sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

O Outono


Outono!
Qualquer coisa lilás,
Schumann em violino,
Ângelus tangido em lentidões de sino...
Preguiçoso torpor de um fim de sono.
Espelho de água quieta dos canais!
Cá dentro, a idade,
restos de sonho e de mocidade;
trechos dispersos
de velhas ambições falhas na vida,
parcelas de antigas ilusões
que ainda, a custo, concentro
e invoco até agora!
Lá fora, a descida.
O crepúsculo inócuo destes dias,
a tristeza das folhas amarelas,
e a cantar sobre estas ruínas frias,
a monótona toada de meus versos.
Desce, Poeta!
A descida é suave...
Não te demanda rigidez de músculos
e nem exige que teu passo apresses...
A natureza é quieta,
da ingênua quietação de um sonho de ave,
e há paina nos crepúsculos...
No outono a luz é um eterno poente,
que mais à calma que ao rumor se ajeita;
Brilha, tão de manso e calma,
que até parece unicamente feita
para o estado d'Alma
de um convalescente.


Mário Pederneiras
(Rio de Janeiro 1867-1915)


 

 
O Outono que, dizem,  mais do que uma estação do ano, é um estado de alma, é a gestação delicada, mansa, amena do tempo mais tumultuado do ano. O Outono. É a sonata melancólica suave e mágica que prepara a sinfonia grandiosa, gélida, agreste do Inverno.

Mas. Esse é o tempo de doce quietude, de cores opulentas, pedaços dourados, vermelhos amarelos em forma de folhas a esvoaçarem num sopro e a atapetarem, num deslumbre de cor, o chão duro e nu. Agora.  Esse tempo de luz macia, coada e morna está a chegar ao fim, para dar lugar à chuva intempestiva, ao frio, à nudez esquálida das árvores, ao cinzento monótono dos dias.

Não. Não gosto do Inverno gélido, escuro, chuvoso e lamacento, com o granizo,, a bater, violento, nas janelas e a acordar, malévolo, os medos ancestrais, que já nascem connosco!

Não. Não gosto dos meses velhos e revelhos, longos, espalhados, num desconsolo entediado, em dias soturnos, curtos, mas intermináveis...

 Contudo.  Sei que o Inverno é também tempo  da natureza se preparar, presa no negrume que me pesa, para uma explosão de beleza e de luz. Mesmo assim. Dá-me a sensação deprimente de ausência, de perda, de infinita solidão! Que só a longínqua Primavera redime...

MC

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

O rosto ao espelho


Retrato

"Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
Em que espelho ficou perdida a minha face?"


 

 Em que espelho perdi o meu rosto macio, inocente, onde brilhava, radiosa, a esperança, Mãe? Onde está esse rosto liso, puro e confiante, que cabia, perfeito, na seda das tuas mãos? Talvez. Intocado no espelho dos teus olhos claros, Mãe! Agora. Eternizado, no teu espírito transparente, cristalino, o meu rosto de menina, parte da minha alma, pedaços do meu coração... No entanto. Neste espelho onde me vejo não tenho o olhar vazio, nem o lábio amargo, nem as mãos paradas, sem força, mortas. Não. Estou viva, Mãe! Quero o meu olhar com a  claridade verde e translúcida do campo, nas serenas madrugadas de verão, quero os meus lábios com a doçura de mãos que se entrelaçam, quero o meu coração vibrátil, como um braseiro latente, que uma lufada de vento transforme, assim de repente, em chama alta.  As minhas mãos secas, magras e nervosas, essas,  buscam, infatigáveis,  as palavras que me fogem, que se escondem e não se juntam com a harmonia, a beleza, a melodia que anseio. Porém. Não te aflijas, Mãe! Pelo menos. Sei em que espelho ficou perdida, a minha face. Perdida, não! Imutável, aconchegada, perfeita.

MC

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

"As Luzes de Leonor"


Seria hoje, dia 28 de Setembro de 2012 que D. Maria Teresa Horta receberia o prémio D. Dinis das mãos de Passos Coelho. Recusou recebê-lo das mãos do Primeiro Ministro!

 O livro premiado, "Luzes de Leonor", é um poema deslumbrante, um hino comovente, uma grandiosa sinfonia. São 1054 páginas de pura poesia em prosa e onde a autora recria a vida de Leonor de Almeida Portugal, Marquesa de Alorna, uma figura ímpar de mulher na história literária e política de Portugal!
Marquesa de Alorna, uma mulher bela, inteligente, arrebatada, espírito de luz e de talento poético, uma  “sedutora de anjos, poetas e heróis.”
A leitura desta obra é uma magnífica e fascinante aventura, o privilégio de acompanhar a desmesura do voo infatigável de uma mulher talentosa e apaixonada que encarna o “Sturm und Drang” e abre as portas ao Romantismo em Portugal.

 Aqui ficam as razões porque D. Maria Teresa Horta recusou receber o prémio D. Dinis das mãos de Passos Coelho:

 “Na realidade eu não poderia, com coerência, ficar bem comigo mesma, receber um prémio literário que me honra tanto, cujo júri é formado por poetas, os meus pares mais próximos - pois sou sobretudo uma poetisa, e que me honra imenso -, ir receber esse prémio das mãos de uma pessoa que está empenhada em destruir o nosso país.

Sempre fui uma mulher coerente; as minhas ideias e aquilo que eu faço têm uma coerência.

Sou uma mulher de esquerda, sempre fui, sempre lutei pela liberdade e pelos direitos dos trabalhadores.

O primeiro-ministro está determinado a destruir tudo aquilo que conquistámos com o 25 de Abril e as grandes vítimas têm sido até agora os trabalhadores, os assalariados, a juventude que ele manda emigrar calmamente, como se isso fosse natural.

 O país está a entrar em níveis de pobreza quase idênticos aos das décadas de 1940 e 1950 e, na realidade, é ele [Passos Coelho], e o seu Governo, os grandes mentores e executores de tudo isto.

Não recuso o prémio que me enche de orgulho e satisfação, recuso recebê-lo das mãos do primeiro-ministro.”

NOTA: Parabéns, D. Maria Teresa Horta! Lamentamos o cancelamento da festa de homenagem, que a Senhora tanto merecia! Lamentamos também o fim deste prestigiado Prémio D. Dinis, que já seria de esperar neste triste país falido e de mão estendida.

MC


sexta-feira, 3 de agosto de 2012

"O quente aconchego da Mãe Negra"

Todos sabemos que a capa e do título de um livro são de suprema importância para captar a atenção dos leitores.
Assim sendo, quem pode resistir, especialmente aqueles que, como eu, trazem África no coração, a este belíssimo e sugestivo título, " O quente aconchego da Mãe Negra" , de Sérgio Veiga, tendo no canto esquerdo a "apetitosa" indicação: Prefácio de Mia Couto, outro grande Escritor africano?
Na capa, belíssima capa, uma mulher de costas, com o filho escarranchado na anca, parece olhar o infinito e, ao fundo, uma árvore, talvez um embondeiro e um leão altivo, sentado na terra batida, seca, vermelha, de que é rei!

Eu, decididamente, não resisti e comprei o livro!

E, acreditem que, por momentos, com o livro na mão, meio hipnotizada pela magia e pelo encantamento da capa e do título do livro de um autor que não conheço, senti-me regressar à África da minha infância e juventude e pareceu-me voltar a sentir a envolvência e o aconchego, macio e doce, da Ana, a minha ama negra que me embalou com ternura nos braços negros e roliços e me contava histórias que eu escutava com os olhos redondos de espanto, brilhantes de satisfação. Ana que eu gostaria de ter guardado comigo, só para mim, até ao fim dos meus dias, mas que, por um desígnio mais forte do que todo o querer do mundo, também perdi.
Dela, ficaram, para sempre, docemente aninhadas no meu coração, a ternura, a alegria, as canções de ninar e o encantamento das pequenas histórias, onde a realidade ingénua da sua vivência, o místico e o fantástico se entrelaçavam numa harmonia perfeita e estranha, como se a Ana contivesse, em si, toda a força, todo o mistério e todo o fascínio de África!

África do sol quente, dolente e voluptuoso; do capim, amarelo e ressequido e das árvores espectrais, erguidas para o céu, na época seca, como mãos descarnadas, implorantes, quase mortas . Mas, também África da vegetação luxuriante, plantas raras, únicas, de folhagem verde e macia, onde o cacimbo escorre, tranquilo e límpido como lágrimas de reconciliação .

África dos flamingos cor-de-rosa, toque de delicado romantismo nos mangais; dos pássaros de mil cores que cortam o espaço numa vibração de alegria e de plenitude; dos animais selvagens, senhores absolutos de uma terra que é sua, estampas de perfeição e imponência, que aí se criam e reproduzem, numa estonteante explosão de vida e de beleza.

África da espantosa riqueza do minério e das pedras preciosas; das extensas plantações de cana-de-açúcar, do algodão e do café que, em muitas zonas, se oferece espontâneo e farto, num esbanjamento de fidalguia abastada !

África das baías azuis, langorosas e doces como um regaço de mãe; das areias delicadas e douradas como carícias de criança; dos palmeirais esguios, lânguidos e ondulantes, que o vento agita mansamente, amorosamente, com requintes de amante !

África do cheiro consolado da terra depois da chuva . Chuvadas fortes, repentinas, benção do céu que fecunda e cria; das trovoadas violentas, assustadoras que atroam os ares e despertam, malévolas, os velhos medos de infância; dos poentes breves, mas intensos, clarões fortes, vermelhos, sanguinolentos como lagos incandescentes de amor, de ciúme e de traição

África do cantar monocórdico das cigarras; da alegria atrevida, provocante das acácias em flor; dos milhares de pirilampos, pequenos pontos de luz perdidos no escuro profundo de uma terra adormecida !

E, à sexta-feira à noite, no frenesim das batucadas que irrompem súbitas no ar, África estremece vibrante e ansiosa. Nas sanzalas, os corpos negros, elásticos, suados, agitam-se indomáveis, em frémitos de prazer e de paixão, à luz ardente das fogueiras, ao som agreste e exuberante dos batuques ! E, durante duas noites, a sanzala cuidada e pachorrenta, transfigura-se ao ritmo inquietante dos tambores, na sensualidade lasciva da dança, nas brigas violentas, em tremendas bebedeiras !

África do andar lento e requebrado das negras, corpos sinuosos, indolentes, envoltos em panos coloridos, artisticamente traçados, carregando com naturalidade e alegria os filhos que criam livremente, sem pressas e sem angústia, confiantes na força de uma Natureza tantas vezes caprichosa e nem sempre compassiva, mas que respeitam e amam !

Estive, pela última vez, na "minha" África há muitos anos, tantos, que não os quero contar, poucos dias antes de partir rumo a uma Europa bem mais sofisticada, fria e cinzenta .

Vejo ainda, com os olhos da alma, resplandecer essa África exuberante e misteriosa que amei apaixonadamente e que, para sempre, retenho na minha memória, nos meus sentidos, nas minhas veias, como parte integrante de mim, como uma marca de fogo, indelével ! E, essa terra vermelha, de contrastes vivos e bem marcados, que ainda vejo e guardo na minha alma, permanece bela e intacta, depurada de todo o Mal, pelo filtro mágico da distância e da nostalgia !

Contudo, não é sem espanto e mágoa que, em momentos como este, me vou dando conta do muito que já esqueci. Pedaços de vida que já não são meus, perdidos na névoa de um Passado, aqui e ali, já morto, porque, aqui e ali, já desvanecido pela erosão implacável do Tempo !
E, nas clareiras que os anos foram abrindo na minha memória, ergue-se, solitária e dorida, a Cruz negra da Saudade e florescem, cansadas, estranhas violetas, sem viço e sem perfume !

Esta é a África, onde nasci e cresci, a única que conheço, que recordo, que amo!
As minhas raízes ainda lá estão, na terra imensa, suada, sofrida: junto ao embondeiro gigantesco, sentinela imponente da savana africana; junto ao mar, enterradas na areia fina, translúcida e, talvez também, no coração terno, amoroso, da Ana.

E, a propósito da capa e do título de um livro, aqui estive a vasculhar no meu baú de escritos esquecidos, onde encontrei este texto, revelho e relido, a transbordar Saudade, que dedico a todos os que têm África no coração.

MC

terça-feira, 24 de julho de 2012

O voluntariado no hospital

Alunos do 1º ano da Faculdade de Medicina decidiram fazer um trabalho sobre o Serviço de Voluntariado no hospital.
Não sei porquê, pediram-me que conversasse com eles e respondesse às perguntas que certamente iriam fazer. Tarefa ingrata! O voluntariado não se diz, sente-se e faz-se! Não há receitas, nem teorias. É um trabalho difícil que, às vezes, desgasta emocionalmente, e dá, ao voluntário, a justa e tremenda medida da sua impotência, da sua inutilidade perante o sofrimento e a doença! Mas também muito gratificante! Pelo muito que se aprende! Pelo muito que se recebe!

Falei-lhes, por alto, das tarefas comezinhas que competem ao voluntário.
Preocupei-me, sim, em dizer-lhes que quem abraça este serviço, tem, essencialmente, de ter capacidade e paciência para ouvir. Há confissões, angústias e pesadelos que se contam a alguém de bata amarela, figura algo fantasmagórica, que o doente espera não encontrar no seu mundo lá fora, e a mais ninguém.

Disse-lhes que o voluntário lida, impotente e angustiado, não só com a doença e, muitas vezes, com a inexorável aproximação da morte, mas também com o medo, o terror que, como uma cobra, negra e sinuosa, se enrola, poderosa, na alma do doente, esmagando-o e quase destruindo os restos de uma esperança teimosa e débil. E, é esse fiozinho verde de esperança que se tem de manter vivo, ainda que bruxuleante! Com palavras confiantes num final feliz, com pequenas histórias de outros êxitos, em situações semelhantes, com pequenas mentiras...

Disse-lhes que não há regras no voluntariado porque cada caso é um caso. Daí a necessidade de adaptação à maneira de ser, à idade e à cultura do doente. Já ouvi dissertações muito interessantes e pitorescas sobre o plantio das pencas, dos grelos, das cebolas e das “rabas” que, penso, são rábanos, sobre a criação de coelhos e de galinhas e assisti a algumas aulas teóricas de culinária, recheadas de receitas e de segredos! Eu que não gosto nada de cozinhar...
Mas também já tive conversas maravilhosas sobre Literatura, Música, Cinema e... Futebol. Ainda não há muito tempo, foi com espanto que ouvi uma doente falar em Rosalia de Castro, escritora e poetisa galega, de quem, por mero acaso, tinha lido a biografia e uns poemas lindos. Outra falou-me de Mia Couto, que conhecia desde menino, pois tinha sido vizinha dele e dos pais, em Moçambique e foi um gosto enorme, comentar com ela a obra deste escritor africano, que adoro! Acabei mesmo por lhe oferecer o livro “Jesusalém”, um dos poucos dos seus livros que ela ainda não tinha comprado e que estava ansiosa por ler.

Disse-lhes que o voluntário deve ser cauteloso e evitar falar sobre religião. Este é um terreno delicado, movediço e perigoso! Deus não pode ser invocado, como uma muleta, quando as palavras não bastam ou ficam, teimosamente, presas na garganta....

A um ateu, não se pode dizer que Deus é grande, quando ele se sente tão mal, tão enfraquecido, tão desamparado e descrente de tudo! O dom da Fé será arrimo de muitos, mas, verdade seja, falta a tantos!
E, como dizer a uma jovem mãe, que se sente morrer dia a dia, hora a hora, que os desígnios de Deus são sempre benfazejos e que Ele faz tudo pelo melhor, quando ela, esgotada pela doença e já destroçada pela saudade, sabe que a sua ausência vai abrir, no coração dos seus meninos, um vazio tão fundo, tão sombrio e tão gelado que não há tempo que o suavize, não há sol que o ilumine, nem há incêndio que o aqueça? Tinhamos assistido, dias antes, a uma tristeza destas... Que dói muito, que revolta!

Disse-lhes que pensei, um dia, desistir deste trabalho porque aqueles doentes a quem inexplicavelmente, mais me afeiçoava, morriam. Alguns, sem que nada fizesse prever a sua morte.Cheguei a ter medo de me sentir mais atraída por este ou aquele doente, como se essa minha imediata inclinação afectuosa fosse um prenúncio de triste desenlace. Com o tempo compreendi que eram apenas as contigências da doença, da vida, dos afectos, sei lá, e recomendei-lhes a leitura de “Afinidades Electivas” de Goethe. Porque essas afinidades, amorosas, no caso do livro, mas não só, existem! Há pessoas por quem sentimos uma empatia irresistível.

Disse-lhes que é impossível não temer a morte, não pensar na morte, quando se está internado no hospital. O doente é um ser muito fragilizado, cheio de dúvidas e de terrores, mesmo que finja confiança e optimismo, sempre à espera de uma palavra de alento, especialmente, do seu médico que, nesses dias de debilidade e de insegurança toma a forma de um deus poderoso!
E, atrevi-me a indicar-lhes três livros, antigos mas belíssimos, que eles não conheciam, que li ainda muito jovenzinha e que já reli, mais do que uma vez e sempre com o mesmo encantamento: “Olhai os lírios do campo” de Erico Veríssimo, “ A cidadela” de A.J. Cronin e “Retalhos da vida de um médico” de Fernando Namora, um autor injustamente, muito esquecido!

Não sei se cumpri, inteiramente, a tarefa de que fui incumbida, mas tentei dizer a esses jovens, que o voluntário apenas pode suavizar alguns momentos dos dias tristes do doente, ouvindo-os, estendendo-lhes as mãos e ajudando-os a manter a esperança. Por outro lado, tentei dar a esses futuros médicos, a noção da suprema importância da humanização no hospital, do seu compassivo debruçar sobre o ser humano que se esconde atrás do caso clínico, aliados ao seu saber e à sua perícia, no exercício da sua profissão, que, muito mais do que isso, é uma preciosa e nobre missão.

MC


Para reflectir, aqui deixo um texto muito interessante, que encontrei por aí:



“É difícil não pensar em morte quando se está num hospital.
Talvez porque seja o assunto proibido. Não falamos de morte. Só quando é absolutamente necessário.
Mas se pensarmos bem, é a morte que dá sentido à vida.
O que aconteceria se ninguém nunca morresse?
Os dias iam passar e passar e as coisas não teriam tanto sentido. “Correr atrás” para quê? Grandes feitos, com que propósito?
Saber que a vida é curta, que a qualquer momento ela pode terminar, faz todas as demais coisas ganharem importância.
É no leito de morte, ou na iminência da morte que damos a valor aos pequenos prazeres da vida, que perdoamos os desafectos, que confessamos nossas falhas e pedimos absolvição. Faríamos isso se nunca fossemos morrer?
A morte dá cor à vida. Humaniza as pessoas.
Não é estranho pensar que é justamente a morte que valoriza a vida?
É um pensamento meio louco, concordo.
Eu não tenho medo de morrer – tenho medo sim, da forma como vou morrer. E tenho medo, também, de morrer antes de ter vivido tudo que eu quero viver.
Viver até ver meus netos terem netos…
Até não ver mais graça no pôr do sol.
Até não sentir mais amor por nada nem ninguém.
Porque no dia que eu for incapaz de me emocionar com os milagres diários e a magia da vida, é hora da morte me levar.
Eu sei, falar de morte de dentro de um hospital é mau agouro.”

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Declaração de Amor à Língua Portuguesa

Teolinda Gersão escreveu, no Público de ontem, dia 19 de Junho,uma Declaração de Amor à Língua Portuguesa que é um maravilhoso texto sobre o horror que está instalado, nas nossas Escolas, no ensino do Português.


Tempo de exames no secundário, os meus netos pedem-me ajuda para estudar português. Divertimo-nos imenso, confesso. E eu acabei por escrever a redacção que eles gostariam de escrever. As palavras são minhas, mas as ideias são todas deles.
Aqui ficam, e espero que vocês também se divirtam. E depois de rirmos espero que nós, adultos, façamos alguma coisa para libertar as crianças disto.


Redacção – Declaração de Amor à Língua Portuguesa

"Vou chumbar a Língua Portuguesa, quase toda a turma vai chumbar, mas a gente está tão farta que já nem se importa. As aulas de português são um massacre. A professora? Coitada, até é simpática, o que a mandam ensinar é que não se aguenta. Por exemplo, isto: No ano passado, quando se dizia “ele está em casa”, ”em casa” era o complemento circunstancial de lugar. Agora é o predicativo do sujeito.”O Quim está na retrete”: “na retrete” é o predicativo do sujeito, tal e qual como se disséssemos “ela é bonita”. Bonita é uma característica dela, mas “na retrete” é característica dele? Meu Deus, a setôra também acha que não, mas passou a predicativo do sujeito, e agora o Quim que se dane, com a retrete colada ao rabo.

No ano passado havia complementos circunstanciais de tempo, modo, lugar etc., conforme se precisava. Mas agora desapareceram e só há o desgraçado de um “complemento oblíquo”. Julgávamos que era o simplex a funcionar: Pronto, é tudo “complemento oblíquo”, já está. Simples, não é? Mas qual, não há simplex nenhum,o que há é um complicómetro a complicar tudo de uma ponta a outra: há por exemplo verbos transitivos directos e indirectos, ou directos e indirectos ao mesmo tempo, há verbos de estado e verbos de evento,e os verbos de evento podem ser instantâneos ou prolongados, almoçar por exemplo é um verbo de evento prolongado (um bom almoço deve ter aperitivos, vários pratos e muitas sobremesas). E há verbos epistémicos, perceptivos, psicológicos e outros, há o tema e o rema, e deve haver coerência e relevância do tema com o rema; há o determinante e o modificador, o determinante possessivo pode ocorrer no modificador apositivo e as locuções coordenativas podem ocorrer em locuções contínuas correlativas. Estão a ver? E isto é só o princípio. Se eu disser: Algumas árvores secaram, ”algumas” é um quantificativo existencial, e a progressão temática de um texto pode ocorrer pela conversão do rema em tema do enunciado seguinte e assim sucessivamente.

No ano passado se disséssemos “O Zé não foi ao Porto”, era uma frase declarativa negativa. Agora a predicação apresenta um elemento de polaridade, e o enunciado é de polaridade negativa.
No ano passado, se disséssemos “A rapariga entrou em casa. Abriu a janela”, o sujeito de “abriu a janela” era ela,subentendido. Agora o sujeito é nulo. Porquê, se sabemos que continua a ser ela? Que aconteceu à pobre da rapariga? Evaporou-se no espaço?

A professora também anda aflita. Pelo vistos no ano passado ensinou coisas erradas, mas não foi culpa dela se agora mudaram tudo, embora a autora da gramática deste ano seja a mesma que fez a gramática do ano passado. Mas quem faz as gramáticas pode dizer ou desdizer o que quiser, quem chumba nos exames somos nós. É uma chatice. Ainda só estou no sétimo ano, sou bom aluno em tudo excepto em português,que odeio, vou ser cientista e astronauta, e tenho de gramar até ao 12º estas coisas que me recuso a aprender, porque as acho demasiado parvas.

Por exemplo,o que acham de adjectivalização deverbal e deadjectival, pronomes com valor anafórico, catafórico ou deítico, classes e subclasses do modificador, signo linguístico, hiperonímia, hiponímia, holonímia, meronímia, modalidade epistémica, apreciativa e deôntica, discurso e interdiscurso, texto, cotexto, intertexto, hipotexto, metatatexto, prototexto, macroestruturas e microestruturas textuais, implicação e implicaturas conversacionais? Pois vou ter de decorar um dicionário inteirinho de palavrões assim. Palavrões por palavrões, eu sei dos bons, dos que ajudam a cuspir a raiva. Mas estes palavrões só são para esquecer. Dão um trabalhão e depois não servem para nada, é sempre a mesma tralha, para não dizer outra palavra (a começar por t, com 6 letras e a acabar em “ampa”, isso mesmo, claro.)

Mas eu estou farto. Farto até de dar erros, porque me põem na frente frases cheias deles, excepto uma, para eu escolher a que está certa. Mesmo sem querer, às vezes memorizo com os olhos o que está errado, por exemplo: haviam duas flores no jardim.
Ou : a gente vamos à rua. Puseram-me erros desses na frente tantas vezes que já quase me parecem certos. Deve ser por isso que os ministros também os dizem na televisão. E também já não suporto respostas de cruzinhas, parece o totoloto. Embora às vezes até se acerte ao calhas. Livros não se lê nenhum, só nos dão notícias de jornais e reportagens,ou pedaços de novelas. Estou careca de saber o que é o lead, parem de nos chatear. Nascemos curiosos e inteligentes, mas conseguem pôr-nos a detestar ler, detestar livros, detestar tudo. As redacções também são sempre sobre temas chatos, com um certo formato e um número certo de palavras. Só agora é que estou a escrever o que me apetece, porque já sei que de qualquer maneira vou ter zero.

E pronto, que se lixe, acabei a redacção - agora parece que se escreve redação.O meu pai diz que é um disparate, e que o Brasil não tem culpa nenhuma, não nos quer impôr a sua norma nem tem sentimentos de superioridade em relação a nós, só porque é grande e nós somos pequenos. A culpa é toda nossa, diz o meu pai, somos muito burros e julgamos que se escrevermos ação e redação nos tornamos logo do tamanho do Brasil, como se nos puséssemos em cima de sapatos altos. Mas, como os sapatos não são nossos nem nos servem, andamos por aí aos trambolhões, a entortar os pés e a manquejar. E é bem feita, para não sermos burros.

E agora é mesmo o fim. Vou deitar a gramática na retrete, e quando a setôra me perguntar: Ó João, onde está a tua gramática? Respondo: Está nula e subentendida na retrete, setôra, enfiei-a no predicativo do sujeito.

João Abelhudo, 8º ano, turma C (c de c…r…o, setôra, sem ofensa para si, que até é simpática)."

TEOLINDA GERSÃO – escritora, foi professora catedrática da Universidade Nova

NOTA: Eu, a desalinhada, não quero crer que os Professores de Português aceitem toda esta estupidez, sem uma palavra de protesto, uma manifestação de repúdio, um assomo de revolta! Aceitar esta loucura caladamente, mansamente, ( são complementos oblíquos), seria traír a Língua Portuguesa, que se comprometeram bem ensinar e defender, enquanto Profissionais. Seria assim como... vender a alma ao diabo!

MC

domingo, 6 de maio de 2012

Quero... Queria...

Hoje, quero voltar à terra vermelha, encharcada de luz, que me viu nascer.

Hoje, quero a alegria das acácias em flor, o feitiço do mar azul e translúcido, a doçura das madrugadas brandas e límpidas, a incandescência dos poentes sanguinolentos, breves, mas fortes.

Hoje, quero carinho, palavras ternas, abraços macios.

Hoje, quero sorvete de baunilha e de chocolate, paracuca, ginguba coberta de açúcar, e maçaroca tenra, assada pela Averina, a nossa lavadeira, que queria ficar comigo, para sempre.

Hoje, quero brincar no jardim e quero beijos mágicos, que tudo saram, no dói-dói que fiz no joelho e no arranhão que a Fanny, gatinha marota, me fez no nariz.

Hoje, quero o bibe branco sujo de terra, com manchas de relva e de flores sediças, que eram o almoço das bonecas, e os laços, no cabelo, desfeitos, na brincadeira.
Quando a correria acabar, quero colher a flor mais bonita e mais viçosa, só para ti.

Hoje, quero passear livre pela praia, o corpo molhado e salpicado de areia e, na pele, quero a carícia mole, quente e vagarosa do sol.

Hoje, quero vestir o meu vestido cor-de-rosa, de popelina, leve e fresco, que me ficava tão bem, com as sandálias brancas a enfeitarem-me os pés. E quero tranças no cabelo com lacinhos de seda nas pontas.

Hoje, quero lambuzar-me com uma manga madura, carnuda, a polpa delicada a desfazer-se na boca e o sumo amarelo e doce a escorrer pelo queixo, para se perder, atrevido, no bibe branco.

Hoje, quero ler e escrevinhar aquelas “coisas”, singelas e inocentes, de menina, no caderno azul, à sombra gostosa da buganvília roxa.

Hoje, quero pudim de côco, biscoitos de canela e beber quissangua, dourada e transparente.

Amanhã, quero acordar com a minha cadelinha Romy a lamber-me o rosto e a esconder o focinho pontiagudo e castanho, no meu pescoço.

Hoje, quero colo, Mãe!


Hoje queria, Mãe, os teus beijos mágicos, para sararem as feridas abertas na minha alma; queria o teu abraço macio para me aconchegar e proteger dos relentos gelados da vida; queria a luz do teu sorriso para espantar os meus medos, os meus pesadelos as minhas angústias; queria as tuas mãos, delicadas mas fortes, para me ampararem nos tropeções e nas quedas, que vou dando, no caminho...

Queria-te comigo, Mãe!

domingo, 29 de abril de 2012

Se eu fosse flor...

Se eu fosse flor, seria papoila. Rubra, esguia, vibrátil.
Pétalas macias, sedosas. Singelas.
Hastes quebradiças a balançar, arrebatadas, ao vento.
Papoila a crescer, a esmo, em todos os cantos. E a insinuar-se, atrevida, nos loiros trigais.

Seda e linho.
Vermelho e ouro.
Sangue e lume.
Sol e Lua.

Mulher.
Amante e amiga.
Amada... talvez.
Tenho segredos. Como nuvens brancas, de Verão.
Recantos de silêncios... com a leveza do vento brando, com a fúria da tempestade desfeita..
Espaços infinitos de azul, onde vagueiam sonhos.
Tenho canteiros de risos e socalcos de dor. E lagos de lágrimas.
E prados verdes de Esperança... Com cheiro a lavanda e a tomilho.

A papoila rubra, com estames longos, como cílios, também tem um segredo.
Pecaminoso. Letal.
Que esconde, amarfanhado, numa inquietude.
Coração de rubi. Aflito.
Segredo, mistério... só revelado, quando colhida.
Corola cortada, esmaecida, seda preciosa, esfiapada.
Papoila rubra, gelo e incêndio, usa veneno, em vez de perfume.

Se eu fosse flor, seria papoila. A balançar, arrebatada, ao vento.
Rubra e vibrátil.
Lume e sangue.
O meu veneno?
Serias tu.

MC

domingo, 22 de abril de 2012

Lua adversa

Um lindíssimo poema que foi a mola impulsora de um texto que escrevi, à toa, num desacerto de palavras desavindas, um amontoado frases sem sentido, sei lá...
Estaria eu, talvez, numa fase adversa da lua? Cecília Meireles, perdoa-me!


LUA ADVERSA

Tenho fases, como a lua
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...

Cecília Meireles




Também eu tenho fases! Como a Lua!

Tenho fases de recolhimento.

E, como se fosse uma flor, resguardada na sombra de botão cerrado, meu coração imobilizado no peito, fecha-se numa quietude sem graça, sem perfume e sem cor. Botão melancólico, contido.
Anunciação. Pressentimento.
Sou água e sou braseiro amortecido.
“ Fase de andar escondida.” De ti.

Aí sou tímida Lua Nova.


Tenho fases de revelação.

Flor que floresce devagarinho, ansiosa, palpitante de vida. Temerosa, talvez.
Grávida de cor, de perfume, de beleza. Flor que não se vê. Ainda...
Um rasto de luz, tímido e suave.. Apenas promessa. Compromisso, não.
Espreito o mundo. Onde estás...?
Sou leite e sou brasa incendiada.
Avalanche de sonhos, nas asas da Esperança.
“Não me encontro com ninguém.” Ainda...

Aí sou expectante Quarto Crescente.


Tenho fases de completude.

Flor radiosa, vibrante e delicada.
Flor de cetim, toque de veludo, esplendorosa de cor, perfumada.
Aí, “fase de vir para a rua”.
Tanta vida para viver.
Coração em sobressalto! De encantamento, de sonhos sonhados acordada, vindos de mansinho, nas asas diáfanas, verdes, da Esperança.
Verdes, como os teus olhos. Verdes, como os meus olhos.
Sou sangue e sou lume.
“ Fase de ser tua.”

Ai sou fulgurante Lua Cheia.


Tenho fases de esgotamento.

Flor cansada, lassa, corola amachucada, tombada num mole aveludado, emurchecido.
Coração tumultuado.
Já não guardo o teu perfume, começo a perder-te o rosto.
“Perdição da minha vida. Perdição da vida minha”.
Foram-se os sonhos nas asas da descrença.
Sou linfa e sou cinza.
“E roda a melancolia no seu interminável fuso”
Fase de “ser sozinha.”

Aí sou turvo Quarto Minguante.


Mas, na volta da Lua, não tarda, sou de novo Lua Nova, depois Quarto Crescente, e voltam os sonhos nas asas da Esperança sempre renascida, a seguir, sou, outra vez, Lua cheia, incandescente, brilhante... E, também sobressalto. Desacerto.
O turvo Quarto Minguante ? Não sei. Esqueci-o...





Aqui fica outro poema dedicado à Lua e suas fases.



LUA

Tens fases, és como a Lua,
quando iluminas a minha noite,
feminina, sedutora,
e te descobres,
te mostras nua,

Minguante, quando choras,
quando me esqueces,
quando entristeces,
quando foges do meu desejo,

Crescente, quando sorris,
quando me enlouqueces, ,
quando envaideces,
quando entro nos teus lábios,
és lua cheia num beijo...

JOSÉ GABRIEL DUARTE, in NO OUTRO LADO DE MIM (a publicar)

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Também eu te procuro...

A leitura deste belíssimo poema de Eugénio de Andrade, levou-me a escrever este pequeno e desatinado texto tão ao contrário de mim...


Procuro-te


Procuro a ternura súbita,
os olhos ou o sol por nascer
do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque
com a forma de um grito de alegria.

Oh, a carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água entre o azul
do prado e de um corpo estendido.

Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti, e o teu nome ilumina
as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.

Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferenças,
mas não quando se ama,
não quando apertamos contra o peito
uma flor ávida de orvalho.

Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.

Porém eu procuro-te.
Antes que a morte se aproxime, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol, à chuva,
de noite, de dia, triste, alegre — procuro-te.

Eugénio de Andrade, in "As Palavras Interditas"



Também eu te procuro...


Procuro-te no brilho líquido do teu olhar, que não ilumina, nem se dissolve no meu; procuro-te na incandescência lânguida do teu corpo, onde não ardo, não me queimo e não percorro; procuro-te no aconchego macio do teu abraço, que não me abraça e não me trespassa; procuro-te no teu cheiro doce, amadeirado e lascivo que lembro, mas que não sinto; procuro-te na doçura húmida dos teus lábios, que não adoçam, nem humedecem os meus; procuro-te nas palavras mansas, mel e canela, que não dizes; procuro-te na cascata de riso que não ris; procuro-te nas mãos fortes mas suaves, onde as minhas se aninhavam numa modorra lassa; procuro-te nas manhãs transparentes, perfumadas de erva-doce, de rosas e de jasmim; procuro-te nos dias cinzentos, que uma chuva miudinha enreda e entristece; procuro-te nas noites claras deitadas nuas, à luz leitosa, fria, lívida da lua; procuro-te nas noites escuras, tenebrosas, assombradas de medos e de fantasmas medonhos...

Procuro-te, na inquietude deste desconcerto em que me perco; procuro-te, perdida no avesso de mim; procuro-te, perdida no desacerto de um eterno desencontro...

Procuro-te, nesta saudade pungente, atordoada, de ti, que nunca foste, mas mesmo assim, magoa e dói...

MC

domingo, 8 de abril de 2012

A Procissão

Tocam os sinos da torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passando a procissão.

Mesmo na frente, marchando a compasso,
De fardas novas, vem o solidó.
Quando o regente lhe acena com o braço,
Logo o trombone faz popó, popó.

Olha os bombeiros, tão bem alinhados!
Que se houver fogo vai tudo num fole.
Trazem ao ombro brilhantes machados,
E os capacetes rebrilham ao sol.

Tocam os sinos na torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passando a procissão.

Olha os irmãos da nossa confraria!
Muito solenes nas opas vermelhas!
Ninguém supôs que nesta aldeia havia
Tantos bigodes e tais sobrancelhas!

Ai, que bonitos que vão os anjinhos!
Com que cuidado os vestiram em casa!
Um deles leva a coroa de espinhos.
E o mais pequeno perdeu uma asa!

Tocam os sinos na torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passando a procissão.

Pelas janelas, as mães e as filhas,
As colchas ricas, formando troféu.
E os lindos rostos, por trás das mantilhas,
Parecem anjos que vieram do Céu!

Com o calor, o Prior aflito.
E o povo ajoelha ao passar o andor.
Não há na aldeia nada mais bonito
Que estes passeios de Nosso Senhor!

Tocam os sinos na torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Já passou a procissão.

António Lopes Ribeiro

Páscoa feliz e muito docinha, meus queridos Amigos!

MC

quinta-feira, 22 de março de 2012

A água

Dia da Água

Se não cuidarmos da água HOJE, a água mais limpa de AMANHÃ, será a água das nossas lágrimas
.


A água se ensina pela sede;
A terra, por oceanos navegados;
O êxtase, pela aflição;
A paz, pelos combates narrados;
O amor, pela cinza da memória
E, pela neve, os pássaros.

Emily Dickinson

O PINGO DA CHUVA

É UM PINGO DE CHUVA
CAINDO NA PLANTA.

É UM CANTO TRINADO,
É O SABIÁ NA FOLHAGEM.

É UM RIO QUE PASSA,
ETERNAMENTE ALI ESTANDO.

É A ÁGUA MILAGREIRA
MATANDO A NOSSA SEDE.

É A SEDE DE ESPERANÇA,
QUE NUNCA SE CANSA.

É O CANSAÇO DA TARDE
ESPERANDO A BONANZA.

É A MADRUGADA CHEGANDO
TRAZENDO NOVO ENCANTO.

É A MESA NOVAMENTE POSTA
PARA IRMOS PARA O CAMPO.

É O CAMPO ESPERANDO
A CHEGADA DA PRIMAVERA.

É A SEMENTE GERMINANDO
CRIANDO UM NOVO ALENTO.

É A BUSCA DA PAZ
ACELERANDO O NOSSO AVANÇO.



CACHOEIRA

Tal como água
Fluo
Mato a sede
Apago o fogo
Inundo...

Mas também
Deságuo
Dissipo
Evaporo...

E broto novamente da terra.

Às vezes
Grande lagoa
Outras tantas
Pequeno ribeirão

Às vezes
Chuva fina
Outras tantas
Tempestade com trovão

Mas nunca água represada.

E assim sigo escoando,
feito cachoeira,
contornando os obstáculos rumo ao grande oceano...

Luciana Dimarzio


Canto dos Espíritos sobre as Águas


A alma do homem
É como a água:
Do céu vem,
Ao céu sobe,
E de novo tem
Que descer à terra,
Em mudança eterna.

Corre do alto
Rochedo a pino
O veio puro,
Então em belo
Pó de ondas de névoa
Desce à rocha lisa,
E acolhido de manso
Vai, tudo velando,
Em baixo murmúrio,
Lá para as profundas.

Erguem-se penhascos
De encontro à queda,
— Vai, 'spúmando em raiva,
Degrau em degrau
Para o abismo.

No leito baixo
Desliza ao longo do vale relvado,
E no lago manso
Pascem seu rosto
Os astros todos.

Vento é da vaga
O belo amante;
Vento mistura do fundo ao cimo
Ondas 'spumantes.

Alma do Homem,
És bem como a água!
Destino do homem,
És bem como o vento!

Johann Wolfgang von Goethe, in "Poemas"
Tradução de Paulo Quintela


Água que se ensina pela sede, que é pingo de chuva caindo na planta e semente germinando, que é cachoeira, rumo ao oceano.
Água que é como a Alma do Homem, do céu vem e ao céu sobe.
Água é Vida.


MC

quarta-feira, 21 de março de 2012

Dia Mundial da Poesia

Hoje, dia, 21 de Março, é o Dia Mundial da Poesia!
Mas, todos os dias deviam ser dias da Poesia. Todos os dias são dias da Poesia!

Como disse Eugénio de Andrade, "A Poesia ajuda-nos a suportar o peso do mundo".

Este propósito da Poesia é especialmente necessário, nestes tempos conturbados, que vivemos, num lugar que, já no início do século XX, impressionou Unamuno e o levou a comentar que Portugal era um país de Poetas e de suicidas, atendendo ao número de Poetas e Escritores, seus contemporâneos, que se suicidaram, Antero de Quental, Trindade Coelho, Soares dos Reis, Camilo Castelo Branco, Laranjeiro, etc.

A Poesia é Luz, Bálsamo, Voo, Sobressalto, Deslumbramento...


Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Fernando Pessoa


Ser Poeta

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Áquem e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!

Florbela Espanca



Motivo



Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.

Cecília Meireles

"O Poeta é um fingidor", mas "Ser Poeta é ser mais alto, ser maior do que os homens", " não é alegre nem triste" " E a canção é tudo".
Como disse José Martí, o Poeta é o alimento vivo da chama com que ilumina, suaviza, deslumbra, desperta...

MC

segunda-feira, 19 de março de 2012

A ti, Pai...

A ti, Pai, hoje e sempre, porque todos os dias são teus.

A ti, Pai, porque tantas vezes, como agora, é para ti que o meu pensamento voa, a minha alma se ajoelha, reverente, perante a tua e eu te agradeço e te bendigo!

A ti, Pai, porque foste, em cada um dos meus dias, a minha âncora, o meu porto de abrigo, a luz-guia dos meus passos! Antes, agora, sempre!

A ti, Pai, que não foste um santo, um filósofo ou um poeta, mas talvez tenhas sido tudo isso, sem ninguém saber. Nem mesmo tu!

A ti, Pai, porque este dia é teu e esta noite sonhei contigo e fomos juntos, lá para onde só a alma e a memória podem ir, onde somos livres, o céu é sempre azul, as flores não perdem o encanto, nem o perfume e tudo tem a cor cristalina do teu espírito!

A ti, Pai, porque nunca nos dissemos Adeus!

A ti, Pai, porque só se diz Adeus quando o Amor acaba e o fim é, então, inevitável, definitivo, irreparável!

A ti, Pai, porque só se diz Adeus, quando o laço visceral, feito de sangue e de afecto, permanece intacto e tu continuas comigo, pois, sobre o coração e o pensamento, ninguém, nada, nem mesmo a morte, tem qualquer poder!

A ti, Pai porque não se diz Adeus, quando sabemos que, em termos de Eternidade, vinte, trinta ou quarenta anos de separação, não são mais do que dois, três ou quatro segundos deste tempo que contamos!

A ti, Pai, porque não se diz Adeus, quando o rasto claro, límpido, brilhante da tua luz é ainda o caminho que percorro!

A ti, Pai, este poema de Jorge Reis-Sá, porque não sou Poeta e ele diz o que eu não sou capaz de dizer e porque não sei fazer um poema só para ti.

A ti, Pai, hoje e sempre, porque todos os dias são teus e a minha sombra és tu.

Pai, a Minha Sombra és Tu

Tua cadeira está vazia, um corpo ausente
não aquece a madeira que lhe dá forma

e não ouço o recado que me quiseste dar
nem a tua voz forte que grita meninos
na hora de acordar
ouço o teu abraço, no corredor em gaia
e os olhos molhados pela inusitada despedida

o sol foge
mas o crepúsculo desenha a sombra que
tenho colada aos pés
ou o espelho, coberto com a tua face

pai, digo-te
a minha sombra és tu


Jorge Reis-Sá, in "A Palavra no Cimo das Águas"

MC

quinta-feira, 15 de março de 2012

"The tyger"/ "The lamb"- William Blake

HE TYGER (from Songs Of Experience)


Tyger! Tyger! burning bright
In the forests of the night,
What immortal hand or eye
Could frame thy fearful symmetry?
In what distant deeps or skies
Burnt the fire of thine eyes?

On what wings dare he aspire?
What the hand dare sieze the fire?
And what shoulder, & what art.
Could twist the sinews of thy heart?
And when thy heart began to beat,
What dread hand? & what dread feet?

What the hammer? what the chain?
In what furnace was thy brain?
What the anvil? what dread grasp
Dare its deadly terrors clasp?
When the stars threw down their spears,
And watered heaven with their tears,

Did he smile his work to see?
Did he who made the Lamb make thee?
Tyger! Tyger! burning bright
In the forests of the night,
What immortal hand or eye
Dare frame thy fearful symmetry?

William Blake



The Lamb ( from Songs of Innocence)


Little Lamb who made thee
Dost thou know who made thee
Gave thee life & bid thee feed.
By the stream & o’er the mead;
Gave thee clothing of delight,
Softest clothing wooly bright;
Gave thee such a tender voice,
Making all the vales rejoice!
Little Lamb who made thee
Dost thou know who made thee

Little Lamb I’ll tell thee,
Little Lamb I’ll tell thee!
He is called by thy name,
For he calls himself a Lamb:
He is meek & he is mild,
He became a little child:
I a child & thou a lamb,
We are called by his name.
Little Lamb God bless thee.
Little Lamb God bless thee.


Symbols


The Tiger: Evil (or Satan)
The Lamb: Goodness (or God)
Distant Deeps: Hell
Skies: Heaven

Themes

The Existence of Evil


.......“The Tiger” presents a question that embodies the central theme: Who created the tiger? Was it the kind and loving God who made the lamb? Or was it Satan? Blake presents his question in Lines 3 and 4:

What immortal hand or eye
Could frame thy fearful symmetry?


Blake realizes, of course, that God made all the creatures on earth. However, to express his bewilderment that the God who created the gentle lamb also created the terrifying tiger, he includes Satan as a possible creator while raising his rhetorical questions, notably the one he asks in Lines 5 and 6:

In what distant deeps or skies
Burnt the fire of thy eyes?


Deeps appears to refer to hell and skies to heaven. In either case, there would be fire--the fire of hell or the fire of the stars.
.
......Of course, there can be no gainsaying that the tiger symbolizes evil, or the incarnation of evil, and that the lamb (Line 20) represents goodness, or Christ. Blake's inquiry is a variation on an old philosophical and theological question: Why does evil exist in a universe created and ruled by a benevolent God?
Blake provides no answer. His mission is to reflect reality in arresting images. A poet’s first purpose, after all, is to present the world and its denizens in language that stimulates the aesthetic sense; he is not to exhort or moralize. Nevertheless, the poem does stir the reader to deep thought. Here is the tiger, fierce and brutal in its quest for sustenance; there is the lamb, meek and gentle in its quest for survival. Is it possible that the same God who made the lamb also made the tiger? Or was the tiger the devil's work?

The Awe and Mystery of Creation and the Creator

The poem is more about the creator of the tiger than it is about the tiger intself. In contemplating the terrible ferocity and awesome symmetry of the tiger, the speaker is at a loss to explain how the same God who made the lamb could make the tiger.
Hence, this theme: humans are incapable of fully understanding the mind of God and the mystery of his handiwork.

Notes taken from GOOGLE

MC

quinta-feira, 8 de março de 2012

Mulher

Há, no coração de todas as mulheres, uma esquina de segredo, um cantinho de silêncio.


A mulher que passa

Meu Deus, eu quero a mulher que passa.
Seu dorso frio é um campo de lírios
Tem sete cores nos seus cabelos
Sete esperanças na boca fresca!

Oh! Como és linda, mulher que passas
Que me sacias e suplicias
Dentro das noites, dentro dos dias!

Teus sentimentos são poesia
Teus sofrimentos, melancolia.
Teus pêlos são relva boa
Fresca e macia.
Teus belos braços são cisnes mansos
Longe das vozes da ventania.

Meu Deus, eu quero a mulher que passa!

Como te adoro, mulher que passas
Que vens e passas, que me sacias
Dentro das noites, dentro dos dias!
Por que me faltas, se te procuro?
Por que me odeias quando te juro
Que te perdia se me encontravas
E me encontravas se te perdias?

Por que não voltas, mulher que passas?
Por que não enches a minha vida?
Por que não voltas, mulher querida
Sempre perdida, nunca encontrada?
Por que não voltas à minha vida
Para o que sofro não ser desgraça?

Meu Deus, eu quero a mulher que passa!
Eu quero-a agora, sem mais demora
A minha amada mulher que passa!

No santo nome do teu martírio
Do teu martírio que nunca cessa
Meu Deus, eu quero, quero depressa
A minha amada mulher que passa!

Que fica e passa, que pacifica
Que é tanto pura como devassa
Que bóia leve como cortiça
E tem raízes como a fumaça.

Vinicius de Moraes


Amélia dos olhos doces

Amélia dos Olhos Doces
quem é que te trouxe
grávida de esperança?
Um gosto de flor na boca.
Na pele e na roupa
perfumes de França.

Cabelos cor de viúva.
Cabelos de chuva.
Sapatos de tiras
e pões, quantas vezes
não queres e não amas
os homens que dormem
contigo na cama.

Amélia dos Olhos Doces
quem dera que fosses
apenas mulher.
Amélia dos Olhos Doces
se ao menos tivesses
direito a viver!

Amélia gaivota
amante ou poeta.
Rosa de café.
Amélia gaiata
do Bairro da Lata.
Do Cais do Sodré.

Tens um nome de navio.
Teu corpo é um rio
onde a sede corre.
Olhos Doces. Quem diria
que o amor nascia
onde Amélia morre?

Cabelos cor de viúva.
Cabelos de chuva.
Sapatos de tiras
e pões, quantas vezes
não queres e não amas
os homens que dormem
contigo na cama."

Joaquim Pessoa


Calçada de Carriche

Luísa sobe,
sobe a calçada,
sobe e não pode
que vai cansada.
Sobe, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe
sobe a calçada.

Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas,
não dá por nada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu da sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu-a deitada;
serviu-se dela,
não deu por nada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Na manhã débil,
sem alvorada,
salta da cama,
desembestada;
puxa da filha,
dá-lhe a mamada;
veste-se à pressa,
desengonçada;
anda, ciranda,
desaustinada;
range o soalho
a cada passada;
salta para a rua,
corre açodada,
galga o passeio,
desce a calçada,
desce a calçada,
chega à oficina
à hora marcada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga;
toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina,
volta à toada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga.
Regressa a casa
é já noite fechada.
Luísa arqueja
pela calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.


António Gedeão


MC

segunda-feira, 5 de março de 2012

O gato amarelo

O gato amarelo dorme, no muro do jardim, por onde trepam roseiras que se debruçam, curiosas, para o quintal da vizinha. Aqui e ali, já florescem, numa languidez de desmaio libidinoso, algumas rosas claras, esmaecidas. Muito perto, exibe-se, esplendorosa, a magnólia rosada, num turbilhão incandescente de flores macias e acetinadas. Um pouco adiante, o pequeno maciço de mimosas abre-se, numa explosão tumultuada de flores douradas a exalar um perfume atrevido, ligeiramente áspero e quente, a lembrar, neste Inverno brando, a ardência do campo, numa Primavera antecipada e luminosa. O gato dorme, numa quietude amodorrada e mansa. E o pêlo farto e macio, de um amarelo suave a lembrar o caramelo leve e doce da minha infância, arrecada, guloso, numa orgia de reflexos de ouro, a luz do sol da manhã , que o aquece e lhe embala os sonhos.
De felino belo, independente, livre.

O gato amarelo não é meu, nem é de ninguém. Mas é minha, a bata amarela que visto quando, por momentos, me atrevo a tentar aquecer e adormentar a dor, o medo, a solidão do outro, dos outros. Com um sorriso, com uma palavra, com o silêncio... Mais, com o silêncio.
Em vão. Eu sei...

Há uns dias, no hospital, ajudei uma velhinha mirrada, a pele crespa, seca e amarelada como um papel gasto e enrugado,a sentar-se na cama. Não foi tarefa fácil, devido aos tubos, para onde escorriam fluídos viscosos e escuros, vazados para sacos já meio-cheios, pousados no chão. Cheirava vagamente a sangue apodrecido, a decadência e a uma amargura sombria, depressiva, quase palpável.
Quando me tentei desprender dela, agarrou-se mais a mim e disse-me muito baixinho: “Cheira tão bem, minha filha! Eu cheiro mal. Cheiro a doença e a estes líquidos negros, purulentos, que saem de mim. Não sei de onde vem tanta desgraça, tanta doença. Porquê tanto tempo...?”
Olhar ensombrado.
Coração aceso, no desacerto do peito.
Com o corpo esquálido, quebradiço e frágil, nos braços, compreendi que, o que a fazia prender-se a mim, não era a frescura doce e envolvente do meu perfume, mas a minha aproximação, o toque morno e macio de humanidade suavizando, por momentos, a sua velhice doente, solitária e fria.
Coração inquieto, no desconcerto dos dias.

Com duas gotas do meu perfume, já o disse, sinto-me sumptuosa! Hoje não. Hoje senti-me cansada; senti-me grata; tive medo.
Senti-me cansada da miséria humana, senti-me cansada da tenebrosa solidão que, como um abutre negro, espera pacientemente o desatar dos nós da vida; senti-me cansada da sordidez da indiferença que, como um cavalo doido, à solta, num galope desenfreado, destrói , implacável, afectos e compaixão, senti-me cansada do cansaço, do nojo, da ingratidão, do aborrecimento que vejo, que sinto...;
Senti-me grata pelo amor, pelas mãos, pelos sorrisos, pelas palavras e também pelas patinhas felpudas que me abraçam e me aquecem e afagam a alma;
Tive medo da imprevisibilidade da vida.

O gato amarelo de pêlo farto e macio, de um amarelo suave a lembrar o caramelo leve e doce da minha infância, já não dorme e não sonha no muro do jardim, enfeitado de roseiras que trepam, atrevidas e curiosas, e onde já florescem algumas rosas, que desmaiam voluptuosas, lascivas, na cascata refulgente do sol da manhã.
Imagino o gato, mancha amarela a brilhar na claridade dourada, num outro jardim qualquer, com cheiro a erva fresca, rasteira, humedecida, a brincar sozinho, mas “como se fosse na cama”, uma brincadeira muito sua, ou a lamber, deliciado e vagarosamente, num consolo muito seu, uma patinha amarela ou, talvez sentado ao sol, a observar, sobranceiro e livre, o que o rodeia com os seus olhos grandes, luminosos, de um verde translúcido, com frinchas amarelas...
Belos, esquivos, impenetráveis...


NOTA: Há na doença, uma violência febril marcada de delírios, suores e de soluços de dor; há uma violência feroz na agonia lenta, silenciosa e aflita, da resignação, tão calada e plangente, que parece coisa de santo, ou um alumbramento por Deus, mas que, eu acredito, ser mais desesperança, desistência, entrega desesperada, sem remédio, apesar do agarramento instintivo, apaixonado, à vida; há na velhice solitária, uma violência angustiada, feita de revolta amordaçada, de depressão melancólica, temperada com o amargor de lágrimas amassadas no negrume gelado dos dias...

MC

domingo, 26 de fevereiro de 2012

A folha branca

À minha frente a folha branca. Como uma boca informe, escancarada, num riso provocador e maldoso.
Não sei o que escrever. Por cansaço, talvez. E, ela, a folha branca à minha frente, intacta, quieta, num adormecimento exasperante, como um lagarto preguiçoso, enlaguescido, ao sol. Lagarto que não quero branco, como a folha lisa de papel, que me provoca e me faz sentir pequenina, desajeitada, incapaz. Um lagarto que quero a cheirar a terra húmida, a líquenes, a musgo. E verde, como a relva, os ramos tenros das árvores, a luz alegre da esperança.

O meu pai tinha uns olhos verdes, lindos, que os óculos esbatiam e que mudavam de cor, não sei se conforme a maior ou menor intensidade da luz, se conforme o seu estado de espírito ou se, porque eram, simplesmente, assim. Às vezes, pareciam matizados de castanho dourado a transbordar doçura; outras vezes, eram de um castanho tão claro e transparente que pareciam âmbar e desprendia-se deles a transparência de uma quietude reconfortante e sábia; mas é na sua cintilação verde, límpida e aveludada, como as folhas delicadas das árvores, nas madrugadas claras e macias, na primavera, que os recordo. Luzeiros de sabedoria, de serenidade e de atenção.
Uma tarde, perguntei-lhe de que cor eram os seus olhos. Meio-divertido, meio-surpreendido com a pergunta, disse-me que os seus olhos eram da cor que eu os via, como, aliás, tudo à minha volta. Disse-me que, pela força das minhas emoções, com a minha alegria luminosa e radiante, com a minha tristeza sombria e gelada, assim eu coloria ou escurecia cada um dos meus dias. Era como se, ao projectar-me em tudo ao meu redor, eu tivesse, sem saber, o poder de recriar o mundo, embelezando-o ou desfigurando-o, o poder supremo de pintar a minha vida da cor que eu escolhesse, da cor que eu mais gostasse! Seria eu que daria claridade ou escuridão à minha vida. Nesse momento, na minha inocência, senti-me mais inteira do que nunca, indivisa, livre, poderosa!
E, nessa noite, adormeci feliz, cheia de esperança num mundo que eu iria pintar de de azul, verde, branco e amarelo. E de todas as outras mil cores possíveis!
Cresci e, com o passar implacável do tempo, já me foram dados viver dias de negrume e de tristeza, pintados de cinzento e de luto, com cheiro a lágrimas e a perda, num mundo mosqueado de luz e de sombra, de riso e de mágoa.

A folha, à minha frente, já não é branca. Está pontilhada de azul. São as palavras azuis que, num sobressalto, semeei, que se juntaram e formaram frases. Com mais ou menos sentido. Também não sei, porque o perdi, onde está o lagarto preguiçoso, que eu queria verde, a cheirar a terra húmida, a líquenes e a musgo e que enlanguescia, preguiçosamente, ao sol...

E, agora que as palavras, que lancei na folha, correm, saltam e brincam, à solta, manchando-a, transformando-a, dando-lhe vida e cor, quase tenho saudades da sua brancura inicial, lisa, perfeita, intacta...


NOTA: Há, na MEMÓRIA, uma violência difusa, dolente mas ferina, que se acoita, calada e sonsa, no infinito desesperante da lonjura, na pungência revolvida da saudade...


MC

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Olhe, não fique assim...

Olhe, não fique assim não vai passar. Eu sei que dói. É horrível. Eu sei que parece que você não vai agüentar, mas agüenta. Sei que parece que vai explodir, mas não explode. Sei que dá vontade de abrir um zíper nas costas e sair do corpo porque dentro da gente, nesse momento, não é um bom lugar para se estar. Dor é assim mesmo, arde, depois passa. Que bom. Aliás, a vida é assim: arde, depois passa. Que pena. A gente acha que não vai agüentar, mas agüenta: as dores da vida. Pense assim: agora tá insuportável, agora você queria abrir o zíper, sair do corpo, encarnar numa samambaia, virar um paralelepípedo ou qualquer coisa inanimada, anestesiada, silenciosa. Mas agora já passou. Agora já é dez segundos depois da frase passada. Sua dor já é dez segundos menor do que duas linhas atrás.Você acha que não porque esperar a dor passar é como olhar um transatlântico no horizonte estando na praia.Ele parece parado, mas aí você desvia o olho, toma um picolé, lê uma revista, dá um pulo no mar e quando vai ver o barco já tá lá longe. A sua dor agora, essa fogueira na sua barriga, essa sensação de que pegaram sua traquéia e seu estômago e torceram como uma toalha molhada, isso tudo - é difícil de acreditar, eu sei - vai virar só uma memória, um pequeno ponto negro diluído num imenso mar de memórias. Levante-se daí, vá tomar um picolé, ler uma revista, dar um pulo no mar. Quando você for ver, passou.Agora não dá mesmo pra ser feliz. É impossível. Mas quem disse que a gente deve ser feliz sempre? Isso é bobagem. "É melhor viver do que ser feliz". Porque pra viver de verdade a gente tem que quebrar a cara. Tem que tentar e não conseguir. Achar que vai dar e ver que não deu. Querer muito e não alcançar. Ter e perder. Tem que ter coragem de olhar no fundo dos olhos de alguém que a gente ama e dizer uma coisa terrível, mas que tem que ser dita. Tem que ter coragem de olhar no fundo dos olhos de alguém que a gente ama e ouvir uma coisa terrível, que tem que ser ouvida. A vida é incontornável. A gente perde, leva porrada, é passado pra trás, cai. Dói,ai,eu sei como dói. Mas passa.Tá vendo a felicidade ali na frente? Não, você não tá vendo, porque tem uma montanha de dor na frente. Continue andando. Você vai subir, vai sentir frio lá em cima, cansaço. Vai querer desistir, mas não vai desistir, porque você é forte e porque depois do topo a montanha começa a diminuir e o unico jeito de deixá-la pra trás é continuar andando. Você vai ser feliz. Tá vendo essa dor que agora samba no seu peito de salto de agulha? Você ainda vai olhá-la no fundo dos olhos e rir da cara dela. Juro que tô falando a verdade. Eu não minto. Vai passar.

Caio Fernando Loureiro de Abreu

Caio Fernando Loureiro de Abreu (Santiago, 12 de setembro de 1948 — Porto Alegre, 25 de fevereiro de 1996) foi um jornalista, dramaturgo e escritor brasileiro.

Apontado como um dos expoentes de sua geração, a obra de Caio Fernando Abreu, escrita num estilo económico e bem pessoal, fala de sexo, de medo, de morte e, principalmente, de angustiante solidão. Apresenta uma visão dramática do mundo moderno e é considerado um "fotógrafo da fragmentação contemporânea".

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Pranto de Belisa pela morte de seu marido e seu amante

Belisa, com um braçado de rosas vermelhas, ajoelha-se junto ao túmulo de Perlimplim. Vestida de negro, esguia, pálida, com o rosto sulcado de lágrimas, acaricia devagar a pedra branca e fria.
Num entorpecimento até aí desconhecido, mergulhada na estranheza funda da tragédia que a atingiu, Belisa sussura, como se Perlimplim a pudesse ouvir, frases soltas, desgrenhadas, impetuosas e talvez sem sentido, porque tecidas de amargura e de espanto e temperadas de paixão:


Choro, Perlimplim, a tua morte inesperada, a tua partida violenta e súbita deste mundo, a tua irremediável lonjura de mim.

Choro, Perlimplim, por não ter percebido, em ti, o homem apaixonado que eras. Limitei-me, na minha fria insensibilidade, a ver em ti, apenas o homem velho, inexperiente com mulheres e um pouco ridículo que estavas longe de ser, e que aceitei, leviana, por marido.

Choro, porque não soube escutar, nem compreender, nas tuas palavras encobertas numa desajeitada ligeireza, numa triste conformação e talvez numa dolorosa vergonha, a cintilação da tua inteligência, da tua generosidade e do teu amor por mim!

Mas também choro, Perlimplim, porque não me apercebi da tua astúcia, da urdidura manhosa que teceste à volta deste meu coração doido!

Choro, Perlimplim, o jovem belo e sedutor que me cortejava e coloria os meus dias, embuçado na maciez erótica da sua capa vermelha, e por quem, me apaixonei perdidamente! Um jovem sedutor que afinal eras tu, mas que mataste quando, insano, te mataste, com o precioso punhal cravejado de esmeraldas ardentes.

Choro, Perlimplim, a morte do sonho, do meu sonho febril, da desmesura da minha estranha fascinação! Por ele! Pelo desejo quase doentio da proximidade dele, dos lábios dele presos nos meus, das mãos dele a tocarem a minha pele, do meu corpo entrelaçado no dele!

Choro, a loucura doce e excitante de um deslumbramento que eu nunca tinha sentido, mas que tu destruíste com o teu punhal cravejado de esmeraldas, cujo fulgor devia ser de esperança, de luz, de vida e não de escuridão, de violência, de morte!

Choro, Perlimplim, a Belisa jovem, ardente, maliciosa, apaixonada, confiante na vida e no amor, que morreu com o jovem embuçado que a seduziu com o fogo do seu desejo nunca apaziguado, e também contigo, coração calado, mas braseiro infatigável, incêndio de labaredas altas, já que um era o outro, jogo de sombras enganosas que não entendi, mas cujo fim me deixou afogada neste fremente desespero de alma perdida, abandonada!

Choro, a floresta de enganos em que me enredaste, traindo-me, destroçando-me! Talvez sem maldade, talvez, apenas porque, num desalento, te perdeste, inconformado, no imparável declínio da vida!
Foste presença generosa e foste esquivo! Foste luminoso e foste turvo! Foste lírico e foste trágico!

Choro, Perlimplim, porque não vi o brilho sereno da tua alma, não pressenti o teu amor por mim e considerei-te velho, confuso e tonto. E tu eras muito mais do que isso! Mas cega, desnorteada, no negrume profundo da teia viscosa que teceste, não te vi! Talvez por isso, continuei a procurá-lo, a ele, louca ilusão, quando te tinha, coberto de sangue, a morrer, nos meus braços!

Choro, por ti, por ele, por mim! Por ti, porque, apesar do teu ardiloso embuste, que desfizeste com a lâmina afiada e fria do teu punhal cravejado de esmeraldas, foste na minha vida, uma cintilante chuva de estrelas numa noite escura e sem luar! Por ele, que nada mais foi do que uma iridescência de ti, uma transparência de ti, uma sombra fugidia de ti que, no entanto, amei! Por mim, porque, na turbulência do meu corpo fremente de desejo e na imprudência do meu coração insensato, na verdade, nunca te conheci! Jurei querer-te e respeitar-te e nunca te quis e nunca te respeitei! Traí-te, Perlimplim!

Choro, porque me sinto vazia e só! Não sei, verdadeiramente não sei, por quem bateu este meu coração alucinado, não sei, verdadeiramente não sei, por quem choro! Estranho-me, desconheço-me, desgosto-me de mim!
Fui tola; fui leviana; fui patética! E nunca te pedi perdão, nem te disse que te perdoo!

Choro, porque não posso aproximar a minha alma da tua, tu que podias ter sido o outro lado de mim, no caminho da vida! E é a chorar, Perlimplim, que te digo adeus! A ti e a ele! A ele, que eras tu!

Belisa levanta-se. As rosas vermelhas são uma mancha vibrante de luz e de cor, na pedra branca e fria.
Uma tristeza infinda ensombra-lhe o rosto bonito e no olhar vago e sombrio nada parece fazer sentido.


NOTA: Este texto foi escrito a propósito da peça de Frederico Garcia Lorca " Amores de Perlimplim com Beliza em seu jardim."