"A violência é o único refúgio dos fracos e dos incompetentes"
Isaac Asimov
Ela ouviu a porta abrir, para logo se fechar com violência. Sentiu, com um arrepio, que ele estava, outra vez, mal disposto, zangado. O cheiro pútrido da sua ira que, como um polvo, parecia estender os tentáculos por toda a casa, procurando-a, maligno, para a prender e oprimir, atingiu-a, ainda mesmo antes de a encontrar, como uma pedra de fogo.
....
Teve medo!
Mexeu a sopa e começou a cortar o tomate, em fatias finas, para a salada. Não se voltou quando ele entrou na cozinha, infectando, tudo em seu redor, com os miasmas pestilentos, contaminados, da sua ira maléfica, que ela tão bem conhecia!
...
Ela voltou-se devagar, como em câmara lenta, a faca esquecida na mão e olhou para ele. Encolheu-se!
Aterrorizada, viu diante de si, aquele homem alto, forte, com os olhos brilhantes, raiados de sangue, um olhar duro e frio, como de uma serpente, o rosto alterado e uma veia grossa, como uma corda, a latejar na testa. Aquele homem que era o seu marido.
...
Sem esperar pela resposta, aproximou-se dela, de um salto e esbofeteou-a! Atingiu-lhe o nariz, o sobrolho esquerdo e o lábio. O sangue jorrou! De cabeça perdida, agarrou-a pelos cabelos e bateu-lhe outra vez. Na mão, ficou-lhe um punhado de cabelo loiro, deu-lhe um empurrão brutal e ela caiu desamparada. Gritou e urinou-se quando ele lhe deu um pontapé impiedoso, nos rins!
Ali ficou, deitada no chão, vulnerável, cheia de dores, esgotada. Como de costume, ele falou, falou, gritou, como um demónio, a contorcer-se, num inferno de ódio e de ira! E, como sempre foi irónico, foi sarcástico, foi insultuoso! Foi malévolo e foi cínico!
...
Caída no chão, num repentino flashback, reviveu doze anos de agonia e de calvário!
...
Estarreciam-na aquelas frequentes e súbitas explosões de uma ira terrível, violenta, incontrolável, por pequenas coisas e, às vezes, que ela soubesse, por nada, seguidas de uma calma doentia, de uma quietação estranha que sempre a assombrara e de intoleráveis carícias e rudes manifestações de afecto que, geralmente, acabavam em longas sessões de sexo que a enojavam, vilipendiavam e eram uma torturante violação para o seu pobre corpo espancado!
Mas, como ele dizia depois, com um risinho lúbrico e maligno, excitava-o, irresistivelmente, senti-la assim frágil, cansada, submetida a si, aos seus mais loucos desejos!
Nunca ninguém a ajudara, ... nem a polícia a quem, uma vez, para nunca mais, ousara apresentar queixa.
O agente destacado para levantar o auto, exigira que ela relatasse tudo, com todos os detalhes e ouvira-a, com um sorriso canalha e o olhinho lascivo que a despia. Enfureceu-se, envergonhou-se, arrependeu-se!
No fim, com um olhar velhaco para o colega do lado, o agente disse-lhe que veriam o que se podia fazer.
Já em casa, sozinha, com medo de represálias e de lhe despertar, mais furiosamente, a ira, não dormira nessa noite e retirou a queixa no dia seguinte!
...
De repente, esquecidas as palavras, ele perdeu-se no silêncio frio da cozinha e aquietou-se. Ainda caída no chão, ouviu-o dizer, nessa quietação estranha, que nunca deixara de a assombrar:
-Levanta-te, amor! São horas de jantar. Sabes que te amo. Olha para mim! Levanta-te!
Limpa o sangue do teu corpo! Isso não é nada!
...
E, com um olhar carregado de sensualidade, continuou:
Estás cada vez mais bonita, perfeita e desejável! Ah! Como és linda, macia e como eu te desejo!
...
Anda, levanta-te! Limpa o sangue do teu corpo, vá! São horas de jantar. Serve a sopa!
...
Estava farta daquele rosto, agora tranquilo e doce, como o de um noivo, mas, ainda há pouco, medonho, congestionado, contorcido numa violência diabólica; tinha medo daqueles olhos brilhantes, fixos, raiados de sangue, que pareciam expedir chispas de fogo; enojava-a aquela boca que se abria, agora, num arreganho, a imitar um sorriso e onde, não há muitos minutos, os dentes escorriam ira!
Encolhida no chão, sentiu-se suja, humilhada, corrompida pela raiva, pela loucura maldosa, pela irracionalidade daquele monstro!
A seu lado, sob a saia, sentiu a faca.
Levanta-te, anda! Está a fazer-se tarde para o jantar!
Ela levantou-se, devagar, a faca na mão, escondida nas pregas da saia.
Que tens? Não me provoques! Tem juízo! Anda, serve a sopa! Depressa ! Tenho fome e apeteces-me, depois, amor! A minha sobremesa predilecta és tu, sabes?
Uma vaga imensa e negra, de ódio, há tanto tempo acumulado, inundou-a e quase a submergiu, cegando-a!
Como uma sonâmbula, dirigiu-se a ele.
E, de repente, o dique que continha o seu ódio, um ódio vivo, que fora crescendo, crescendo, fortalecendo-se e refinando-se, ao longo do tempo, como um vinho especial, raro no corpo e no travo, cuidadosamente envelhecido, esse dique que barrava a sua repulsa, a sua raiva, o seu nojo, rompeu-se fragorosamente e, com um grito, arrancado do mais profundo das suas entranhas, do mais íntimo do seu ser, ela enterrou-lhe a faca no ventre.!
Uma vez... duas vezes... três vezes...
...
Nota: Este texto foi escrito em 2009, para ilustrar a IRA, no Curso de Escrita Criativa, " As sete Virtudes e os sete Pecados Mortais", coordenado pelo Dr. Mário Claudio.
MC
quarta-feira, 26 de outubro de 2011
quinta-feira, 13 de outubro de 2011
"Vozes" - Ana Luísa Amaral
No dia onze, deste Outubro dourado e macio, vivi um fim de tarde de delicioso encantamento, com a poesia de Ana Luísa Amaral, na apresentação do seu novo livro "Vozes".
No Planetário, na rua das Estrelas, choveram estrelas de ouro, de luz e de cor, em forma de poemas!
E, soaram "Vozes"! Poéticas, sublimes, poderosas, vibrantes! De beleza e de emoção...
INÊS E PEDRO: QUARENTA ANOS DEPOIS
É tarde. Inês é velha.
Os joanetes de Pedro não o deixam caçar
e passa o dia todo em solene toada:
«Mulher que eu tanto amei, o javali é duro!
Já não há javalis decentes na coutada
e tu perdeste aquela forma ardente de temperar
os grelhados!»
Mas isto Inês nem ouve:
não só o aparelho está mal sintonizado,
mas também vasto é o sono
e o tricot de palavras do marido
escorrega-lhe, dolente, dos joelhos
que outrora eram delícias,
mas que agora
uma artrose tornou tão reticentes.
Inês é velha, hélas,
e Pedro tem caibras no tornozelo esquerdo.
E aquela fantasia peregrina
que o assaltava, em novo
(quando a chama era alta e o calor
ondeava no seu peito),
de ver Inês em esquife,
de ver as suas mãos beijadas por patifes
que a haviam tão vilmente apunhalado:
fantasia somente,
fulgor que ele bem sabe ser doença
de imaginação.
O seu desejo agora
era um bom bife
de javali macio
(e ausente desse horror de derreter
neurónios).
Mais sábia e precavida (sem três dentes
da frente),
Inês come, em sossego,
uma papa de aveia.
ANA LUÍSA AMARAL
in "Vozes", D. Quixote
A VERDADE HISTÓRICA
A minha filha partiu uma tigela
na cozinha.
E eu que me apetecia escrever
sobre o evento,
tive que pôr de lado inspiração e lápis,
pegar numa vassoura e varrer
a cozinha.
A cozinha varrida de tigela
ficou diferente da cozinha
de tigela intacta:
local propício a escavação e estudo,
curto mapa arqueológico
num futuro remoto.
Uma tigela de louça branca
com flores,
restos de cereais tratados
em embalagem estanque
espalhados pelo chão.
Não eram grãos de trigo de Pompeia,
mas eram respeitosos cereais
de qualquer forma.
E a tigela, mesmo não sendo da dinastia Ming,
mas das Caldas,
daqui a cinco ou dez mil anos
devia ter estatuto admirativo.
Mas a hecatombe
deu-se.
E escorregada de pequeninas mãos,
ficou esquecida de famas e proveitos,
varrida de vassouras e memorias.
Por mísero e cruel balde de lixo
azul
em plástico moderno
(indestrutível)
ANA LUÍSA AMARAL,
"Minha Senhora de Quê", Quetzal Editores, Lisboa, 1999
RITMOS
E descascar ervilhas ao ritmo de um verso:
a prosódia da mão, a ervilha dançando
em redondilha.
Misturar ritmos em teia apertada: um vira
bem marcado pelo jazz, pas
de deux: eu, ervilha e mais ninguém
De vez em quando o salto: disco sound
o vazio pós-moderno e sem sentido
Ah! hedónica ervilha tão sozinha
debaixo do fogão!
As irmãs recuperadas ainda em anos 20
o prazer da partilha: cebola, azeite
blues desconcertantes, metamorfose em
refogados rítmicos
(Debaixo do fogão
só o silêncio frio)
ANA LUÍSA AMARAL,
"Minha Senhora de Quê", Quetzal Editores, Lisboa, 1999
TESTAMENTO
Vou partir de avião
e o medo das alturas misturado comigo
faz-me tomar calmantes
e ter sonhos confusos
Se eu morrer
quero que a minha filha não se esqueça de mim
que alguém lhe cante mesmo com voz desafinada
e que lhe ofereçam fantasia
mais que um horário certo
ou uma cama bem feita
Dêem-lhe amor e ver
dentro das coisas
sonhar com sóis azuis e céus brilhantes
em vez de lhe ensinarem contas de somar
e a descascar batatas
Preparem a minha filha
para a vida
se eu morrer de avião
e ficar despegada do meu corpo
e for átomo livre lá no céu
Que se lembre de mim
a minha filha
e mais tarde que diga à sua filha
que eu voei lá no céu
e fui contentamento deslumbrado
ao ver na sua casa as contas de somar erradas
e as batatas no saco esquecidas
e íntegras
ANA LUÍSA AMARAL,
"Minha Senhora de Quê", Quetzal Editores, Lisboa, 1999
MINHA SENHORA DE QUÊ
dona de quê
se na paisagem onde se projectam
pequenas asas deslumbrantes folhas
nem eu me projectei
se os versos apressados
me nascem sempre urgentes:
trabalhos de permeio refeições
doendo a consciência inusitada
dona de mim nem sou
se sintaxes trocadas
o mais das vezes nem minha intenção
se sentidos diversos ocultados
nem do oculto nascem
(poética do Hades quem mdera!)
Dona de nada senhora nem
de mim: imitações de medo
os meus infernos
ANA LUÍSA AMARAL,
"Minha Senhora de Quê", Quetzal Editores, Lisboa, 1999
DESCULPA-ME A TERNURA
Enternece-me pensar que estás aí,
não força de trabalho desigual
nem vida à pressa,
mas minha amiga.
Talvez as palavras que te digo
me transpareçam classe,
talvez nem te devesse dizer nada.
Porque és a mão que ampara o meu silêncio,
a minha filha, o meu cansaço
— à custa do teu cansaço, da tua filha,
do teu silêncio.
Não há homens-a-dias neste mundo,
mas tantas como tu,
a segurar nas mãos e no sorriso
algumas como eu.
Entraste há pouco a perguntar
se eu tinha febre
— a louça por lavar nas tuas mãos,
aspirando o cansaço dos meus ombros,
nos teus ombros o cansaço de mim
e o cansaço de ti.
Desculpa os meus silêncios,
o falar-me contigo como com mais ninguém,
desculpa o tom sem pressa
— e o meu dinheiro que não chega a nada,
comprando o teu trabalho
(o teu sorriso)
ANA LUÍSA AMARAL,
"Às Vezes o Paraíso", (2ª edição), Quetzal Editores, Lisboa
MC
No Planetário, na rua das Estrelas, choveram estrelas de ouro, de luz e de cor, em forma de poemas!
E, soaram "Vozes"! Poéticas, sublimes, poderosas, vibrantes! De beleza e de emoção...
INÊS E PEDRO: QUARENTA ANOS DEPOIS
É tarde. Inês é velha.
Os joanetes de Pedro não o deixam caçar
e passa o dia todo em solene toada:
«Mulher que eu tanto amei, o javali é duro!
Já não há javalis decentes na coutada
e tu perdeste aquela forma ardente de temperar
os grelhados!»
Mas isto Inês nem ouve:
não só o aparelho está mal sintonizado,
mas também vasto é o sono
e o tricot de palavras do marido
escorrega-lhe, dolente, dos joelhos
que outrora eram delícias,
mas que agora
uma artrose tornou tão reticentes.
Inês é velha, hélas,
e Pedro tem caibras no tornozelo esquerdo.
E aquela fantasia peregrina
que o assaltava, em novo
(quando a chama era alta e o calor
ondeava no seu peito),
de ver Inês em esquife,
de ver as suas mãos beijadas por patifes
que a haviam tão vilmente apunhalado:
fantasia somente,
fulgor que ele bem sabe ser doença
de imaginação.
O seu desejo agora
era um bom bife
de javali macio
(e ausente desse horror de derreter
neurónios).
Mais sábia e precavida (sem três dentes
da frente),
Inês come, em sossego,
uma papa de aveia.
ANA LUÍSA AMARAL
in "Vozes", D. Quixote
A VERDADE HISTÓRICA
A minha filha partiu uma tigela
na cozinha.
E eu que me apetecia escrever
sobre o evento,
tive que pôr de lado inspiração e lápis,
pegar numa vassoura e varrer
a cozinha.
A cozinha varrida de tigela
ficou diferente da cozinha
de tigela intacta:
local propício a escavação e estudo,
curto mapa arqueológico
num futuro remoto.
Uma tigela de louça branca
com flores,
restos de cereais tratados
em embalagem estanque
espalhados pelo chão.
Não eram grãos de trigo de Pompeia,
mas eram respeitosos cereais
de qualquer forma.
E a tigela, mesmo não sendo da dinastia Ming,
mas das Caldas,
daqui a cinco ou dez mil anos
devia ter estatuto admirativo.
Mas a hecatombe
deu-se.
E escorregada de pequeninas mãos,
ficou esquecida de famas e proveitos,
varrida de vassouras e memorias.
Por mísero e cruel balde de lixo
azul
em plástico moderno
(indestrutível)
ANA LUÍSA AMARAL,
"Minha Senhora de Quê", Quetzal Editores, Lisboa, 1999
RITMOS
E descascar ervilhas ao ritmo de um verso:
a prosódia da mão, a ervilha dançando
em redondilha.
Misturar ritmos em teia apertada: um vira
bem marcado pelo jazz, pas
de deux: eu, ervilha e mais ninguém
De vez em quando o salto: disco sound
o vazio pós-moderno e sem sentido
Ah! hedónica ervilha tão sozinha
debaixo do fogão!
As irmãs recuperadas ainda em anos 20
o prazer da partilha: cebola, azeite
blues desconcertantes, metamorfose em
refogados rítmicos
(Debaixo do fogão
só o silêncio frio)
ANA LUÍSA AMARAL,
"Minha Senhora de Quê", Quetzal Editores, Lisboa, 1999
TESTAMENTO
Vou partir de avião
e o medo das alturas misturado comigo
faz-me tomar calmantes
e ter sonhos confusos
Se eu morrer
quero que a minha filha não se esqueça de mim
que alguém lhe cante mesmo com voz desafinada
e que lhe ofereçam fantasia
mais que um horário certo
ou uma cama bem feita
Dêem-lhe amor e ver
dentro das coisas
sonhar com sóis azuis e céus brilhantes
em vez de lhe ensinarem contas de somar
e a descascar batatas
Preparem a minha filha
para a vida
se eu morrer de avião
e ficar despegada do meu corpo
e for átomo livre lá no céu
Que se lembre de mim
a minha filha
e mais tarde que diga à sua filha
que eu voei lá no céu
e fui contentamento deslumbrado
ao ver na sua casa as contas de somar erradas
e as batatas no saco esquecidas
e íntegras
ANA LUÍSA AMARAL,
"Minha Senhora de Quê", Quetzal Editores, Lisboa, 1999
MINHA SENHORA DE QUÊ
dona de quê
se na paisagem onde se projectam
pequenas asas deslumbrantes folhas
nem eu me projectei
se os versos apressados
me nascem sempre urgentes:
trabalhos de permeio refeições
doendo a consciência inusitada
dona de mim nem sou
se sintaxes trocadas
o mais das vezes nem minha intenção
se sentidos diversos ocultados
nem do oculto nascem
(poética do Hades quem mdera!)
Dona de nada senhora nem
de mim: imitações de medo
os meus infernos
ANA LUÍSA AMARAL,
"Minha Senhora de Quê", Quetzal Editores, Lisboa, 1999
DESCULPA-ME A TERNURA
Enternece-me pensar que estás aí,
não força de trabalho desigual
nem vida à pressa,
mas minha amiga.
Talvez as palavras que te digo
me transpareçam classe,
talvez nem te devesse dizer nada.
Porque és a mão que ampara o meu silêncio,
a minha filha, o meu cansaço
— à custa do teu cansaço, da tua filha,
do teu silêncio.
Não há homens-a-dias neste mundo,
mas tantas como tu,
a segurar nas mãos e no sorriso
algumas como eu.
Entraste há pouco a perguntar
se eu tinha febre
— a louça por lavar nas tuas mãos,
aspirando o cansaço dos meus ombros,
nos teus ombros o cansaço de mim
e o cansaço de ti.
Desculpa os meus silêncios,
o falar-me contigo como com mais ninguém,
desculpa o tom sem pressa
— e o meu dinheiro que não chega a nada,
comprando o teu trabalho
(o teu sorriso)
ANA LUÍSA AMARAL,
"Às Vezes o Paraíso", (2ª edição), Quetzal Editores, Lisboa
MC
domingo, 9 de outubro de 2011
Pascal e eu...
"Le coeur a ses raisons que la raison ne connait pas!"
Encontrei-me com Pascal, não ao virar de uma esquina, mas ao voltar a página de um livro, onde li a frase que me alvoroçou, na adolescência. Com um sorriso enigmático, Pascal perguntou-me o que pensava deste seu pensamento e desapareceu.
Fiquei perplexa porque, francamente, nunca pensei muito nas razões do coração!
Contudo, creio que, se alguém se apaixona tão loucamente que o coração desconhece e descura a razão, esse alguém pode ser levado a ultrapassar limites, a desdenhar princípios e a rejeitar valores. Viverá, num desassossego, o assombro de uma paixão dominadora, impetuosa, cega que poderá, no entanto, justificar uma vida. Viverá uma paixão ardente, talvez doentia, terna mas colérica, pura mas libidinosa, lírica, mas trágica. Súbita e arrasadora! E, por tudo isso, perigosa!
Uma paixão, assim, é destrutiva. Destruíu António e Cleópatra, enlouqueceu Mariana de Alcoforado, levou Anna Karenina ao suicídio e transformou Otelo, um homem íntegro e justo, num assassino enraivecido, sem misericórdia.
A paixão é poderosa, mas cruel, contraditória. Ignora a razão e perde-se em tenebrosos labirintos de emoções irresistíveis, fortes, soltas, desgrenhadas. Mortais!
Qual fogueira alta e fulgurante, assim como arde esplendorosa e magnífica, também rapidamente se apaga e se desvanece, deixando um rasto de imensa tristeza, dolorosa frustração e inconsolável desapontamento, num amontoado de “ pó, cinzas e nada”.
Mas, extinta uma paixão, outras paixões nascem, igualmente fogosas, imprudentes, brilhantes! Pois, se é verdade, que a estrela que se esconde no nosso coração e nos guia, nunca empalidece, nem mesmo quando o corpo evidencia já sinais de decadência, também não é menos verdade, que este companheiro precioso que nos mantém vivos, nunca envelhece e conserva, ao longo da vida, o mesmo ímpeto, a mesma ousadia, a mesma irreverência, a mesma paixão da juventude. E, é esse ardor, essa rejeição do razoável, essa necessidade inesgotável de viver num estado permanente e caótico de paixão, que pode ser e talvez seja, perigoso! Não sei...
Foi Florbela Espanca, a nossa poetisa da mágoa amorosa e tresloucada, que escreveu:
“ Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: aqui... além...”
“Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!”
Acredito que o amor não tem explicação e não tem, propriamente, razão de ser! Acontece! Somos atraídos para o outro porque... sim! Inexplicavelmente! De repente, no voltar de uma cabeça, as almas a reconhecem-se, sei lá de onde, dois olhares a cruzam-se e dissolvem-se na mesma luz, dois sorrisos de dentes brancos, como pedrinhas de sal, fundem-se no espanto ansioso de um reencontro há muito esperado e o coração dispara! E bate muito, bate forte, cheio de alegria e de esperança! Num encantamento mágico, puro, como se fosse um coração de criança!
Se essa atracção, forte e irresistível, perdura e se transforma num sentimento profundo, feito de ternura, de entrega e de verdade, será amor! E, é esse amor verdadeiro, intenso, único, que talvez nunca morra. Mesmo no caso de uma separação. Imposta pela morte ou... pela vida! Pelas imposições tortuosas, difíceis da vida! Porque um amor assim contém, em si, a centelha da eternidade! Adormece na tristeza da solidão e ali fica a um canto, aparentemente morto, fogueira apagada, desfeita em cinza. Aparentemente esquecido e frio! Porém, bem lá bem no fundo do mar estagnado de cinzas, permanece um braseiro, numa dormência silenciosa e quieta, mas vivo, constante, que a brisa mais suave de uma manhã de primavera, ou a rajada mais forte e inesperada de uma noite de vento, reacende e a chama escondida, mas latente, cresce exultante, brilha e resplandece de novo. Viva, infatigável, renascida , urgente. E nesse reacendimento, que a razão talvez não explique, está uma parte de nós, faúlha de luz que nos completa, pedaço de alma que nos liga à infinitude do Universo. Sei lá...
Creio, porém, que não estamos todos destinados a viver a exaltação tumultuosa de uma paixão avassaladora, como Tristão e Isolda! Também não é qualquer um de nós que terá coragem para carregar a pesada cruz de um amor fundo, verdadeiro, braseiro vivo e eterno, mas forçado a trilhar caminhos paralelos, como Abelardo e Heloísa!
Os nossos amores são, no geral, como nós: humanos! Acomodados, comezinhos, friáveis, sem chama...
Ainda bem que Pascal desapareceu, repousa sossegado e não lê o que acabei de escrever sobre um dos seus mais conhecidos pensamentos...
MC
Encontrei-me com Pascal, não ao virar de uma esquina, mas ao voltar a página de um livro, onde li a frase que me alvoroçou, na adolescência. Com um sorriso enigmático, Pascal perguntou-me o que pensava deste seu pensamento e desapareceu.
Fiquei perplexa porque, francamente, nunca pensei muito nas razões do coração!
Contudo, creio que, se alguém se apaixona tão loucamente que o coração desconhece e descura a razão, esse alguém pode ser levado a ultrapassar limites, a desdenhar princípios e a rejeitar valores. Viverá, num desassossego, o assombro de uma paixão dominadora, impetuosa, cega que poderá, no entanto, justificar uma vida. Viverá uma paixão ardente, talvez doentia, terna mas colérica, pura mas libidinosa, lírica, mas trágica. Súbita e arrasadora! E, por tudo isso, perigosa!
Uma paixão, assim, é destrutiva. Destruíu António e Cleópatra, enlouqueceu Mariana de Alcoforado, levou Anna Karenina ao suicídio e transformou Otelo, um homem íntegro e justo, num assassino enraivecido, sem misericórdia.
A paixão é poderosa, mas cruel, contraditória. Ignora a razão e perde-se em tenebrosos labirintos de emoções irresistíveis, fortes, soltas, desgrenhadas. Mortais!
Qual fogueira alta e fulgurante, assim como arde esplendorosa e magnífica, também rapidamente se apaga e se desvanece, deixando um rasto de imensa tristeza, dolorosa frustração e inconsolável desapontamento, num amontoado de “ pó, cinzas e nada”.
Mas, extinta uma paixão, outras paixões nascem, igualmente fogosas, imprudentes, brilhantes! Pois, se é verdade, que a estrela que se esconde no nosso coração e nos guia, nunca empalidece, nem mesmo quando o corpo evidencia já sinais de decadência, também não é menos verdade, que este companheiro precioso que nos mantém vivos, nunca envelhece e conserva, ao longo da vida, o mesmo ímpeto, a mesma ousadia, a mesma irreverência, a mesma paixão da juventude. E, é esse ardor, essa rejeição do razoável, essa necessidade inesgotável de viver num estado permanente e caótico de paixão, que pode ser e talvez seja, perigoso! Não sei...
Foi Florbela Espanca, a nossa poetisa da mágoa amorosa e tresloucada, que escreveu:
“ Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: aqui... além...”
“Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!”
Acredito que o amor não tem explicação e não tem, propriamente, razão de ser! Acontece! Somos atraídos para o outro porque... sim! Inexplicavelmente! De repente, no voltar de uma cabeça, as almas a reconhecem-se, sei lá de onde, dois olhares a cruzam-se e dissolvem-se na mesma luz, dois sorrisos de dentes brancos, como pedrinhas de sal, fundem-se no espanto ansioso de um reencontro há muito esperado e o coração dispara! E bate muito, bate forte, cheio de alegria e de esperança! Num encantamento mágico, puro, como se fosse um coração de criança!
Se essa atracção, forte e irresistível, perdura e se transforma num sentimento profundo, feito de ternura, de entrega e de verdade, será amor! E, é esse amor verdadeiro, intenso, único, que talvez nunca morra. Mesmo no caso de uma separação. Imposta pela morte ou... pela vida! Pelas imposições tortuosas, difíceis da vida! Porque um amor assim contém, em si, a centelha da eternidade! Adormece na tristeza da solidão e ali fica a um canto, aparentemente morto, fogueira apagada, desfeita em cinza. Aparentemente esquecido e frio! Porém, bem lá bem no fundo do mar estagnado de cinzas, permanece um braseiro, numa dormência silenciosa e quieta, mas vivo, constante, que a brisa mais suave de uma manhã de primavera, ou a rajada mais forte e inesperada de uma noite de vento, reacende e a chama escondida, mas latente, cresce exultante, brilha e resplandece de novo. Viva, infatigável, renascida , urgente. E nesse reacendimento, que a razão talvez não explique, está uma parte de nós, faúlha de luz que nos completa, pedaço de alma que nos liga à infinitude do Universo. Sei lá...
Creio, porém, que não estamos todos destinados a viver a exaltação tumultuosa de uma paixão avassaladora, como Tristão e Isolda! Também não é qualquer um de nós que terá coragem para carregar a pesada cruz de um amor fundo, verdadeiro, braseiro vivo e eterno, mas forçado a trilhar caminhos paralelos, como Abelardo e Heloísa!
Os nossos amores são, no geral, como nós: humanos! Acomodados, comezinhos, friáveis, sem chama...
Ainda bem que Pascal desapareceu, repousa sossegado e não lê o que acabei de escrever sobre um dos seus mais conhecidos pensamentos...
MC
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