouco me agrado
do pobre moleiro,
que vive na azenha
como um prisioneiro.

Que em ele assomando
co’o tamborileiro,
logo se alvorote
o lugar inteiro.

Que todos acorram
por vê-lo primeiro,
e todas perguntem
se ainda é solteiro.

E eu sempre com ele,
romeira e romeiro,
vivendo de bodas,
bailando ao pandeiro.

Ai, vida de gostos!
ai, céu verdadeiro!
ai, Páscoa florida,
que dura ano inteiro!

Da parte, madrinha,
de Deus vos requeiro:
Casai-me hoje mesmo
com Pedro Gaiteiro.


In "Líricas Portuguesas – Portugália Editora"

António Feliciano de Castilho
1800 – 1875

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Ao contrário de Emily Dickinson

A Esperança é o derradeiro mal, é o pior dos males porquanto prolonga o tormento
F. Nietzsche

"Pandora trouxe a caixa que continha os males e abriu-a. Era o presente dos deuses aos homens, exteriormente um presente belo e sedutor, denominado “caixa da felicidade”.
E todos os males, seres vivos alados, escaparam voando. Desde então vagueiam e prejudicam os homens, dia e noite. Um único mal ainda não saíra do recipiente. Então, seguindo a vontade de Zeus, Pandora repôs a tampa, e esse derradeiro mal permaneceu fechado, lá dentro.

O homem tem agora, para sempre, a caixa da felicidade, e pensa maravilhas do tesouro que nele possui e que sabe estar à sua disposição: ele abre-a quando quer, pois não sabe que Pandora lhe trouxe o recipiente dos males e, para ele, frágil ser humano, o mal que restou é o que ele pensa ser o maior dos bens: a Esperança.
Zeus quis que os homens, por mais torturados que fossem pelos outros males, não rejeitassem a vida, mas continuassem a deixar-se torturar.

Para isso deu-lhes a Esperança: ela é, na verdade, o pior dos males, pois prolonga o suplício dos homens."

Friedrich Nietzsche, “Humano, demasiado humano”

Registo este texto e este pensamento trágico na sua absoluta desesperança, como contraponto ao belíssimo poema de Emily Dickinson.

Contudo, também foi Friedrich Nietzsche que escreveu:

"É necessário ter o caos cá dentro para gerar uma estrela!"


Do caos, afinal, também irrompe a Esperança e a Luz!

MC

Esperança é a coisa com penas - Emily Dickinson

Dickinson, "Hope is the Thing With Feathers"

Hope is the thing with feathers
That perches in the soul,
And sings the tune--without the words,
And never stops at all,
And sweetest in the Gale is heard;
And sore must be the Storm
That could abash the little Bird
That kept so many warm.
I've heard it in the chillest land,
And on the strangest Sea;
Yet, never, in Extremity,
It asked a crumb of Me.


"Esperança" é a coisa com penas

"Esperança" é a coisa com penas
Que se empoleira na alma
E canta um som sem palavras
E nunca, mas nunca, pára,

E mais doce é ouvido no vendaval;
E dura precisa ser a tempestade
Que poderia desanimar o passarinho
Que mantém aquecidos a tantos.

Já o ouvi nas terras mais geladas
E nos mares mais estranhos,
Entretanto nunca, mesmo no desespero,
Ele pediu uma migalha a Mim.

Tradução de Luiz Felipe Coelho



Gosto muito, mesmo muito, deste poema.

Emily Dickinson é a poetisa da solidão e do pranto da alma, mas aqui, fala-nos da Esperança, como um pássaro que se empoleira na alma humana, aí pulsa caladamente e infatigavelmente, transmitindo confiança e aconchego, sobretudo, nos maus momentos.
E, é quando a tempestade se desencadeia mais violenta e feroz, que a esperança, essa coisa com penas, esse sentimento que não se esgota e vive sempre connosco, é ainda mais doce e mais vivaz, sem nunca pedir nada em troca!

E, é agora, num país vergastado por uma duríssima intempérie, dobrados ao peso de uma incontida vertigem de impostos, quase submersos numa vaga alterosa de pobreza e de desapontamento, que mais precisamos do cântico encorajador e do suave adejar deste pássaro de esperança, empoleirado nas nossas almas, para que a explosão da borrasca e a turbulência dos dias, não nos amarfanhe, não nos derrube, nem nos esmague!

MC

A terceira margem do rio

“A terceira margem do rio” é outro conto revestido de simbolismo, da obra “Primeiras estórias” de Guimarães Rosa.
Bem ao estilo deste escritor, esta é a estória insólita de um homem que se evade de toda e qualquer convivência com a família e com a sociedade, preferindo a completa solidão do rio, onde, dentro de uma canoa, sem nunca mais sair dela, rema rio abaixo, rio acima, rio a fora, rio a dentro.

O rio, aliás, muito presente na obra de Guimarães Rosa, parece ter exercido uma forte atracção na imaginação do autor, que escreveu:

“... amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranquilos e escuros como os sofrimentos do homem. Amo ainda mais uma coisa de nossos grandes rios: a eternidade. Sim, o rio é uma palavra mágica para conjugar a eternidade.”

O espaço, neste conto, é delimitado pelo rio que domina a paisagem rural e precisamente, no ir e vir do rio e da vida, emana a magia e a noção de transcendentalismo.


Nesta estória, o filho é o narrador e também personagem e o pai é o homem cujos ideais de vida não estão de acordo com os padrões, considerados normais.O pai “virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupa que a gente de tempos em tempos, fornecia”
O pai fora sempre quieto, com tendência para o isolamento. Sempre fora a mãe a responsável pelo aspecto prático da vida.

Mas, o que é a terceira margem?
A terceira margem é o que não se vê, o que não se toca, o que não se conhece.

O pai, ao ir à procura da terceira margem, busca o desconhecido dentro de si mesmo e o isolamento é a única maneira encontrada para procurar entender os mistérios da alma, o incompreensível da vida.

O filho quando criança, quis, na sua inocência, embarcar com o pai mas este impediu-o. Quando adulto, sendo o pai já velho, propõe-se subatituí-lo. Mas, no momento em que vê o pai vindo em direcção à margem, o filho fica com medo daquele homem que parecia vir do outro mundo e, aterrado perante a ideia de estar prestes a partir rumo ao desconhecido, foge!

Talvez esta estória tenha sido o recurso, criado pelo autor, para discorrer sobre o medo que a humanidade tem do desconhecido, esse desconhecido que borbulha, lá muito no fundo de cada um de nós, do mistério da vida e da morte, do sentido de tudo, do “inominável”

Este mundo do “encantatório”, do desconhecido da terceira margem, “só poderia ser recriado por por uma linguagem também recriada e nova, capaz de reflectir todo o deslumbramento desse universo." Aliás Guimarães Rosa é um criador, um reinventador da linguagem.

Recursos Estilísticos:

A repetição é um recurso expressivo do autor: “e o rio-rio-rio, o rio sempre perpétuo”.
As figuras de linguagem reforçam o lado poético do conto:
A gradação – “cê vai, ocê fique, você nunca volte”
A antítese – “ perto e longe de sua família dele”
- O carácter metafórico do rio.
- As frases curtas e coordenadas, independentes, dão um ritmo lento à leitura:” Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n`água, proava para cá concordando.”
- A oralidade é reproduzida na fala do narrador: “ do que eu mesmo em alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem ralhava no diário com a gente.”
- A sintaxe é recriada de maneira inusitada, provocando estranheza: “ não fez a alguma recomendação” “nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele.”
- Neologismos – “diluso” talvez variante de diluido, diluto; “bubuíasse”; termos pouco comuns como: “encalcou”, “entestou”, etc.

MC

sábado, 1 de maio de 2010

A menina de lá

“A menina de lá”, conto de Guimarães Rosa, inserido na obra “Primeiras estórias”, termo criado pelo autor e, mais tarde, amplamente usado por outros escritores, nomeadamente, Mia Couto, é uma estória bonita e delicada, mas insólita, bizarra, carregada de originalidade!

A menina, “com os seus nem quatro anos” , franzina, sempre muito quieta, sentada a um canto, e cuja conversa ninguém parecia entender muito bem, é filha de um sitiante e de uma mulher sempre agarrada ao terço, mesmo quando se zanga e ralha.
A menina vive em Temor-de-Deus, por trás da Serra de Mim.
Chama-se Maria mas é sempre tratada por Nininha. Este diminutivo triplicado, reforça a sua fragilidade. É uma menina sensitiva, com o dom de ter contactos místicos e também dotada de poderes paranormais. Os seus desejos, por mais estranhos, realizam-se sempre: deseja ver um sapo, em tempo de seca e um sapo entra pela casa dentro, apetece-lhe "pamonhinha de goiaba" e logo aparece uma senhora com o doce.

Um dia, quando a mãe adoece, a menina diz que nada pode fazer mas abraça-a e, inexplicavelmente, a mãe fica curada.

Temos, desde o início da estória, a percepção de que a menina não pertence ao CÁ, (à terra, à proximidade), mas ao LÁ, (ao céu, ou a um mundo mágico, longínquo, divino), pela presença de palavras, deisticas no contexto em que são usadas, ligadas ao universo do mundo de LÁ: estrelinhas, lua, alturas, aves, mortos, saudades, milagre e, principalmente, arco-íris que é, aqui, uma palavra chave.
A menina tem uma relação forte com a água límpida e cristalina que fecunda e cria e não suporta águas poluídas.
Quando a menina deseja ver o arco-íris, faz chover.
A chuva chega e com ela o arco-íris que proporciona uma enorme alegria a Nininha. Ela diz a Tiântonia que quando morrer quer um caixãozinho cor-de-rosa, com enfeites verdes brilhantes. Há nas suas palavras uma premonição da sua morte ou, a expressão do seu desejo de partir para LÁ!
E, de facto, Nininha adoece e morre. E, os seus pais sabem que, com certeza e seja de que modo for, simplesmente porque demonstrou esse desejo, a menina será enterrada num caixãozinho bizarro, cor-de-rosa enfeitado de brilhos verdes!

O arco-íris poderá ser, simplesmente, entendido como um aviso de Deus de que a menina voltaria, muito breve, para o Seu seio. Na verdade, essa partida anuncia-se desde o início da estória: o dedinho dela quase alcançava o céu, iria visitar os parentes mortos, para não falar do próprio título do texto.
Nesta estória, toda revestida de simbolismo, a menina pode ser entendida como a “anima” de qualquer pessoa.

Se gostei desta estória? Mais do que gostei, esta estória encantou-me pela sua aparente simplicidade e imensa beleza e surpreendeu-me fortemente pela sua insólita originalidade!

Nota: Este e outros dois contos deste fantástico escritor, Guimarães Rosa, foram-me dados a conhecer pelo Professor, Dr. Arnaldo Saraiva, que também, embora brevemente, deu a sua abalizada opinião sobre eles.

MC