quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Feliz 2011!

Queridos Amigos e Seguidores considerem este belíssimo texto, um presente com sabor a poesia, o cheiro de madrugada, do sol e da lua e o som das canções da brisa, que embrulhei com carinho, que selei com um sorriso e que vos envio com um grande abraço.
Feliz Ano Novo!


Procura-se um amigo

Não precisa ser homem, basta ser humano, basta ter sentimentos, basta ter coração. Precisa saber falar e calar, sobretudo saber ouvir. Tem que gostar de poesia, de madrugada, de pássaro, de sol, da lua, do canto, dos ventos e das canções da brisa. Deve ter amor, um grande amor por alguém, ou então sentir falta de não ter esse amor.. Deve amar o próximo e respeitar a dor que os passantes levam consigo. Deve guardar segredo sem se sacrificar.

Não é preciso que seja de primeira mão, nem é imprescindível que seja de segunda mão. Pode já ter sido enganado, pois todos os amigos são enganados. Não é preciso que seja puro, nem que seja todo impuro, mas não deve ser vulgar. Deve ter um ideal e medo de perdê-lo e, no caso de assim não ser, deve sentir o grande vácuo que isso deixa. Tem que ter ressonâncias humanas, seu principal objetivo deve ser o de amigo. Deve sentir pena das pessoa tristes e compreender o imenso vazio dos solitários. Deve gostar de crianças e lastimar as que não puderam nascer.

Procura-se um amigo para gostar dos mesmos gostos, que se comova, quando chamado de amigo. Que saiba conversar de coisas simples, de orvalhos, de grandes chuvas e das recordações de infância. Precisa-se de um amigo para não se enlouquecer, para contar o que se viu de belo e triste durante o dia, dos anseios e das realizações, dos sonhos e da realidade. Deve gostar de ruas desertas, de poças de água e de caminhos molhados, de beira de estrada, de mato depois da chuva, de se deitar no capim.

Precisa-se de um amigo que diga que vale a pena viver, não porque a vida é bela, mas porque já se tem um amigo. Precisa-se de um amigo para se parar de chorar. Para não se viver debruçado no passado em busca de memórias perdidas. Que nos bata nos ombros sorrindo ou chorando, mas que nos chame de amigo, para ter-se a consciência de que ainda se vive.

Vinicius de Moraes

Abençoada sou, porque tenho Amigos!

MC

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Poesia é...

Poesia é quando uma emoção encontra o seu pensamento e o pensamento encontra as palavras.
Robert Frost

Poesia são pensamentos que respiram e palavras que queimam.
Thomas Gray

O poema não é feito dessas letras que eu espeto, como pregos, mas do branco que fica no papel.
Paul Claudel

Se alguém te perguntar o que quiseste dizer com um poema, pergunta-lhe o que Deus quis dizer com a Criação do mundo...
Mário Quintana

Subitamente, na esquina do poema,
Duas rimas olham-se atónitas, comovidas,
Como duas irmãs desconhecidas...
Mário Quintana

A poesia é o eco da melodia do Universo, no coração do Homem.
R. Tagore

Porque a poesia não se define! Nasce...não se sabe como, surge...não se sabe de onde, explode...num torvelinho!Talvez da alma, talvez dos sentidos, talvez do coração, sei lá... sabemos lá!

MC

domingo, 26 de dezembro de 2010

Trago o Natal no fundo do olhar

Trago o Natal no fundo do olhar
Esse tempo em que a alegria
Era um lugar de crença seguro
E protector e os doces o calor
Da ternura que a casa oferecia.

Trago o Natal no fundo do olhar
Esse tempo a correr pela cidade
[Evocando o amor e a fraternidade
E esquecendo o frio e a dor]
– Agora, desumanidade e elegia.

Trago o Natal no fundo do olhar
Esse tempo que foi simplicidade
E em que eu acreditei num mar
De gestos que eram então realidade.
Hoje, o Natal é apenas utopia –

Promessa à espera da alegria
Aqui tão perto e no Mundo inteiro.
A Fome e a Guerra são no entanto
Ameaça séria e duradoura, um pranto.
Não há ouro que baste aos senhores!

Trago o Natal no fundo do olhar –

Natal, 2010
José Almeida da Silva


Nesta quadra natalícia, aqui deixo este belíssimo poema de um querido Amigo, um Poeta que admiro!
Obrigada, Zé!

Poemas - Alda Lara

Testamento

À prostituta mais nova
Do bairro mais velho e escuro,
Deixo os meus brincos, lavrados
Em cristal, límpido e puro...
E àquela virgem esquecida
Rapariga sem ternura,
Sonhando algures uma lenda,
Deixo o meu vestido branco,
O meu vestido de noiva,
Todo tecido de renda...
Este meu rosário antigo
Ofereço-o àquele amigo
Que não acredita em Deus...
E os livros, rosários meus
Das contas de outro sofrer,
São para os homens humildes,
Que nunca souberam ler.
Quanto aos meus poemas loucos,
Esses, que são de dor
Sincera e desordenada...
Esses, que são de esperança,
Desesperada mas firme,
Deixo-os a ti, meu amor...
Para que, na paz da hora,
Em que a minha alma venha
Beijar de longe os teus olhos,
Vás por essa noite fora...
Com passos feitos de lua,
Oferecê-los às crianças
Que encontrares em cada rua...

(poemas)

Anúncio

Trago os olhos naufragados
em poentes cor de sangue...

Trago os braços embrulhados
numa palma bela e dura
e nos lábios a secura
dos anseios retalhados...

Enrolada nos quadris
cobras mansas que não mordem
tecem serenos abraços...
E nas mãos, presas com fitas
azagaias de brinquedo
vão-se fazendo em pedaços...

Só nos olhos naufragados
estes poentes de sangue...

Só na carne rija e quente,
este desejo de vida!...

Donde venho, ninguém sabe
e nem eu sei...

Para onde vou
diz a lei
tatuada no meu corpo...

E quando os pés abram sendas
e os braços se risquem cruzes,
quando nos olhos parados
que trazem naufragados
se entornarem novas luzes...

Ah! Quem souber,
há-de ver
que eu trago a lei
no meu corpo...

(poemas)

Ronda

Na dança dos dias
meus dedos bailaram...
Na dança dos dias
meus dedos contaram
contaram, bailando
cantigas sombrias...

Na dança dos dias
meus dedos cansaram...

Na dança dos meses
meus olhos choraram
Na dança dos meses
meus olhos secaram
secaram, chorando
por ti, quantas vezes!

Na dança dos meses
meus olhos cansaram...

Na dança do tempo,
quem não se cansou?!

Oh! dança dos dias
oh! dança dos meses
oh! dança do tempo
no tempo voando...

Dizei-me, dizei-me,
até quando? até quando?

ALDA LARA

NOTA: Alda Lara nasceu em Benguela, Angola, em 1930. Médica dedicada e Poeta de alto gabarito, enriqueceu, com a sua obra, a literatura africana, mais propriamente, a literatura angolana!
Lamentavelmente, partiu muito cedo, aos trinta e dois anos de idade, em Cambambe, no recôndito de Angola, no exercício abnegado, da sua profissão. O escritor, também médico, Orlando Albuquerque, com quem era casada, editou, postumamente os seus poemas e alguns contos.
Esta é a minha Homenagem a uma Poeta, angolana como eu, e que ainda tive o privilégio de conhecer, através dos meus pais.


MC

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Bons Amigos

A todos os meus queridos Amigos e seguidores, com um forte abraço e os votos de um Feliz Natal!
Obrigada pelas vossas preciosas visitas a este humilde blog!
E comentários? Para vos sentir mais perto...



BONS AMIGOS

Abençoados os que possuem amigos, os que os têm sem pedir.
Porque amigo não se pede, não se compra, nem se vende.
Amigo a gente sente!

Benditos os que sofrem por amigos, os que falam com o olhar.
Porque amigo não se cala, não questiona, nem se rende.
Amigo a gente entende!

Benditos os que guardam amigos, os que entregam o ombro pra chorar.
Porque amigo sofre e chora.
Amigo não tem hora pra consolar!

Benditos sejam os amigos que acreditam na tua verdade ou te apontam a realidade.
Porque amigo é a direção.
Amigo é a base quando falta o chão!

Benditos sejam todos os amigos de raízes, verdadeiros.
Porque amigos são herdeiros da real sagacidade.
Ter amigos é a melhor cumplicidade!

Há pessoas que choram por saber que as rosas têm espinhos,
Há outras que sorriem por saber que os espinhos têm rosas!


Machado de Assis

MC

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

É a Hora!

Esta noite não sonhei com Brügel.
Sonhei, prosaicamente, com a campanha de Manuel Alegre, o poeta pipilante, aedo ido, do PS!
No palco de todas as vaidades, que é o de todas as campanhas, fervilhava um cadinho estranho de sensibilidades, ditas de esquerda, mas tão diferentes e onde, num desnorte, entalado entre a ânsia de poder de uns, a truculenta incompetência de todos, a ambição de um outro, a utopia de uns tantos, elogiava-se Manuel Alegre, político já sem chama e sem talento, poeta cansado, sem rima e sem tom!
Não posso dizer que este sonho tivesse sido um pesadelo, mas submergiu-me num mar alteroso de espanto, de dúvidas, de questões sem resposta!

Bagatelas...

Aflitivo é o mar sulcado por feixes de vergonhas, de corrupção e de misérias que traduz a actual situação política, económica e social de Portugal!
Este é o pais decadente e à beira da falência, que já nem sei se é nosso, do qual já nem não sei se gosto e se respeito, na medida em que, quem me governa não me protege e não me respeita!
E assim, este povo simples e manso vai esbracejando, para sobreviver, num mar amargo de revolta, de descrença e de desconfiança!

A palavra MAR, trouxe até mim, numa onda de luz, Fernando Pessoa, o Poeta visionário! Na verdade, quando leio a Mensagem, especialmente, o último poema, “Nevoeiro”, que aqui transcrevo, acredito que, num arranco de alma, o Poeta “viu”, claramente vistas, e sentiu, dolorosamente sentidas, a tristeza, a decadência e a miséria deste Portugal de hoje!

É a Hora!

NEVOEIRO


Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer —
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fátuo encerra.
Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...

É a Hora!

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Mãe- África

PRELÚDIO



Pela estrada desce a noite

Mãe-Negra, desce com ela...



Nem buganvílias vermelhas,

nem vestidinhos de folhos,

nem brincadeiras de guisos,

nas suas mãos apertadas.

Só duas lágrimas grossas,

em duas faces cansadas.



Mãe-Negra tem voz de vento,

voz de silêncio batendo

nas folhas do cajueiro...



Tem voz de noite, descendo,

de mansinho, pela estrada...



Que é feito desses meninos

que gostava de embalar?...



Que é feito desses meninos

que ela ajudou a criar?...

Quem ouve agora as histórias

que costumava contar?...



Mãe-Negra não sabe nada...



Mas ai de quem sabe tudo,

como eu sei tudo

Mãe-Negra!...



Os teus meninos cresceram,

e esqueceram as histórias

que costumavas contar...



Muitos partiram p'ra longe,

quem sabe se hão-de voltar!...



Só tu ficaste esperando,

mãos cruzadas no regaço,

bem quieta bem calada.



É a tua a voz deste vento,

desta saudade descendo,

de mansinho pela estrada..


ALDA LARA
de Poemas, 1966





PRESENÇA AFRICANA


E apesar de tudo,

Ainda sou a mesma!

Livre e esguia,

filha eterna de quanta rebeldia

me sagrou.

Mãe-África!



Mãe forte da floresta e do deserto,

ainda sou,

a Irmã-Mulher

de tudo o que em ti vibra

puro e incerto...



A dos coqueiros,

de cabeleiras verdes

e corpos arrojados

sobre o azul...

A do dendém

Nascendo dos braços das palmeiras...



A do sol bom, mordendo

o chão das Ingombotas...

A das acácias rubras,

Salpicando de sangue as avenidas,

longas e floridas...



Sim!, ainda sou a mesma.

A do amor transbordando

pelos carregadores do cais

suados e confusos,

pelos bairros imundos e dormentes

(Rua 11!... Rua 11!...)

pelos meninos



de barriga inchada e olhos fundos...



Sem dores nem alegrias,

de tronco nu

e corpo musculoso,

a raça escreve a prumo,

a força destes dias...



E eu revendo ainda, e sempre, nela,

aquela

Longa história inconsequente...



Minha terra...

Minha, eternamente...



Terra das acácias, dos dongos,

dos cólios baloiçando, mansamente...

Terra!

Ainda sou a mesma.



Ainda sou a que num canto novo

pura e livre,

me levanto,

ao aceno do teu povo!

ALDA LARA
Benguela,1953 (de Poemas,1966)

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Metade

Que a força do medo que tenho não me impeça de ver o que anseio.
Que a morte de tudo que acredito não me tape os ouvidos e a boca.
Porque metade de mim é o que eu grito, mas a outra metade é silêncio.

Que a música que eu ouço ao longe seja linda, ainda que triste.
Que a mulher que eu amo seja sempre amada, mesmo que distante.
Porque metade de mim é partida e a outra metade é saudade.

Que as palavras que eu falo não sejam ouvidas como prece nem repetidas com fervor,
Apenas respeitadas como a única coisa que resta a um homem inundado de sentimento.
Porque metade de mim é o que eu ouço, mas a outra metade é o que calo.

Que essa minha vontade de ir embora se transforme na calma e na paz que eu mereço,
Que essa tensão que me corroe por dentro seja um dia recompensada.
Porque metade de mim é o que eu penso e a outra metade é um vulcão.

Que o medo da solidão se afaste, que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável
Que o espelho reflita em meu rosto o doce sorriso que eu me lembro de ter dado na infância.
Porque metade de mim é a lembrança do que fui, a outra metade eu não sei…

Que não seja preciso mais do que uma simples alegria para me fazer aquietar o espírito.
E que o teu silêncio me fale cada vez mais.
Porque metade de mim é abrigo, mas a outra metade é cansaço.

Que a arte nos aponte uma resposta, mesmo que ela não saiba, e que ninguém a tente
Complicar porque é preciso simplicidade para fazê-la florescer.
Porque metade de mim é a plateia e a outra metade, a canção.

E que minha loucura seja perdoada.
Porque metade de mim é amor e a outra metade… também.


* Oswaldo Montenegro *

MC

Auto- retrato - Mario Quintana

AUTO-RETRATO

“No retrato que me faço
– traço a traço –
Às vezes me pinto nuvem
Às vezes me pinto árvore...

Às vezes me pinto coisas
De que nem há mais lembrança...
Ou coisas que não existem
Mas que um dia existirão...

E, desta lida, em que busco
– pouco a pouco –
Minha eterna semelhança,

No final, que restará?
Um desenho de criança...
Corrigido por um louco!”

Mario Quintana


DO AMOROSO ESQUECIMENTO

Eu, agora - que desfecho!
Já nem penso mais em ti...
Mas será que nunca deixo
De lembrar que te esqueci?

Mário Quintana


EU ESCREVI UM POEMA TRISTE

Eu escrevi um poema triste
E belo, apenas da sua tristeza.
Não vem de ti essa tristeza
Mas das mudanças do Tempo,
Que ora nos traz esperanças
Ora nos dá incerteza...
Nem importa, ao velho Tempo,
Que sejas fiel ou infiel...
Eu fico, junto à correnteza,
Olhando as horas tão breves...
E das cartas que me escreves
Faço barcos de papel!

Mário Quintana

MC

sábado, 18 de dezembro de 2010

Samba da benção

...
Fazer samba não é contar piada
E quem faz samba assim não é de nada
O bom samba é uma forma de oração

Porque o samba é a tristeza que balança
E a tristeza tem sempre uma esperança
A tristeza tem sempre uma esperança
De um dia não ser mais triste não


Feito essa gente que anda por aí
Brincando com a vida
Cuidado, companheiro!
A vida é pra valer
E não se engane não, tem uma só
Duas mesmo que é bom
Ninguém vai me dizer que tem
Sem provar muito bem provado
Com certidão passada em cartório do céu
E assinado embaixo: Deus
E com firma reconhecida!
A vida não é brincadeira, amigo
A vida é arte do encontro
Embora haja tanto desencontro pela vida

.....

Vinicius de Moraes

Encontramo-nos, um dia, por aí??

MC

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Vinicius - o Poeta

Soneto do amor total

Amo-te tanto meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.

Amo-te enfim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.




Pela luz dos olhos teus

Quando a luz dos olhos meus
E a luz dos olhos teus
Resolvem se encontrar
Ai que bom que isso é meu Deus
Que frio que me dá o encontro desse olhar
Mas se a luz dos olhos teus
Resiste aos olhos meus só p'ra me provocar
Meu amor, juro por Deus me sinto incendiar
Meu amor, juro por Deus
Que a luz dos olhos meus já não pode esperar
Quero a luz dos olhos meus
Na luz dos olhos teus sem mais lará-lará
Pela luz dos olhos teus
Eu acho meu amor que só se pode achar
Que a luz dos olhos meus precisa se casar.



Eu sei e você sabe
Já que a vida quis assim
Que nada nesse mundo levará você de mim
Eu sei e você sabe
Que a distância não existe
Que todo grande amor
Só é bem grande se for triste
Por isso meu amor
Não tenha medo de sofrer
Que todos os caminhos
Me encaminham a você.

Assim como o Oceano, só é belo com o luar
Assim como a Canção, só tem razão se se cantar
Assim como uma nuvem, só acontece se chover
Assim como o poeta, só é bem grande se sofrer
Assim como viver sem ter amor, não é viver
Não há você sem mim
E eu não existo sem você!

Vinicius de Moraes

MC

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

O que tem de ser, será!

When people are meant to be together, no matter what the relationship, the universe will always find a way to bring them together no matter how far apart.

Acredito nesta citação! Porque acredito que o caminho que percorremos e, ao qual chamamos vida, já está, nas suas linhas mestras, previamente traçado.
E, o que tem de ser, será!

Temos liberdade para procurar atalhos, criar curvas mais ou menos perigosas, mudar um ou outro roteiro, ignorar um ou outro sinal, mas as tais linhas mestras do caminho lá estão, perfeitas, desenhadas sem hesitação. E, devagar, depressa, aos tropeços ou deslizando, vamos sempre ter ao caminho principal! Rôtos, magoados, geralmente exaustos, voltamos sempre ao caminho que nos foi dado percorrer!

Assim, acredito que nada acontece por acaso e todos os nossos acasos, esfuziantes de alegria uns, pesados de tristeza outros, todos têm sentido!
Atravessa o nosso trilho, quem está destinado a nele deixar a sua marca! De fogo e de luz ou, de gelo e de sombra! E tudo, o fogo e o gelo, a alegria e a dor são parte da uma aprendizagem que não termina nunca...

Acredito que, às vezes, há atrasos, desencontros e perdas, mas o caminho nem sempre é luminoso, aconchegado e florido! Há pedaços sombrios, desertos e espinhosos.
Dias de glória, com sabor a champanhe, dias de amargura temperados de lágrimas!
Noites de amor, a cheirar a rosas ou a chocolate quente, mas também as tais noites escuras, quando os lobos velam silenciosos e a lua uiva, uiva...

E, acredito que se chega ao beco sem saída, às vezes abruptamente, quando o Plano, o Plano que nos foi dado seguir, tenha chegado ao fim! Nunca nada termina cedo demais, mas no momento certo, quando tivermos cumprido, melhor ou pior, a missão que nos foi confiada, na busca incessante, solitária, silenciosa da Verdade, da nossa Verdade!

"In the attitude of silence the soul finds the path in a clearer light and what is elusive and deceptive resolves itself into crystal clearness.
Our life is a long and arduous quest after Truth"


Mahatma Gandhi

Tudo isto são banalidades, mas a vida é banal, repetitiva, sem a importância que teimamos dar-lhe...!

MC

sábado, 16 de outubro de 2010

O importante é... a rosa!

Não te aflijas com a pétala que voa:
também é ser, deixar de ser assim.

Rosas verás, só de cinzas franzidas,
mortas, intactas pelo teu jardim.

Eu deixo aroma até nos meus espinhos,
ao longe, o vento vai falando de mim.

E por perder-me é que vão me lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim.

Cecília Meireles

One need not be a chamber to be haunted

One need not be a chamber
to be haunted;
One need not be a house;
The brain has corridors
Surpassing Material place

Emily Dickinson


Não é preciso ser um quarto, para ser
assombrado.
Não é preciso ser uma casa;
A mente tem corredores que superam
Qualquer lugar concreto

Emily Dickinson

Não, não é preciso ser casa para ser assombrado!
Nós somos assombrados! Naquelas noites, de estranha quietude, quando os lobos dormem silenciosos e somente a lua uiva, assombra-nos o nosso passado! Assombram-nos as nossas angústias, os nossos sonhos desfeitos, todos os projectos abandonados, os nossos desapontamentos! E, sobretudo, assombram-nos os nossos medos, aqueles medos ancestrais, medonhos, que já nascem connosco e que os temporais, malévolos, da vida,de repente, despertam! E que nos fazem tremer de frio e de solidão e nos magoam, magoam!

E, é então que o passado, que não se pode anular ou esquecer, se pode transformar numa cruel assombração!

A minha mente não é um quarto assombrado!
Nos corredores do meu cérebro, não silenciam lobos, nem uiva a lua!
O meu passado acompanha-me como uma parte de mim, criado e esculpido, dia a dia, hora a hora, por minhas mãos! Hábeis, seguras, prudentes, mas também, desajeitadas, impulsivas, apaixonadas!

Ou, talvez não!
Talvez eu não tenha criado nada, não tenha esculpido nada e me tenha limitado a seguir um Plano superior qualquer...

Mas, não lamento nada! Talvez nem mudasse nada! Afinal, o meu passado é uma manta tecida com fiapos de alma, uma tela preciosa, bordada com fios de vida! Vida que, como uma dança, vou dançando de acordo com a música que o destino, (será destino?), vai compondo e tocando para mim! Pautas e pautas de canções, de baladas, de sinfonias e de alguns réquiens que acomodo num relicário sagrado, só meu: a minha memória!

And if I don't regret my past I just regret the time I've wasted with the wrong people!

But in life, we must keep moving on. Looking back, what we see it`s just a chapter written in the past tense.
We can`t close the book. We mustn`t close the book! Just turn the pages! And live! And hope...


MC

So true...

"I'm selfish, impatient and a little insecure. I make mistakes, I am out of control and at times hard to handle. But if you can't handle me at my worst, then you sure as hell don't deserve me at my best." - Marilyn Monroe

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

RIDÍCULA! "MEMO"!

Foi com incredulidade e espanto que assisti, hoje, ao vídeo da Ministra da Educação, na sua mensagem, absolutamente patética e risível, aos alunos, no início deste ano lectivo!!!
A euforia anormal, a alegria forçada, os erros e a postura, sem classe, da senhora pareciam indicar que não estava bem, "memo" nada bem!!!
Não me lembro de ter assistido a um "discurso"(?) tão sem nexo, tão despropositado e tão cheio de erros, como este, para assinalar uma data que gostaríamos fosse marcante, para milhares de crianças e de jovens!! Mas que acarretou, para muitos, grandes e duras mudanças e pesados sacrifícios, em nome da redução de despesas!!!

A única palavra que me ocorreu, perante uma ministra que parecia tonta, a bater a pestana, numa excitação sem sentido e visivelmente descontrolada, foi, com muita misericórdia, (porque quero ir para o céu!!!), a palavra "RIDÍCULA! "MEMO"!!!

Um "MEMO" que, para culminar a desgraça, a ministra não se cansou de repetir...

MC

Ao contrário da Escola de sucesso

No início deste ano lectivo, muitas escolas já não abrem. E se, em algum casos, esta medida será compreensível, em muitos outros não é!
A Escola de sucesso preconizada e em vigência nos países nórdicos tão citados, pelos nossos governantes, como exemplo a seguir, é a escola de pequena dimensão, de proximidade e onde o ensino ministrado é sério, rigoroso, exigente, mas, naturalmente, diferenciado.

Em Portugal, ao contrário dessa Escola de sucesso, implementa-se o mega-agrupamento, a mega-escola, fria, distante e disciplinarmente permissiva, onde o ensino é, forçosamente, de massas e indiferenciado!
Esta é a escola que obriga os alunos, muitos deles crianças a iniciar o seu percurso escolar, a deslocarem-se, de camioneta, em percursos mais ou menos longos, saindo de casa de madrugada, ainda escuro, atordoados de sono e regressando já escuro, exaustos, cheios de frio, enjoados e vomitados.

A Educação é, cada vez mais, uma floresta de incertezas, revelando uma confrangedora incapacidade para preparar os alunos, de modo a que, mais tarde, possam servir o país, com inteligência, saber e responsabilidade.
Sabemos que quem decide e lesgisla pretende, acima de tudo, cortar nas despesas, talvez porque não creia no poder do estudo, do trabalho sério, do rigor e do pensamento! Esta escola exige tempo, a formação certa, dos agentes de ensino e custa dinheiro!
Quem decide e legisla parece crer, isso sim, na ignorância encapotada sob duvidosos diplomas, tirados à pressa, na habilidade manhosa, no facilitismo néscio que proporcione umas belas estastísticas para apresentar na UE, em termos de sucesso escolar, comprometendo, sem um tremor de conciência, uma cabal e tão necessária formação intelectual e cívica dos jovens, empenhando, assim, despudoradamente, o futuro da Nação!

MC

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Até quando...?

Num país onde grassa a confusão e o desperdício, onde a corrupção alastra, onde o favorecimento e o nepotismo são já naturalmente aceites e onde o crescente empobrecimento da população é indesmentível, o discurso do Primeiro Ministro ainda surpreende pela rósea fantasia e destoa, brutalmente, da negra realidade!

Num país onde a Justiça se debate num caos assustador, onde o desemprego não pára de aumentar, onde é visível o abrandamento do crescimento económico, onde a despesa pública aumenta vergonhosamente e as contas derrapam com estrondo, onde a escola pública se desfigura e se desmorona e onde a insegurança se instala, o Primeiro Ministro relativiza, despudoradamente, a profunda crise que nos consome e entusiasma-se, gesticula, tem esperança e tem certezas!

Segundo ele e sob a sua sábia égide, o país cresce, equilibra-se, enriquece e afirma-se, aquém e além fronteiras!

O país vai-se afundando no pântano da pobreza, da intriga e da arrogância, vai-se dissolvendo entre os tentáculos da incompetência e do improviso, mas o Primeiro Ministro parece viver num outro Portugal de faz-de-conta, farto, limpo, organizado e florescente, um verdadeiro paraíso de bem-estar e de desenvolvimento, bem ao alcance das nossas mãos e, pelo qual, deveríamos, talvez, agradecer-lhe penhoradamente, mas que não é, seguramente, este nosso pobre, cinzento e esgotado Portugal, onde vamos, penosamente, sobrevivendo!

Até quando...?

MC

domingo, 8 de agosto de 2010

Guerra Junqueiro e a Pátria!

Este texto foi escrito pelo escritor português Guerra Junqueiro há 113 anos criticando a situacão política de Portugal no final do século XIX.
A sua pungente actualidade leva-nos a concluir, com mágoa, que Portugal é um país ESTAGNADO no tempo.
Continuamos a ser um povo bovinamente resignado, estupidamente passivo e aflitivamente medroso! E, continuamos, unanimemente, a abdicar! De tudo!

Até quando???


"Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta.

[.] Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificação, da violência ao roubo, donde provém que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro.

Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; este criado de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do País.

A justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas.

Dois partidos sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se malgando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar."

Guerra Junqueiro, "Pátria", 1896

MC

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Porque

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

Sophia de Mello Breyner Andresen


Nota: Porque eu nem sabia que tinha tantos seguidores e a vossa "presença" e o vosso interesse me deu uma grande, grande alegria, aqui fica, para vós, Amigos queridos, este poema, com um imenso e grato abraço!
E, já agora, porque também respeito a vossa opinião, espero os vossos comentários!!

MC

Mãe

Que desgraça na vida aconteceu,
Que ficaste insensível e gelada?
Que todo o teu perfil se endureceu
Numa linha severa e desenhada?

Como as estátuas, que são gente nossa
Cansada de palavras e ternura,
Assim tu me pareces no teu leito.
Presença cinzelada em pedra dura,
Que não tem coração dentro do peito.

Chamo aos gritos por ti — não me respondes.
Beijo-te as mãos e o rosto — sinto frio.
Ou és outra, ou me enganas, ou te escondes
Por detrás do terror deste vazio.

Mãe:
Abre os olhos ao menos, diz que sim!
Diz que me vês ainda, que me queres.
Que és a eterna mulher entre as mulheres.
Que nem a morte te afastou de mim!

Miguel Torga, in 'Diário IV'


Neste poema, transborda, estarrecida, a dor da perda, a angústia da presença muda, cinzelada, fria e indiferente e escorre, viscoso, o espanto, o infinito espanto perante a pesada ausência, perante o inquietante silêncio, perante o assustador desconhecido!
Dedico, talvez inusitadamente, este poema a mim, à menina de três anos que fui e a todas as meninas e a todos os meninos que, como eu, um dia, se encontraram, indefesos, perante a “desgraça”, sem remédio, da mais terrível das perdas, mergulhados no vazio mais profundo, na mais dolorosa solidão, a tremer de medo e de frio!
Mas, essa estátua, cujo “perfil endureceu numa linha severa e desenhada”, é “a mulher eterna entre as mulheres que nem a morte afastou de mim" ou deles!!

Mãe!

MC

domingo, 30 de maio de 2010

Violoncelo

Chorai arcadas,
Do violoncelo!
Convulsionadas,
Pontes aladas
De pesadelo...

De que esvoaçam,
Brancos os arcos...
Por baixo passam,
se despedaçam,
No rio, os barcos,

Fundas soluçam
Caudais de choro...
Que ruínas(ouçam)!
se se debruçam,
Que sorvedouro!...

Trémulos astros...
Solidões lacustres...
- Lemes e mastros...
E os alabastros
Dos balaústres!

Urnas quebradas!
Blocos de gelo...
- Chorai arcadas,
Despedaçadas, do violoncelo.

Camilo Pessanha

Ao som plangente do seu "Violoncelo", pareceu-me sentir Camilo Pessanha guardar, num suspiro triste, pesado de lágrimas, a sua profunda mágoa e o seu aterrado espanto pela perfeita actualidade do seu poema, datado do fim do século XIX, neste País, decadente, quase em ruptura, em que hoje vivemos! Ou, será: em que hoje temos de sobreviver?

Pois, como escreveu José Augusto Saraiva, "...das arcadas do violoncelo emerge um choro convulsivo, que é justamente uma elegia pela pátria amortalhada... este poema, de 1900, é um requiem por Portugal...,na curva mais funda da sua decadência". Como nos nossos dias...

Neste belíssimo poema, que tão bem se ajusta ao Portugal empobrecido, cinzento e sofrido de hoje, Pessanha recorda-nos a simbologia da passagem das águas do rio e o som choroso, nostálgico do violoncelo!

MC

sábado, 29 de maio de 2010

Treze anos - Cantilena

Já tenho treze anos,
que os fiz por Janeiro:
Madrinha, casai-me
com Pedro Gaiteiro.

Já sou mulherzinha,
já trago sombreiro,
já bailo ao Domingo
com as mais no terreiro.

Já não sou Anita,
como era primeiro;
sou a Senhora Ana,
que mora no outeiro.

Nos serões já canto,
nas feiras já feiro,
já não me dá beijos
qualquer passageiro.

Quando levo as patas,
e as deito ao ribeiro,
olho tudo à roda,
de cima do outeiro.

E só se não vejo
ninguém pelo arneiro,
me banho co’as patas
Ao pé do salgueiro.

Miro-me nas águas,
rostinho trigueiro,
que mata de amores
a muito vaqueiro.

Miro-me, olhos pretos
e um riso fagueiro,
que diz a cantiga
que são cativeiro.

Em tudo, madrinha,
já por derradeiro
me vejo mui outra
da que era primeiro.

O meu gibão largo,
de arminho e cordeiro,
já o dei à neta
do Brás cabaneiro,

dizendo-lhe: «Toma
gibão, domingueiro,
de ilhoses de prata,
de arminho e cordeiro.

A mim já me aperta,
e a ti te é laceiro;
tu brincas co’as outras
e eu danço em terreiro».

Já sou mulherzinha,
já trago sombreiro,
já tenho treze anos,
que os fiz por Janeiro.

Já não sou Anita,
sou a Ana do outeiro;
Madrinha, casai-me
com Pedro Gaiteiro.

Não quero o sargento,
que é muito guerreiro,
de barbas mui feras
e olhar sobranceiro.

O mineiro é velho,
não quero o mineiro:
Mais valem treze anos
que todo o dinheiro.

Tão-pouco me agrado
do pobre moleiro,
que vive na azenha
como um prisioneiro.

Que em ele assomando
co’o tamborileiro,
logo se alvorote
o lugar inteiro.

Que todos acorram
por vê-lo primeiro,
e todas perguntem
se ainda é solteiro.

E eu sempre com ele,
romeira e romeiro,
vivendo de bodas,
bailando ao pandeiro.

Ai, vida de gostos!
ai, céu verdadeiro!
ai, Páscoa florida,
que dura ano inteiro!

Da parte, madrinha,
de Deus vos requeiro:
Casai-me hoje mesmo
com Pedro Gaiteiro.


In "Líricas Portuguesas – Portugália Editora"

António Feliciano de Castilho
1800 – 1875

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Ao contrário de Emily Dickinson

A Esperança é o derradeiro mal, é o pior dos males porquanto prolonga o tormento
F. Nietzsche

"Pandora trouxe a caixa que continha os males e abriu-a. Era o presente dos deuses aos homens, exteriormente um presente belo e sedutor, denominado “caixa da felicidade”.
E todos os males, seres vivos alados, escaparam voando. Desde então vagueiam e prejudicam os homens, dia e noite. Um único mal ainda não saíra do recipiente. Então, seguindo a vontade de Zeus, Pandora repôs a tampa, e esse derradeiro mal permaneceu fechado, lá dentro.

O homem tem agora, para sempre, a caixa da felicidade, e pensa maravilhas do tesouro que nele possui e que sabe estar à sua disposição: ele abre-a quando quer, pois não sabe que Pandora lhe trouxe o recipiente dos males e, para ele, frágil ser humano, o mal que restou é o que ele pensa ser o maior dos bens: a Esperança.
Zeus quis que os homens, por mais torturados que fossem pelos outros males, não rejeitassem a vida, mas continuassem a deixar-se torturar.

Para isso deu-lhes a Esperança: ela é, na verdade, o pior dos males, pois prolonga o suplício dos homens."

Friedrich Nietzsche, “Humano, demasiado humano”

Registo este texto e este pensamento trágico na sua absoluta desesperança, como contraponto ao belíssimo poema de Emily Dickinson.

Contudo, também foi Friedrich Nietzsche que escreveu:

"É necessário ter o caos cá dentro para gerar uma estrela!"


Do caos, afinal, também irrompe a Esperança e a Luz!

MC

Esperança é a coisa com penas - Emily Dickinson

Dickinson, "Hope is the Thing With Feathers"

Hope is the thing with feathers
That perches in the soul,
And sings the tune--without the words,
And never stops at all,
And sweetest in the Gale is heard;
And sore must be the Storm
That could abash the little Bird
That kept so many warm.
I've heard it in the chillest land,
And on the strangest Sea;
Yet, never, in Extremity,
It asked a crumb of Me.


"Esperança" é a coisa com penas

"Esperança" é a coisa com penas
Que se empoleira na alma
E canta um som sem palavras
E nunca, mas nunca, pára,

E mais doce é ouvido no vendaval;
E dura precisa ser a tempestade
Que poderia desanimar o passarinho
Que mantém aquecidos a tantos.

Já o ouvi nas terras mais geladas
E nos mares mais estranhos,
Entretanto nunca, mesmo no desespero,
Ele pediu uma migalha a Mim.

Tradução de Luiz Felipe Coelho



Gosto muito, mesmo muito, deste poema.

Emily Dickinson é a poetisa da solidão e do pranto da alma, mas aqui, fala-nos da Esperança, como um pássaro que se empoleira na alma humana, aí pulsa caladamente e infatigavelmente, transmitindo confiança e aconchego, sobretudo, nos maus momentos.
E, é quando a tempestade se desencadeia mais violenta e feroz, que a esperança, essa coisa com penas, esse sentimento que não se esgota e vive sempre connosco, é ainda mais doce e mais vivaz, sem nunca pedir nada em troca!

E, é agora, num país vergastado por uma duríssima intempérie, dobrados ao peso de uma incontida vertigem de impostos, quase submersos numa vaga alterosa de pobreza e de desapontamento, que mais precisamos do cântico encorajador e do suave adejar deste pássaro de esperança, empoleirado nas nossas almas, para que a explosão da borrasca e a turbulência dos dias, não nos amarfanhe, não nos derrube, nem nos esmague!

MC

A terceira margem do rio

“A terceira margem do rio” é outro conto revestido de simbolismo, da obra “Primeiras estórias” de Guimarães Rosa.
Bem ao estilo deste escritor, esta é a estória insólita de um homem que se evade de toda e qualquer convivência com a família e com a sociedade, preferindo a completa solidão do rio, onde, dentro de uma canoa, sem nunca mais sair dela, rema rio abaixo, rio acima, rio a fora, rio a dentro.

O rio, aliás, muito presente na obra de Guimarães Rosa, parece ter exercido uma forte atracção na imaginação do autor, que escreveu:

“... amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranquilos e escuros como os sofrimentos do homem. Amo ainda mais uma coisa de nossos grandes rios: a eternidade. Sim, o rio é uma palavra mágica para conjugar a eternidade.”

O espaço, neste conto, é delimitado pelo rio que domina a paisagem rural e precisamente, no ir e vir do rio e da vida, emana a magia e a noção de transcendentalismo.


Nesta estória, o filho é o narrador e também personagem e o pai é o homem cujos ideais de vida não estão de acordo com os padrões, considerados normais.O pai “virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupa que a gente de tempos em tempos, fornecia”
O pai fora sempre quieto, com tendência para o isolamento. Sempre fora a mãe a responsável pelo aspecto prático da vida.

Mas, o que é a terceira margem?
A terceira margem é o que não se vê, o que não se toca, o que não se conhece.

O pai, ao ir à procura da terceira margem, busca o desconhecido dentro de si mesmo e o isolamento é a única maneira encontrada para procurar entender os mistérios da alma, o incompreensível da vida.

O filho quando criança, quis, na sua inocência, embarcar com o pai mas este impediu-o. Quando adulto, sendo o pai já velho, propõe-se subatituí-lo. Mas, no momento em que vê o pai vindo em direcção à margem, o filho fica com medo daquele homem que parecia vir do outro mundo e, aterrado perante a ideia de estar prestes a partir rumo ao desconhecido, foge!

Talvez esta estória tenha sido o recurso, criado pelo autor, para discorrer sobre o medo que a humanidade tem do desconhecido, esse desconhecido que borbulha, lá muito no fundo de cada um de nós, do mistério da vida e da morte, do sentido de tudo, do “inominável”

Este mundo do “encantatório”, do desconhecido da terceira margem, “só poderia ser recriado por por uma linguagem também recriada e nova, capaz de reflectir todo o deslumbramento desse universo." Aliás Guimarães Rosa é um criador, um reinventador da linguagem.

Recursos Estilísticos:

A repetição é um recurso expressivo do autor: “e o rio-rio-rio, o rio sempre perpétuo”.
As figuras de linguagem reforçam o lado poético do conto:
A gradação – “cê vai, ocê fique, você nunca volte”
A antítese – “ perto e longe de sua família dele”
- O carácter metafórico do rio.
- As frases curtas e coordenadas, independentes, dão um ritmo lento à leitura:” Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n`água, proava para cá concordando.”
- A oralidade é reproduzida na fala do narrador: “ do que eu mesmo em alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem ralhava no diário com a gente.”
- A sintaxe é recriada de maneira inusitada, provocando estranheza: “ não fez a alguma recomendação” “nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele.”
- Neologismos – “diluso” talvez variante de diluido, diluto; “bubuíasse”; termos pouco comuns como: “encalcou”, “entestou”, etc.

MC

sábado, 1 de maio de 2010

A menina de lá

“A menina de lá”, conto de Guimarães Rosa, inserido na obra “Primeiras estórias”, termo criado pelo autor e, mais tarde, amplamente usado por outros escritores, nomeadamente, Mia Couto, é uma estória bonita e delicada, mas insólita, bizarra, carregada de originalidade!

A menina, “com os seus nem quatro anos” , franzina, sempre muito quieta, sentada a um canto, e cuja conversa ninguém parecia entender muito bem, é filha de um sitiante e de uma mulher sempre agarrada ao terço, mesmo quando se zanga e ralha.
A menina vive em Temor-de-Deus, por trás da Serra de Mim.
Chama-se Maria mas é sempre tratada por Nininha. Este diminutivo triplicado, reforça a sua fragilidade. É uma menina sensitiva, com o dom de ter contactos místicos e também dotada de poderes paranormais. Os seus desejos, por mais estranhos, realizam-se sempre: deseja ver um sapo, em tempo de seca e um sapo entra pela casa dentro, apetece-lhe "pamonhinha de goiaba" e logo aparece uma senhora com o doce.

Um dia, quando a mãe adoece, a menina diz que nada pode fazer mas abraça-a e, inexplicavelmente, a mãe fica curada.

Temos, desde o início da estória, a percepção de que a menina não pertence ao CÁ, (à terra, à proximidade), mas ao LÁ, (ao céu, ou a um mundo mágico, longínquo, divino), pela presença de palavras, deisticas no contexto em que são usadas, ligadas ao universo do mundo de LÁ: estrelinhas, lua, alturas, aves, mortos, saudades, milagre e, principalmente, arco-íris que é, aqui, uma palavra chave.
A menina tem uma relação forte com a água límpida e cristalina que fecunda e cria e não suporta águas poluídas.
Quando a menina deseja ver o arco-íris, faz chover.
A chuva chega e com ela o arco-íris que proporciona uma enorme alegria a Nininha. Ela diz a Tiântonia que quando morrer quer um caixãozinho cor-de-rosa, com enfeites verdes brilhantes. Há nas suas palavras uma premonição da sua morte ou, a expressão do seu desejo de partir para LÁ!
E, de facto, Nininha adoece e morre. E, os seus pais sabem que, com certeza e seja de que modo for, simplesmente porque demonstrou esse desejo, a menina será enterrada num caixãozinho bizarro, cor-de-rosa enfeitado de brilhos verdes!

O arco-íris poderá ser, simplesmente, entendido como um aviso de Deus de que a menina voltaria, muito breve, para o Seu seio. Na verdade, essa partida anuncia-se desde o início da estória: o dedinho dela quase alcançava o céu, iria visitar os parentes mortos, para não falar do próprio título do texto.
Nesta estória, toda revestida de simbolismo, a menina pode ser entendida como a “anima” de qualquer pessoa.

Se gostei desta estória? Mais do que gostei, esta estória encantou-me pela sua aparente simplicidade e imensa beleza e surpreendeu-me fortemente pela sua insólita originalidade!

Nota: Este e outros dois contos deste fantástico escritor, Guimarães Rosa, foram-me dados a conhecer pelo Professor, Dr. Arnaldo Saraiva, que também, embora brevemente, deu a sua abalizada opinião sobre eles.

MC

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Canção do exílio

Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

Em cismar sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar – sozinho, à noite –
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu’inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Coimbra – julho de 1843

(DIAS, Gonçalves. Canção do Exílio. In: FACCIOLI, Valentim; OLIVIERI, Antônio Carlos. Antologia da Poesia Brasileira: Romantismo. 9.ed. São Paulo: Ática, 1999. p.26.Série Bom Livro)

Nota - Lanço aqui este belíssimo poema, a propósito de um conto delicioso "A menina de lá", do escritor brasileiro Guimarães Rosa

MC

Egipto

Nunca aqui registei qualquer nota acerca das viagens que tenho feito, muitas delas a países africanos porque, tendo nascido em África, tenho uma irremediável atracção por esse continente de profundos e dolorosos contrastes, mas transbordante de amplitude e de beleza!
Não resisto, porém, a escrever sobre a minha última viagem, que mais não foi do que um vertiginoso mergulho nas fascinantes História e Cultura do antigo Egipto!

Delicioso e memorável, foi o Cruzeiro ao longo dessa maravilhosa fonte de vida, o mítico Nilo, bordejado de espessa vegetação que, dizem, se tem vindo a estreitar, mercê do paulatino e terrivel avanço do deserto.

Adorei visitar o Egipto que conhecia da História. O Egipto dos deuses poderosos, dos faraós magestáticos, das misteriosas pirâmides, para cuja construção não foi ainda encontrada uma explicação cabal!
Sente-se apenas que, ali, algo de aparentemente impossível, se tornou realidade!
E não sei descever a emoção que cresceu dentro de mim, quando me aproximei daqueles mastodontes de pedra, símbolos colossais do engenho, da força e do penoso sacrifício de um povo!
Senti-me pequenina e frágil, perante a esfinge estática, impenetrável, carregada de mistério e de segredos milenares; prendi a respiração, de espanto, em Abu Simbel, um complexo arqueológico, na Núbia, constituído por dois grandes templos escavados na rocha, hoje de frente para o maior lago artificial do Mundo, perto da fronteira com o Sudão e mandados construír pelo faraó Ramses II, em homenagem a si próprio e à sua esposa preferida, a sua amada rainha Nefertari.

Luxor é outro incontornável ponto de referência no Egipto. Luxor moderna cresceu a partir de Tebas, a antiga capital do Império Novo.
O Nilo separa Luxor em duas partes: a margem ocidental consagrada aos vivos e onde se encontram os mais importantes templos consagrados aos deuses da mitologia egípcia: o templo de Luxor e o templo de Karnak, o maior dos templos do antigo Egipto, em cujo interior ainda se preservam os colossos, gigantescas estátuas que encarnavam o génio do faraó.

Na margem ocidental, consagrada aos mortos, encontram-se: o Vale dos Reis, a principal necrópole do real império Novo do antigo Egipto, onde repousa Tutankamon, entre outros faraós; o Vale das Rainhas, onde se destaca o túmulo da rainha Nefertari, esposa querida de Ramses II e o Templo Mortuário da rainha Hatshepshut, que governou, como um autêntico faraó e considerada a primeira mulher chefe do Governo, na História; por último, lá está também o Vale dos Nobres.

Enorme foi o sobressalto entre o turbilhão de gente e de trafego desordenado nas ruas e a amálgama de cor e de luz que é o Cairo moderno e o deslumbramento que é o Cairo velho, com as suas ruas estreitas, as mesquitas, as madraças, onde as crianças decoravam, ( decoram ainda?), o Corão, os bazares antigos e o Khan el Khalili bazar imenso e incrivelmente apinhado de gente, numa trementa e contínua algazarra.

Estonteante é o museu do Cairo! Ali, está à vista de todos, a espantosa sabedoria, a capacidade de criar beleza e a engenhosa inteligência do povo egípcio! Fiquei, francamente, com a estranha e viva impressão que eles, a milhares de anos AC, criaram tudo, quando vi as camas e o trono desdobráveis, as sandálias tão parecidas com as modernas havaianas, os preservativos, toscos é certo, que já usavam, as roupas interiores das damas, e tantos outros exemplos de artefactos e vestuário que hoje continuamos a considerar necessários, no nosso dia a dia, e que eles já tinham criado!

Depois, foi o descanso em Sharm El Sheihk, aos pés do Mar Vermelho, que se oferece numa longa extensão de água rasa, cristalina, até atingir a profundidade azul forte, mas sempre borbulhante de vida e de cor, sob a luminosidade forte e o calor de Amon Rá! A prática de snorkeling é, aqui, um enorme prazer e uma contínua e deslumbrante descoberta de rara beleza!
Ali ao lado, está o Monte Sinai a recordar-nos Moisés e o penoso êxodo de um povo eternamente marginalizado e sacrificado! A propósito, recordo o crime hediondo de Set, que matou o seu irmão Osíris, de que o crime bíblico de Caim, milhares de anos depois, é afinal, uma réplica quase perfeita. Só que Abel não teve, como Osíris, uma esposa amante e fiel, Ísis, que o procurou, lutou desesperadamente por ele até ter um filho seu, Hórus, o deus-falcão!

No Egipto, de facto, parece não haver fronteiras rígidas que separem os deuses do homem. As feições dos deuses que conhecemos, são as feições do homem ou dos animais que os rodeiam, no céu ou na terra. As suas mãos são invisíveis e infinitas como invisiveis e infinitos são os raios do sol. E sente-se, com respeito, que a Água e o Fogo cósmico, o Nilo e o Sol, a essência divina e a essência humana estão ali presentes, em todos e em cada torrão do solo egípcio.

MC

sábado, 20 de março de 2010

A propósito de Camilo Castelo Branco e de Eça de Queiroz

Conta-se que Guimarães Rosa terá respondido, mais ou menos assim, quando lhe pediram a sua opinião sobre estes dois escritores, do nosso orgulho e do nosso contentamento:
Camilo Castelo Branco e Eça de Queiroz são dois dos grandes e mais marcantes nomes da Literatura Portuguesa! São ambos, magníficos e brilhantes escritores, e gosto muito dos dois. Mas, são diferentes! Por isso, leio Camilo, como quem visita o avô e leio Eça, como quem visita a amante!
Se esta apreciação foi feita, exactamente assim, não sei!
Mas, como Guimarães Rosa, adoro Camilo e já há muitos, muitos anos, apaixonei-me, irremediavelmente, por Eça!!! Uma paixão que perdura...
Recentemente, reli " A queda de um anjo" e foi delicioso, ter-me deixado seduzir, de novo, por Camilo...

MC

quinta-feira, 18 de março de 2010

Carta de uma sapinha, ao menino Rui Manuel.

Menino Rui Manuel,

Começo, assim, esta carta, porque ouvi as criadas e o jardineiro chamarem-lhe menino, apesar de ser alto, bonito e garboso como um deus e ter um sorriso de dentes brancos, como pedrinhas de sal, lindo e cheio de luz!
O menino não me conhece, nem nunca me irá conhecer! E, esta é uma carta que nunca será lida por si porque, para além da vergonha que eu sentiria se a lesse, não saberia, sequer, como fazê-la chegar às suas mãos, mas se não lhe escrevo, enlouqueço ou sufoco!

Sou uma sapinha, pequenina, feia e viscosa e vivo aqui, junto ao lago, na sua quinta.
Escrevo-lhe, menino Rui Manuel, só para lhe dizer que, há muito tempo, o amo, com todas as forças da minha alma! Sou uma sapinha humilde, mas tenho sentimentos, tenho coração e, por isso, acho que também tenho alma, não sei!
Quando o seu sorriso me abraça, mesmo que o seu sorriso não seja para mim e o menino nem saiba que existo, o sol brilhae cintila, embeleza o meu dia e aquece-me, consolador, ainda que o tempo esteja frio, cinzento e chuvoso! Vê-lo, menino Rui Manuel, é uma festa, é um arraial, é um baile de gala! Ouvir a sua voz, o seu riso, o ruído macio dos seus passos é um poema tecido de luz, é uma melodiosa canção, é uma deslumbrante sinfonia!

Quando, um dia, o menino leu, aqui no jardim, um poema, a uma rapariga de cabelos escuros, que se encostava, toda langorosa, a si, senti um grande desalento, uma imensa tristeza e uma profunda amargura! E uma tremenda fúria, também! Acho que tive ciúmes, menino, uns ciúmes danados dessa delambida que o abraçava, com uns braços longos e magros, como espetos!
Mas, gostei muito do poema, especialmente, de um verso, que decorei: “J`écoute le son de ta voix dans toutes les bruits du monde!” Exactamente, como eu!

Escondo-me de si, quando passeia junto ao lago, e só eu sei a ansiedade com que espero os seus passeios, porque tenho vergonha e repulsa de mim, da minha extrema e pegajosa fealdade. E tenho-me uma imensa raiva, uma raiva que me trespassa e um ódio sem medida por ser, assim, repelente, como sou! E, tenho medo, menino, um medo aflitivo, que me veja e não me queira aqui, este animal grotesco, risível, que sou, a destoar, brutalmente, da beleza delicada, do seu jardim!
No verão passado, estive, muitas vezes, pertinho dos seus pés descalços, tão pertinho que uma ou duas vezes os toquei, de leve, com as minhas patas largas e feias. E, esses foram os momentos mais bonitos desta minha desgraçada existência! E, na minha alma inquieta, repicaram sinos, desabrocharam rosas e resplandeceu o mais belo e fantástico fogo de artifício!
Daria tudo, se tivesse alguma coisa para dar, para ser uma rapariga bonita e desejável e florir, radiosa, nos seus braços, num esbanjamento de afagos, de beijos e de palavras sussurradas! Daria tudo, se tivesse alguma coisa para dar, para, mesmo sendo uma feia sapa, sentir uma caricía sua, uma carícia, mesmo levezinha e breve, nas minhas costas! Mas, não tenho nada, nem sequer a minha mísera vida que, eu sei, não tem qualquer valor, para oferecer, em troca!
E, depois, como poderia o menino tocar-me, acariciar-me, se tenho uma pele grossa, rugosa, nojenta e perpetuamente húmida?

Já tentei falar com Deus, mas sou tão insignificante, que Ele não me vê, não me ouve, nem me responde. Se calhar, até já se esqueceu que me criou, e, por isso, tenho-me limitado a perguntar, a mim mesma, porque razão, no corpo desta sapinha repugnante, que sou, bate, arrebatado, o coração cheio de amor, fogoso, doido, a estalar de emoção e de ciúme, de uma mulher ardente e apaixonada, que nunca serei?
Às vezes, muitas vezes, quando me vejo, reflectida no lago, assim feia, escura e repulsiva, apetece-me fugir, apetece-me morrer, apetece-me confundir-me, para sempre, com a terra... sei lá!

Depois de escrever esta carta, que o menino nunca irá ler, vou eu, lê-la muitas vezes, vou cobri-la de baba e de lágrimas, porque se uma sapinha se baba, a verdade é que também chora, e vou enterrá-la no sítio onde ousei tocar os seus pés descalços e onde senti o calor suave da sua pele macia, incendiar o meu corpo informe e gelado!

Mas, menino, confesso-lhe aqui, que tenciono escrever uma outra carta, mais curta, mas cheia de palavras ternas, enlouquecidas, apaixonadas! Uma carta de amor, romântica e ridicula, mesmo muito ridícula, tão ridícula, que, se o menino a lesse, fartava-se de rir! Mas, não faz mal! E, sabe, vou fazer de conta que foi o menino, num frémito louco de paixão, num delírio de amor, que a escreveu, a pensar em mim!
Depois, vou aconchegar-me em cima dela, ficar muito quieta, e deixar que o frio, a chuva, a neve, seja o que for, me adormeça, para eu morrer suavemente, assim devagarinho, a fazer de conta que sou uma linda princesa, a dormir um sono tranquilo, cheio de sonhos coloridos e fofos, como nuvens, nos braços fortes do seu principe encantador! E, eu que sempre vivi como uma sapinha triste, sem importância e horrenda, morro princesa, amante e muito amada! A transbordar de felicidade!

Vou terminar esta carta, quase cega pelas lágrimas! Estou a chorar e é a chorar que, me despeço de si e que, uma vez mais, lhe digo que o amo, menino Rui Manuel, com todas as forças deste meu pobre e cansado coração!

Sua sapinha,

MC

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Ninho de vespas

- Não posso com aquela gaja! Aquela cabra, ali, toda vaidosa, com o casaco de peles! Que casaco horrível, tão esquisito! Já viste o carro novo dela? Topo de gama! Do melhor!
- Já vi, já! Mas o pior são as dívidas! Vive atolada em dívidas! Pelo menos é o que dizem, por aí!!!
- Não, isso não é verdade! Afinal esse boato das dívidas, que por aí correu, é mentira! O que ela anda, é metida com o nosso Director!
- O quê? Anda metida com esse palerma empertigado que cheira mal da boca? Não acredito!!!
- É o que te digo, menina! Nunca reparaste nos olhos de carneiro mal morto dele, quando olha para ela...?
- Ah! Coitada da mulher dele! Tão boa senhora! Velha e feia que dói, mas, tão boa senhora! Esta gaja é mesmo uma cabra sem vergonha! Eu já tinha ouvido falar num arranjinho entre ela e o pançudo do Administrador... Se calhar chega para os dois... Cala-te boca!!!
- Bem, mas lá bonita é ela! E veste bem! E fala bem, a gaja! Que raiva! Que raiva! Tenho-lhe um ódio de morte!
- Veste bem, vive numa mansão e tem um carro topo de gama! Pudera! Com o cornudo do marido, num alto cargo no banco, a receber balúrdios de dinheiro de salário, a fazer favores e a untarem-lhe as mãos, bem untadas, debaixo da mesa... Já sabes como é!!!
- Nem me digas...!
- Aquilo é só corrupção, menina!!! O marido deve ser tão bom como ela! E, os cornos, cá entre nós devem ficar-lhe bem, sei lá...!
- Uma vaca tresmalhada à solta é o que ela é!! E, francamente nem acho que seja assim muito bonita! E, está a ficar velha e mais gorda, já reparaste? Como profissional, coitada, é uma nódoa!
- Eu acho que ela não tem curso! O certo é que até aqueles burros baptizados, na Administração, andam com ela ao colo e tratam-na como uma princesa... Será favores que ela lhes faz, a todos, sei lá... Aquela perua ordinária, até me faz perder a minha alma...
- Shiu! Cala-te! Ela vem aí! Olá, querida, tudo bem? Estás cada vez mais bonita e jovem! Esse casaco é muito bonito e original, mas fica-te muito bem! Só a ti podia ficar, assim, tão bem!!!

MC (A Vespa - Animal repulsivo)

A pulga

Que irritação... que chatice... que coceira,
Senti, de repente, na noite!
Virei-me, revirei-me, sem conseguir sossegar,
Com as irritantes picadas, de uma saltitante pulga
Que corria contente, furtiva e lanceira
E, que eu tentava, em desespero, apanhar...!

Furiosa... mal disposta... já desperta,
Pois, bichinho danado, quem se julga?
Anda cá minha pulga descarada.. malvada,
Que hei-de, essa tua alegria, acabar...!

Que irritação... que chatice... que coceira,
Que noite mal dormida... que maçada!
Só consegui sossegar e, de novo, adormecer,
Quando, enfim, ficou quietinha...
Reduzida a nada, pobre pulga importuna,
Entre as minhas unhas, esmagada...

MC (Animais importunos)

Uma vida em quatro tempos

Nasci pouco antes da hora de jantar e, minha avó estava de cama com um resfriado que a levou para a cova, poucos dias depois.

Cresci como um pequeno príncipe, numa casa rica, onde nunca nada me faltou, a não ser o amor e a carinhosa atenção que nos encouraçam, desde o berço, para as agruras e os espantos da vida.
Meu pai morreu, de repente, quando eu tinha sete anos. Meu tio, irmão do meu pai, tomou-me à sua guarda e levou-me para a sua casa, um palacete, no centro da vila, onde vivi rodeado de amas e de criadas. A minha mãe continuou na nossa casa, que era ali, mesmo ao lado. Dela, recordo a sua beleza fresca e os bonitos vestidos que eu não podia sujar ou amarrotar, com os meus abraços desajeitados de menino vagamente assustado. Não tive irmãos ou irmãs e, posso dizê-lo, fui sempre uma criança solitária e triste.
Nunca percebi porque não fiquei, na nossa casa, com a minha mãe, assim como não percebi o relacionamento forma, ldela com o meu tio, se, no dia em que o meu pai morreu, os vi correr, num alvoroço, um para o outro, abraçarem-se ternamente, a minha mãe a chorar e ele a cobrir-lhe o rosto bonito e fino, de trémulos beijos!
Estava destinado, eu ir para a academia militar. Recusei firmemente. Aos dezasseis anos, mandaram-me para um colégio interno. A minha mãe continuava bonita e airosa, mas sempre ligeiramente distante e fria. O meu tio tratava-me com cordealidade, preocupava-se comigo, mas nunca me dava um abraço ou, me estendia a mão, num gesto, visível, de afecto.
No momento delicado, do despertar da minha sexualidade, o Armando, meu companheiro, no colégio, apaixonou-se por mim e eu deixei-me envolver na doçura morna daquele amor, que suavizava e aquecia a minha alma gelada e seca.. Vivemosa história de um amor clandestino e proibido, que o Armando estava pronto a assumir mas, que a mim, me estarrecia. Assim, aquele foi sempre e apenas um amor idealizado, terno e cauteloso, como eu queria que fosse! Um amor fortalecido por uma completa entrega, da parte dele, que marcou a minha vida, árida de afecto, de ternura e de partilha!
Fomos juntos para a Faculdade e a minha sexualidade, fervilhava, inquieta, numa tremenda e avassaladora, confusão, de sentimentos, de incertezas e de medo! Quando terminámos o curso de Economia, decidi, ainda não sabia bem, se dobrado ao peso castrador das convenções sociais ou, se realmente porque as mulheres me começavam a interessar, que, na minha vida, o Armando não podia ser mais do que um amigo! Um amigo querido, é certo, mas apenas um amigo! Disse-lhe, sem rodeios, brutalmente, que os olhares cúmplices, as suas incontroláveis carícias, a terna solicitude dele para comigo, tinham de acabar! Aterrava-me a ideia que aquele seu amor arrebatado, transbordasse e fosse descoberto! O Armando gritou, chorou, insultou-me, suplicou e revoltou-se!

No dia que fiz vinte e cinco anos, o Armando suicidou-se!,
E, eu nunca lhe perdoei a insensatez do seu desesperado gesto; nunca lhe perdoei ter-me deixado mais só e mais triste do que nunca; nunca lhe perdoei esta dor que se agarrou a mim, como um limo maldito, viscoso, aferrado a mim, por não o ter amado como merecia; nunca lhe perdoei a minha infinita mágoa e o meu doloroso remorso pelo meu egoísmo, pelo meu medo!
Fui uns anos para os Estados Unidos, mais exactamente, para São Francisco, onde vivi intensamente e onde fiz uma valiosa pós-graduação. Sentia-me profundamente mal comigo mesmo e a saudade viva, cada vez mais forte, do Armando, torturava-me! Compreendi, tarde demais, que o amava muito mais do que tinha querido admitir!
Quando regressei ao país, assumi o controle da empresa do meu tio! Uns anos depois casei com a Teresa e tivémos três filhas. Casei e tornei-me um homem , como mandam as regras, de uma sociedade preconceituosa e hipócrita! Tão preconceituosa e hipócrita como eu, ao vestir a pele de um marido tranquilo, amado e amante, que nunca fui, e de um pai carinhoso e interessado, que me esforcei por ser!
Descobri, depois de casar, que a Teresa era uma mulher difícil, quesilenta e sem sentido de humor. O nosso casamento, aparentemente feliz, era continuamente agredido por tremendas discussões, que me deixavam esgotado, e abalado pelas abomináveis birras e os patéticos queixumes da minha mulher.
Fiz vários cursos de actualização no Reino Unido e na Alemanha. Ganhei muito dinheiro, perdi algum, viajei, joguei no casino, tive aventuras amorosas, sem consequências. Enfim, eu era o que se pode chamar um homem do mundo. Por isso, também, muitas vezes me cansei e me aborreci! Mas, nunca, houve um dia, em que não recordasse o Armando. Com o passar dos anos, tornei-me mais fechado, mais irascível e fui ficando cada vez mais zangado comigo e com a vida.

Aos cinquenta anos, fiz uma incursão no mundo da política, como assessor do ministro das Finanças. Foi uma experiência muito intensa, trabalhosa, mas muito interessante! Que não quis repetir, quando o mandato acabou!
Um ou dois anos depois, no dia do casamento da filha de um amigo, conheci-a! E, vi-me, pela primeira vez, num estremecimento de alma, como um adolescente ansioso e perplexo, entre a emocionada magia do enamoramento e o infinito abismo da paixão.
Este foi outro amor puro, platónico, mas forte, sob a forma de uma suave amizade, porque éramos ambos casados. Ela era uma mulher uns três anos mais nova do que eu, bonita, azougada e doce, que me encantou e me prendeu! Amei-a, com todas as forças da minha alma!
Nunca tive coragem de lhe falar no turbilhão incandescente, que se agigantava dentro de mim, porque sabia que jamais teria coragem de destruír a ordem social, estabelecida! Pelo contrário, afastei-me dela, perdi-a e perdi-me! Para me defender daquela paixão inesperada e febril, mas perigosa e transgressora, zanguei-me com ela sem razão e desorientei-a, com o meu distanciamento forçado e pretenso cinismo!
Ela julgou-me cruel, quando eu estava a ser cobarde! Ela pensou ver, em mim, um desinteresse e uma raiva, que nunca senti, quando o meu coração explodia de amor e de ansiedade! Ela viu-me voltar-lhe as costas, como um tolo arrogante, só porque eu não podia enfrentar a claridade pura do seu olhar, morto de ódio e de ciúme de todos os que a rodeavam! Ela sentiu-se traída e ignorada, quando eu apertava os punhos até doer, no fundo dos bolsos, só para não correr para ela e apertá-la, à frente de todos, num infinito abraço!
E, por ela, com ela na alma, conheci a exaltação, o ciúme, a alegria, a tristeza, o ódio, arroubos dourados de esperança e o desespero!
Mais uma vez, para não abalar as solenes convenções sociais , desisti dela! Preferi, em nome da mais triste cobardia, chafurdar, na mais dilacerante amargura, na mais negra frustação! E, reconheci o gosto amargo da renúncia!
Nunca mais a vi. Fui, durante anos, a almoços, a jantares, a reuniões e até a funerais, onde pensava poder encontrá-la! Só para a ver! Só para poder mergulhar, por instantes, o meu olhar turvo e desassossegado, na luz clara e serena do seu olhar! Só para respirar , nem que fosse por momentos, o mesmo ar que ela! Mas, nunca mais a vi! Fechei-me ainda mais em mim e sei que me fui tornando, cada vez mais irascível, mais zangado com tudo e com todos! Mas nunca, nestes anos todos, se passou uma noite que eu não adormecesse, a pensar nela!
Entretanto, adoeci gravemente e fui submetido a uma delicada cirurgia. Nunca mais, desde então, fui o mesmo homem forte e enérgico que era! Mas, nem a minha doença suavizou o azedume da minha mulher.

Tenho setenta e cinco anos. Continuo casado com a Teresa. Uma Teresa mais quesilenta, mais mal disposta, cada vez mais gorda e mais insuportável! Mas a verdade é que fui eu que escolhi continuar a esbracejar nesta vida, feita de discussões, de zangas, de mágoas e também de cansaço e de uma profunda indiferença! Sim, porque creio que já é por hábito, que continuamos juntos, que nos odiamos e discordamos tanto!
As nossas filhas seguiram o seu caminho. E, tenho, hoje, a medonha, a frustrante sensação que não tenho nada!
Estou doente e não me resta muito tempo! Olho para trás e sinto que fiz quase nada, da minha vida! Fui um menino carente, solitário e triste; fui um jovem egoísta, solitário e triste; fui um homem acomodado, solitário e triste; sou um velho doente, amargurado, solitário e triste! Fui sempre fraco, solitário e triste!
Mas, apesar de tudo, o Armando e ela aqui permanecem comigo, hoje, e nos dias que me restam, como duas referências poderosas e ardentes! Eles foram duas vagas imensas, cristalinas, arrebatadoras e perturbantes que me inundaram a vida de paixão e de amor mas, nas quais, não eu soube, não ousei mergulhar, abandonar-me e perder-me!

Tenho cinco netas. O meu primeiro neto nasceu ontem, pouco antes da hora do jantar e eu ainda não o vi porque, estou de cama , há uns dias, com um resfriado que me tolhe...

MC

Naquela noite densa e escura...

Não sabia como tinha ido parar ali. Saíra da estrada, e estava, agora, num carreiro estreito, rodeado por uma mata escura de árvores e de arbustos altos. À esquerda, espreitava um lago negro e baço.
A noite estava escura e densa.
As ramagens das árvores farfalhavam inquietas, soluçando mágoas e desfiando pecados velhos, feios, malditos, e o vento percorria o carreiro e acariciava as árvores e os arbustos com frémitos de amante, doido e meigo, e gemia melopeias, mil vezes repetidas.
O lago negro, parado, parecia um polvo adormecido, ameaçador, na sua aparente quietude!
Pareceu-lhe sentir a presença de alguém e julgou ouvir passos leves, abafados, furtivos mas depressa percebeu que, o que ouvia, eram as batidas fortes, desritmadas do seu coração!
Estava sozinho, perdido, vulnerável, naquele recanto desconhecido!
Sombras corriam pelo carreiro, emaranhavam-se por entre as árvores negras a segredarem, entre si, uma urdidura velhaca de intrigas e de enredos, e serpenteavam até ao lago, como cobras coleantes, esquivas, traiçoeiras.
A sensação inquietante de uma presença, apenas pressentida, mas que se impunha, dominadora, perturbava-o!
Subitamente as águas estagnadas do lago pareceram revolver-se, como se tivessem despertado de um torpor longo e doentio e, por momentos, coberto de suor, ele imaginou tentáculos monstruosos, pegajosos e fortes como tenazes, a emergirem e a estenderem-se, malignos, até si.
O pio lúgubre do mocho despertou a noite, com o seu queixume triste!Ele estremeceu e, aquele ambiente pesado e misterioso, lembrou-lhe as cartas! As cinco cartas de um amor alarmado pela ameaça do abandono perpétuo que, desde sempre, o tinham fascinado e que iria abordar, na conferência, no dia seguinte!

Cinco cartas latejantes de paixão, carregadas de lágrimas e de cansados suspiros que o coração e o corpo saciados do outro, nunca tinham sabido entender!
Aquelas cartas, pensou, com emoção, sendo um precioso e delicado luzeiro literário, tinham, na sua pungência, eternizado um amor! Um amor pecaminoso, condenado, ardente de insaciável desejo, vivido em noites assim, como aquela, densas, escuras, atravessadas de mistério e de sombras! Mas também noites apaixonadas, libidinosas, carregadas de fascínio e de luxúria!
São cartas desorganizadas, escritas num frenesim, à toa, sem pensar, que não seguem preceitos ou normas, que não obedecem a regras de moral ou de gramática, com a dignidade a querer sofucar o amor ou, talvez, com o amor a querer estrangular a dignidade!
Encolheu, ligeiramente, os ombros, descontente. Consigo próprio!
Ali estava ele, o professor exigente, o crítico temido, o poeta inquieto, o escritor insatisfeito...
Não! Se aquelas são cartas desorganizadas, irreflectidas, desvairadas, é porque, mais do que cartas, são retalhos de alma, são golfadas de dor, são cintilações de luz, são poços, sem fundo, de sombra funesta!
Por isso, porque elas são fruto de um amor fremente, enredado nas teias geladas do abandono, são desgrenhadas, impetuosas, contraditórias! São cândidas e lascivas! São luminosas e turvas! São ternas e coléricas! São líricas e trágicas!
E, só ela, perdida a esperança, à medida que a dor crescia e se agudizava, tomando o vulto de um temporal desfeito, medonho, podia ter escrito, saudosa, tresloucada: “Amo-te mil vezes mais do que a própria vida, e mil vezes mais do que imagino.”

E, o pio magoado do mocho cortou, de novo a noite, cada vez mais escura, cada vez mais densa! As ramagens das árvores e os arbustos altos confiavam, ainda, ao vento, inconfessáveis segredos e urdiam, entre si, tramas caluniosas, crueis. No lago, agora, uma bolha negra e gordurosa, ele pressentiu os monstros horrendos que ali se revolviam, e ameaçavam prendê-lo nos seus miasmas letais.
“Os meus medos!” pensou. "São os meus medos sombrios, viscosos, danados, que me torturam e que me envenenam que ali sinto, enleados num novelo maléfico, sem princípio, nem fim!”
E, o pio lancinante, do mocho a ecoar, longamente, na noite velha e gasta, e a fazer doer... a fazer doer a alma!

E, a presença, aquela presença assustadora a impor-se! Invisível, persistente, poderosa! Cada vez mais próxima!

Então, trémulo, num arrepio de susto e de espanto, viu, à sua direita, a figura diáfana de uma rapariga vestida de branco. Tinha os longos cabelos em desordem, os fartos cachos de caracóis dourados a desfazerem-se, lânguidos, sobre os ombros. No rosto branco e fino, luziam os olhos grandes, verdes, transfixos.
Estática, muda, pálida, com os braços caídos ao longo do corpo ela era um frágil ponto de luz, uma suave emanação de brilho, no negrume profundo da noite!
Ele olhava para ela, emudecido, num assombro!
Ela, calada, branca e loira, branca e fria, atravessava-o com o olhar!

Submerso num mar de terror e de náusea, com a voz presa na garganta, ele tentou respirar fundo e tossiu ligeiramente.
Ela pareceu não o ouvir e voltou-se devagar, silenciosa, quase transparente...
Num impulso, antes que se ela perdesse na mata negra, ressumante de suspiros e de lamentos, ele perguntou, agora, aos borbotões, numa ansiedade estranha, tão estranha como aquela estranha noite: “ Como se chama?”
E, ele nunca soube dizer se foi a rapariga que, num murmúrio, falou, se foram as ramagens das árvores que, docemente, sussurraram, se foi o lago que, cansado, gorgolejou ou, se foi o pio dolorido do mocho que, nesse instante, quebrou o silêncio enfeitiçado, daquela noite singular, e que, plangente e grave, respondeu:

Mariana!

Nota: Como o macaco é um exímio imitador, também os humanos usam e, às vezes abusam, dessa sua capacidade de imitar!
Assim sendo, vesti uma pele que não é a minha e escrevi este texto, a imitar um escritor ultra-romântico.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

O macaco de pedra


Havia numa planície do Oriente, uma rocha que, desde que o mundo fora criado,se deixava banhar, feliz, pelos raios da lua e do sol. Um dia, essa rocha inchou,inchou, entreabriu-se, e deu, ao mundo, um ovo de pedra. Esse ovo foi assolado por um furacão e rebentou. Dele, saiu um macaco de pedra.
O macaco possuía cinco sentidos: a visão, a audição, o olfacto, o paladar e o tacto. Os seus movimentos, porém, eram lentos. Depois de muitos alongamentos, ele conseguiu dirigir-se aos quatro pontos cardeais, alimentando-se dos frutos das árvores e da água das torrentes. Mais tarde, foi morar para as montanhas, dormindo, à noite, nas baixas vertentes e, durante o dia, voltando ao cimo. Fez amizades com outros macacos, os gibões.

Um dia de muito calor, o macaco foi até um bosque de pinheiros, em cujo centro, havia uma cascata, profunda e fresca; os gibões acompanhavam-no. Ao ver a água tão pura, tão cintilante, o macaco decidiu mergulhar nela a fim de procurar a nascente e medir a sua profundidade. Primeiro, mergulhou o macaco de pedra, visto que seus camaradas haviam decidido eleger Rei, aquele que descesse ao fundo da ondulante cascata... Ao chegar ao fundo, o macaco abriu os olhos. Não havia água, nem cascata; havia apenas um palácio onde estava escrito: “Monte das flores e dos frutos, terra da felicidade, caverna celeste”.

O macaco apressou-se a emergir, em busca dos demais macacos, a fim de lhes explicar o que havia descoberto no fundo da cintilante cascata. Os gibões, muito felizes, dançaram de alegria. O macaco de pedra, porém, disse-lhes: “Vamos morar no palácio; lá estaremos ao abrigo do sol e da chuva”. Todos mergulharam e tomaram posse do palácio da felicidade. O macaco de pedra instalou-se num trono e fez com que o aclamassem Rei, conforme fora combinado. Foi nomeado “O Perfeito Macaco-Rei”.

Mas, apesar da glória de soberano, apesar de ter acumulado riquezas e poder, o Macaco-Rei vivia melancólico. Temia a velhice e a morte.

Decidiu, um dia, partir em busca da imortalidade - iria ao mais fundo das cavernas, ao azul do céu, cavalgaria ao vento. No decorrer dessa busca, seu corpo e seu espírito pouco a pouco foram-se modificando e ele acabou por se tornar homem.

O macaco e a lenda

MC

sábado, 9 de janeiro de 2010

Orion e o escorpião




Conta-nos a lenda que Artemísia, apesar do seu voto de castidade, apaixonou-se perdidamente pelo jovem Orion, dispondo-se a renunciar à sua aura de deusa mais casta e mais pura, entre todas as deusas do Olimpo e a casar com ele.
O seu irmão gémeo, Apolo, enciumado, decidiu impedir o enlace mediante uma grande perfídia: quando estava numa praia, na companhia da irmã, desafiou-a a atingir, com a sua flecha, um ponto negro que mal se distinguia, à tona da água, devido à grande distância. Artemísia, exímia caçadora, vaidosa da sua perícia, prontamente retesou o arco e atingiu o alvo, que imediatamente, desapareceu no abismo do mar, fazendo-se substituir por uma espuma alterosa e ensanguentada. Era Orion que ali nadava, fugindo de um imenso escorpião criado por Apolo para persegui-lo, conduzindo-o, assim, para os confins do oceano.
Ao ter conhecimento da trágica morte do amado, às suas próprias mãos, Artemísia, inconsolável e desesperada, conseguiu, do pai, Zeus, que a vítima e o escorpião fossem transformados em constelações, para sempre vivas, no céu.
assim, quando a belíssima constelação de Órion se põe, a constelação de escorpião nasce, perseguindo-a sempre, cegamente, mas sem nunca a alcançar.

Os Bichos na Mitologia

MC

O sonho de Artemísia

Era uma manhã de verão e o sol parecia fazer desabar toda a sua preciosa carga de ouro, na pequena cascata que descia ondulante e formava, no solo, um pequeno lago, como uma concha de água cristalina, circundada de verdura, num recôndito do bosque.
O sol abrasava e Artemísia, a deusa da serena luz do luar, que por ali passava, acompanhada das suas ninfas, decidiu banhar-se na concha, onde a cascata se desfazia em espuma.
As ninfas despiram-lhe a túnica, descalçaram-lhe as sandálias e ela mergulhou, devagar, o corpo finamente esculpido, flexível e fresco, como a haste de uma flor em botão.
Acteon que se perdera, quando andava à caça, com a sua matilha de cinquenta cães, passou por ali, viu-a e ficou paralisado, perdido num êxtase quase místico, perante aquela deslumbrante criatura no banho, escondido, pelas sebes cerradas, verdes e lustrosas.
Artemísia, porém, apercebeu-se do intruso e, enraivecida pela ousada profanação dos seus virginais mistérios, preparava-se para chamar as suas ninfas, quando uma estranha dormência, um quebranto desconhecido a fez reclinar-se na relva que bordava a orla daquela taça de água translúcida.
A deusa adormeceu profundamente e sonhou...

No sonho, ela dirigia-se para aquele mesmo recanto ermo e verdejante do bosque, o sol a escaldar e a fazer desabrochar mil perfumadas corolas, nos jardins, ansiosa por banhar o seu corpo sequioso na concha cristalina, que se aninhava aos pés da cascata e onde a água cantava, recolhida entre arbustos, chorões, carvalhos e nogueiras ramalhudas.
Dois velhos que por ali passavam, curvados, feios, a pele amarela a cheirar a ranço e a penas de frango, os olhos esbugalhados, detiveram-se, boquiabertos, a espreitá-la, na sua esplendorosa beleza nacarada, que uma túnica alva e transparente, revelava mais do que cobria.
Ela, a casta Artemísia, rainha da serena luz, dos bosques, dos bichos e infatigavel caçadora, aproximou-se da cascata, sem se saber despida, devassada por aqueles olhos lúbricos, de pálpebras pesadas e descaídas que percorriam e quase apalpavam, excitados, o seu pescoço de garça, os seus seios perfeitos e firmes, o seu ventre liso, as suas coxas macias, a sua pele de cetim, que deus ou homem algum jamais vira.
Os velhos, os olhos arregalados, a boca torcida, num arreganho de volúpia, fosforejavam, babados, como lobos gulosos, à vista da ovelha sem pastor.Por entre os arbustos, eles observavam-na, num frenesim de luxúria e de imunda concupiscência.

(E, Artemísia, revolvia-se, angustiada, no sono).

Quando, depois de mandar retirar as ninfas, a deusa deixou cair a túnica e ía meter o pé descalço, na água cristalina, os velhos enlouquecidos de desejo, perante a sua radiosa e sensual nudez, arremeteram, para ela.
Com um grito abafado de susto e de vergonha, Artemísia tentou cobrir-se com a túnica, que pouco ou nada escondia, e dispos-se a chamar as ninfas. Os velhos, contudo, exaltados como bichos com cio, tentavam agarrá-la, com as suas mãos aduncas, ásperas, nojentas, e exigiam, babosos, num desvario, que se deixasse tocar e possuir, por eles, sob a ameaça de a acusarem de ser uma libertina, à solta pelos bosques, e de declararem terem-na surpreendido, numa cópula vergonhosa e desenfreada, com um rústico pastor, maculando, assim, para sempre, a sua auréola de sublime castidade, entre as deusas do Olimpo.
Artemísia, entretanto, ía fugindo do toque infame daqueles velhos lascivos, putrefactos e túrgidos, perdidos, naquele estranho sonho/pesadelo, os seus dons de deusa poderosa e caçadora exímia! Mas, mesmo vulnerável, indefesa, despojada da sua aljava de prata, ela ainda era a casta Artemísia que jamais se deixaria subjugar, que jamais deixaria destruír o odor de castidade que era o dom mais precioso da sua essência e gritou, gritou, aflita, por auxílio!

(E, a deusa agitava-se, convulsa, no sono inquieto.)

Acorreram, num espanto, as ninfas e os duendes. Os velhos furiosos, declararam, então, sobranceiros, com meio-sorrisos cínicos e olhares cúmplices, terem-na visto, ofegante e ébria de prazer, numa louca orgia dos sentidos, nos braços grosseiros de um pastor qualquer.

E, essa repelente difamação espalhou-se, como um incêndio e fez tremer o Olimpo!

Zeus foi chamado a intervir!. Artemísia, a deusa da serena luz, prateada, do luar, pálida, morta de vergonha e de desespero, esperava que se fizesse justiça. Apolo, seu irmão gémeo, olhava-a, atónito e enciumado. Mais tarde, iria, sem misericórdia, destroçar o coração da irmã, levando-a, com uma artimanha pérfida, a matar, ela própria, o amor da sua vida, Orion. Mas, essa é outra história, que não pertence a este perturbante sonho.
Zeus, com a filha a seu lado e com a sabedoria própria de uma divindade, decidiu falar com os velhos, em separado.
Imponente e severo, perguntou ao primeiro onde vira a deusa a copular com o pastor e ele disse, afoito e mau, que tinha sido debaixo de um chorão, cujas ramagens fartas e pendidas até ao solo, teriam escondido tão reles acto, não fossem os gemidos altos e a respiração opressa dos dois. Num salto temporal prodigioso, num outro tempo e num outro espaço, o chorão iria ter o seu momento de glória, quando, segundo a lenda, escondeu uma jovem mãe e o seu filho, Jesus, na fuga para o Egipto. Mas, essa é também outra história, que nada tem a ver com este aflitivo sonho.
Feita a pergunta ao outro velho, ele respondeu, maldoso e seguro de si que tinha visto a deusa e o rude pastor no debochado abraço, debaixo de uma nogueira. Nesse mesmo salto temporal, segundo a lenda, a madeira dessa árvore iria servir para crucificar, barbaramente, um homem bom e justo, esse mesmo Jesus, que o chorão protejera e salvara, anos antes. Mas, essa é outra história, também sem cabimento no sonho terrível, sofrido de Artemísia.
Então, Zeus, desencadeada a sua ira, trovejou aos dois velhos: “ Que as vossas mentiras sejam a vossa eterna condenação a um excruciante sofrimento, no Hades!” E, a um golpe do seu portentoso raio de fogo, os dois velhos tombaram a seus pés.

(E, a deusa da serena luz, saciada a sua sede de justiça, sorriu, tranquila, no sono).

Com a respiração descontrolada, mal refeita daquele sonho/pesadelo, Artemísia abriu os olhos e descortinou Acteon, ainda escondido, atrás das sebes, simultaneamente, surpreendido com a dolorosa inquietação no sono, de tão delicada criatura, e estático, irremediavelmente, preso ao encantamento da sua arrebatadora beleza!
Furiosa com aquela ousadia que a profanava, Artemísia aspergiu-o com a água onde se banhava e transformou Acteon num cervo, no meio de gritos e de lamentos pois, cada osso, cada músculo transformava-se, alongava-se ou retraía-se, com dores lancinantes.
E, indescritível foi o seu sofrimento e o seu horror ao sentir as mãos e os pés endurecerem e tomarem a forma de cascos e na cabeça crescerem chifres!
Os seus cães que por ali andavam, já famintos, ao verem aquele cervo grande, carnudo e tenro, correram, alucinados, atrás dele.
Acteon tentou chamá-los pelos nomes, suplicar-lhes que parassem, mas era, agora, um bicho! Não tinha voz! Ainda os sentiu abocanhá-lo e começarem a rasgar as suas carnes. Os cães comeram-no vorazes e lamberam, deliciados, o seu sangue, sem saberem que era o dono, respeitado e querido que, gostosamente, devoravam.

Diz-se que, ainda agora, os cinquenta cães de Acteon, nas noites prateadas pela serena luz do luar, uivam saudosos e vagueiam, por montes, por matas e por vales, incansavelmente, desesperadamente, à procura do dono!

MC