domingo, 26 de fevereiro de 2012

A folha branca

À minha frente a folha branca. Como uma boca informe, escancarada, num riso provocador e maldoso.
Não sei o que escrever. Por cansaço, talvez. E, ela, a folha branca à minha frente, intacta, quieta, num adormecimento exasperante, como um lagarto preguiçoso, enlaguescido, ao sol. Lagarto que não quero branco, como a folha lisa de papel, que me provoca e me faz sentir pequenina, desajeitada, incapaz. Um lagarto que quero a cheirar a terra húmida, a líquenes, a musgo. E verde, como a relva, os ramos tenros das árvores, a luz alegre da esperança.

O meu pai tinha uns olhos verdes, lindos, que os óculos esbatiam e que mudavam de cor, não sei se conforme a maior ou menor intensidade da luz, se conforme o seu estado de espírito ou se, porque eram, simplesmente, assim. Às vezes, pareciam matizados de castanho dourado a transbordar doçura; outras vezes, eram de um castanho tão claro e transparente que pareciam âmbar e desprendia-se deles a transparência de uma quietude reconfortante e sábia; mas é na sua cintilação verde, límpida e aveludada, como as folhas delicadas das árvores, nas madrugadas claras e macias, na primavera, que os recordo. Luzeiros de sabedoria, de serenidade e de atenção.
Uma tarde, perguntei-lhe de que cor eram os seus olhos. Meio-divertido, meio-surpreendido com a pergunta, disse-me que os seus olhos eram da cor que eu os via, como, aliás, tudo à minha volta. Disse-me que, pela força das minhas emoções, com a minha alegria luminosa e radiante, com a minha tristeza sombria e gelada, assim eu coloria ou escurecia cada um dos meus dias. Era como se, ao projectar-me em tudo ao meu redor, eu tivesse, sem saber, o poder de recriar o mundo, embelezando-o ou desfigurando-o, o poder supremo de pintar a minha vida da cor que eu escolhesse, da cor que eu mais gostasse! Seria eu que daria claridade ou escuridão à minha vida. Nesse momento, na minha inocência, senti-me mais inteira do que nunca, indivisa, livre, poderosa!
E, nessa noite, adormeci feliz, cheia de esperança num mundo que eu iria pintar de de azul, verde, branco e amarelo. E de todas as outras mil cores possíveis!
Cresci e, com o passar implacável do tempo, já me foram dados viver dias de negrume e de tristeza, pintados de cinzento e de luto, com cheiro a lágrimas e a perda, num mundo mosqueado de luz e de sombra, de riso e de mágoa.

A folha, à minha frente, já não é branca. Está pontilhada de azul. São as palavras azuis que, num sobressalto, semeei, que se juntaram e formaram frases. Com mais ou menos sentido. Também não sei, porque o perdi, onde está o lagarto preguiçoso, que eu queria verde, a cheirar a terra húmida, a líquenes e a musgo e que enlanguescia, preguiçosamente, ao sol...

E, agora que as palavras, que lancei na folha, correm, saltam e brincam, à solta, manchando-a, transformando-a, dando-lhe vida e cor, quase tenho saudades da sua brancura inicial, lisa, perfeita, intacta...


NOTA: Há, na MEMÓRIA, uma violência difusa, dolente mas ferina, que se acoita, calada e sonsa, no infinito desesperante da lonjura, na pungência revolvida da saudade...


MC

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Olhe, não fique assim...

Olhe, não fique assim não vai passar. Eu sei que dói. É horrível. Eu sei que parece que você não vai agüentar, mas agüenta. Sei que parece que vai explodir, mas não explode. Sei que dá vontade de abrir um zíper nas costas e sair do corpo porque dentro da gente, nesse momento, não é um bom lugar para se estar. Dor é assim mesmo, arde, depois passa. Que bom. Aliás, a vida é assim: arde, depois passa. Que pena. A gente acha que não vai agüentar, mas agüenta: as dores da vida. Pense assim: agora tá insuportável, agora você queria abrir o zíper, sair do corpo, encarnar numa samambaia, virar um paralelepípedo ou qualquer coisa inanimada, anestesiada, silenciosa. Mas agora já passou. Agora já é dez segundos depois da frase passada. Sua dor já é dez segundos menor do que duas linhas atrás.Você acha que não porque esperar a dor passar é como olhar um transatlântico no horizonte estando na praia.Ele parece parado, mas aí você desvia o olho, toma um picolé, lê uma revista, dá um pulo no mar e quando vai ver o barco já tá lá longe. A sua dor agora, essa fogueira na sua barriga, essa sensação de que pegaram sua traquéia e seu estômago e torceram como uma toalha molhada, isso tudo - é difícil de acreditar, eu sei - vai virar só uma memória, um pequeno ponto negro diluído num imenso mar de memórias. Levante-se daí, vá tomar um picolé, ler uma revista, dar um pulo no mar. Quando você for ver, passou.Agora não dá mesmo pra ser feliz. É impossível. Mas quem disse que a gente deve ser feliz sempre? Isso é bobagem. "É melhor viver do que ser feliz". Porque pra viver de verdade a gente tem que quebrar a cara. Tem que tentar e não conseguir. Achar que vai dar e ver que não deu. Querer muito e não alcançar. Ter e perder. Tem que ter coragem de olhar no fundo dos olhos de alguém que a gente ama e dizer uma coisa terrível, mas que tem que ser dita. Tem que ter coragem de olhar no fundo dos olhos de alguém que a gente ama e ouvir uma coisa terrível, que tem que ser ouvida. A vida é incontornável. A gente perde, leva porrada, é passado pra trás, cai. Dói,ai,eu sei como dói. Mas passa.Tá vendo a felicidade ali na frente? Não, você não tá vendo, porque tem uma montanha de dor na frente. Continue andando. Você vai subir, vai sentir frio lá em cima, cansaço. Vai querer desistir, mas não vai desistir, porque você é forte e porque depois do topo a montanha começa a diminuir e o unico jeito de deixá-la pra trás é continuar andando. Você vai ser feliz. Tá vendo essa dor que agora samba no seu peito de salto de agulha? Você ainda vai olhá-la no fundo dos olhos e rir da cara dela. Juro que tô falando a verdade. Eu não minto. Vai passar.

Caio Fernando Loureiro de Abreu

Caio Fernando Loureiro de Abreu (Santiago, 12 de setembro de 1948 — Porto Alegre, 25 de fevereiro de 1996) foi um jornalista, dramaturgo e escritor brasileiro.

Apontado como um dos expoentes de sua geração, a obra de Caio Fernando Abreu, escrita num estilo económico e bem pessoal, fala de sexo, de medo, de morte e, principalmente, de angustiante solidão. Apresenta uma visão dramática do mundo moderno e é considerado um "fotógrafo da fragmentação contemporânea".