Hoje, apeteceu-me bincar aos poetas. Assim sendo, aí fica o meu "Diário mais ao Norte", um arremedo do poema de Adília Lopes, " Diário lisboeta", publicado no Público, a semana passada.
Espero que a Poeta Adília Lopes, mulher inteligente, de mente aberta e com um coração imenso, não se zangue comigo!
Diário lisboeta
1 de Abril de 2011, 6ª feira
Vi um cão abandonado.
2 de Abril de 2011, sábado
Vi dois papagaios verdes no alto de um choupo.
3 de Abril de 2011, domingo
Vi uma rosa cor-de-rosa no quintal do 14.
4 de Abril de 2011, 2ª feira
Arrumei o casacão no guarda-fato.
6 de Abril de 2011, 4ª feira
A Bé gostava de ter um macaquinho.
9 de Abril de 2011, sábado
Quero escrever frases, tagarelar e dançar.
Gosto de solinho. Ver o barómetro.
10 de Abril de 2011, domingo
Descomplicar.
A Leonor tem roupa à janela
Adília Lopes
Diário mais ao Norte
2o de Maio de 2011, 6ªfeira
Resgatei, da rua, um cão abandonado.
A Íris, a minha collie melre, fez um ano.
21 de Maio de 2011, sábado
Vi o pôr-do-sol, o céu em chamas e caminhei na praia.
À noite, o mar enfeitou-se de prata. A lua estava cheia.
22 de Maio de 2011, domingo
Colhi duas rosas vermelhas e vi um sapo, no jardim.
Fiz um bolo de chocolate e comi cerejas.
23 de Maio de 2011, 2ªfeira
A Nani deitou fora as canadianas e calçou sapatos de salto alto.
Vesti o vestido branco. Já me esqueci da roupa de inverno.
25 de Maio de 2011, 4ªfeira
O Gui gostava de ter um cãozinho.A mãe não deixa.
Mas, vai ter. Um, talvez, dois. Um dia. Na casa dele.
28 de Maio de 2011, Sábado
Quero ler o jornal, ir às compras e passear.
Adoro o sol. Está calor. Amanhã também.
29 de Maio de 2011, domingo
Descansar. Preguiçar, preguiçosamente, ao sol.
A Xana nunca tem roupa à janela.
Só um mar colorido de gerânios em flor.
MC
domingo, 29 de maio de 2011
domingo, 15 de maio de 2011
Pedaços de mágoa e de espanto de uma menina gorda, que a anorexia devorou...
Estou confusa! Isto parece um velório! Isto é um velório! Há muitas rosas brancas, círios, uma Cruz enorme e uma urna a transbordar de seda e de tule!
Cheira a velas, a flores e a lágrimas.
Não sei porque estou aqui, neste velório.
Comigo, estão muitos colegas meus e muitos professores.
...
Ninguém fala comigo. Parece que ninguém me vê! Que estranho...
....
O que estará a fazer aqui, o meu irmão? Meu Deus, como chora!
...
Deve ter sido alguém da Escola que morreu! Por isso, estou aqui!
...
Ali, ao canto está o Miguel, o rapaz por quem me apaixonei, com o encantamento do primeiro amor e a insegurança dos meus dezasseis anos!
...
Um dia, quando uns colegas nossos, nos viram juntos, disseram-lhe, a rir, que eu era perfeita, para ser sua namorada! A sua gargalhada escarninha, o olhar meio enjoado, meio piedoso que me lançou e o “Não!”, que lhe escapou, quase gritado, dos lábios, envergonharam-me e magoaram-me profundamente!
Eu era, na verdade e para meu infinito desgosto, muito diferente das outras raparigas, bonitas, soltas, esguias.
...
O meu tio, irmão do meu pai, gostava de, às escondidas, me apalpar as mamas e as nádegas! Dias depois do claro repúdio do Miguel, o meu tio apanhou-me sozinha e amarfanhou-me contra a parede da sala com o corpo e, enquanto com uma mão me tapava a boca, com a outra mão, suada e viscosa, abriu-me o vestido e apalpou-me as mamas, as pernas , explorou todo o meu corpo enquanto dizia, com a voz enrouquecida, vermelho e com os olhos brilhantes de excitação: Que rica xixa!
Um barulho qualquer obrigou-o a soltar-me e eu fugi, a rebentar de raiva , de mágoa , horrorizada comigo própria!
Nunca, como nesse dia, me detestei tanto! Senti um nojo imenso pelo meu tio e também pelo monte de carne, que eu era! Que sou!
Nessa noite, despi-me e olhei-me, criticamente, ao espelho.
...
Vi, com horror, a minha cara muito redonda, com bochechas balofas e luzidias, ,s meus braços fortes, muito roliços e as minhas ancas e pernas muito volumosas, flácidas, feias! Não tinha sequer cintura mas, um rolo carnudo, enrolava-se, à minha volta, como se fosse um cinto e começava a ter uma barriguinha que tremelicava de gordura! As minhas mamas, meio caídas, pareciam sacos mal ajeitados. Só ao meu tio, debochado e sujo, as minhas carnes, gordas e flácidas, podiam dar algum prazer!
Decidi, nesse momento, sozinha, no meu quarto, fazer uma dieta a sério!
Comecei a cortar na comida! O mais que podia!
...
Fazia muito exercício físico, às vezes, quase até à exaustão! Agora, já não posso...
...
Em meses, tinha perdido algum peso, continuo a perder peso mas, nunca deixei de me sentir pesada, inchada, enorme! Continuava, continuo gorda.
...
Tornei-me hábil e manhosa!
Tomava, ainda tomo, medicamentos para não engordar, que me davam forças e energia mas, como não me ajudavam a emagrecer tanto quanto desejava, recorria, como recorro ainda, aos laxantes.
Agrada-me este controlo que tenho sobre mim e sabe-me bem a abstinência a que me forço! Gosto de me sentir limpa e vazia por dentro!
E, sobretudo, respiro aliviada porque, se antes fugia apavorada do meu tio, agora é ele que me evita e nem para mim olha! Apesar de ainda estar gorda, farta de xixa.
...
Estudava muito e tinha notas muito altas! Queria ser a melhor, em tudo! Ultimamente, já não consigo! Estou muito cansada!
...
Dizem-me que estou a perder peso em excesso e que já tenho os ossos quase à mostra e as veias salientes. Mas, eu continuo a ver-me pesada, enorme! Porque estou pesada e enorme! Por isso e para esconder os refêgos de gordura, que se vão amontoando, em mim, uso roupa larga!
Vejo-me ao espelho e sei que não tenho graciosidade nenhuma, nem encanto, nem leveza!
...
Nos meus sonhos mais róseos, eu vejo-me linda, leve, deslizante, quase etérea, como uma sílfide! E, é assim, que eu irei ser! Um dia...!
Quando atingi os trinta quilos, internaram-me, no hospital!
Foi a maneira mais suave que os meus pais encontraram para me dizerem que não gostam de mim e estão fartos de me aturarem! Ninguém, aliás, gosta de uma rapariga volumosa, balofa e feia!
Dizem-me que tenho a pele seca e fina. Não é bem assim e eu esfrego-a muito bem, com sabonete, para que nem uma ponta de gordura me possa conspurcar!
Já não tenho menstruação há uns meses e os meus braços, pernas e costas estão cobertos de uma penugem, que, dizem, se chama lanugo, que eu escondo com a roupa larga que tenho de usar!
Parece que o meu cabelo está mais fino e muito menos farto mas, não é a pele, nem o cabelo, nem o lanugo, nem a amenorreia, que me preocupam!
...
Os meus pais discutem muito, dizem que por minha causa.
...
No hospital, tenho conhecido muitos jovens e alguns horrorizam-me porque persistem, teimosamente, numa dieta de que já não necessitam pois, são pele e osso, com os olhos enormes, nem sei se vazios ou, meio alucinados, os braços e as pernas cheios de manchas arroxeadas, e fazem-me lembrar aqueles meninos, completamente desnutridos, da Somália mas, sem as barrigas enormes, grávidas de nada, grávidas de falta de tudo!
Há uma rapariga, que me faz muita impressão, porque até cospe a saliva! Para não se sentir conspurcada!
Como se sentiriam eles se fossem, como eu, roliços e fartos de xixa, como diria o meu tio?
A vida no hospital, não é fácil! Querem que “façamos as pazes” com a comida! Não quero! Custou-me muito chegar aos trinta quilos e ainda tenho peso para perder! Não!
...
Nem o meu tio, nem homem algum irá jamais esfregar-se de gozo na minha carne!
....
Apesar de, mesmo assim, ainda estar volumosa! A minha dieta não terminou!
Continuo no velório!
...
Tenho de saber quem é esta “ela” de quem todos falam! E por quem tantos choram!
É tudo tão dolorosamente estranho...Sinto-me tão sozinha...
...
Neste momento, entram os meus pais. Meu Deus, como estão diferentes, parecem ter
envelhecido muitos anos, os rostos exaustos, devastados!
...
Que angustiante é isto tudo! Parece que estou a viver a irrealidade paralisante de um tremendo pesadelo, do qual, por mais que me debata, não consigo acordar!
Indiferente às minhas carícias e à meiguice das minhas palavras, a minha mãe aproxima-se da urna e um rio de lágrimas desaba sobre quem ali descansa!
Por quem chorará, assim, tão aflitivamente, a minha mãe? O meu pai não chora, não se aproxima da urna, nem da minha mãe, que mal se segura de pé! Não fala com ninguém! Parece de pedra! Ali está, ao canto, tão cansado, tão desligado, tão ausente!
...
Aproximo-me da urna envernizada e olho, atentamente, para quem ali repousa. Vejo um pequeno volume, envolto em sedas e tules brancos, quase afogado em rosas brancas que se vão desfolhando com o calor e vejo um rosto emaciado, magro, a pele esticada sobre os ossos, as mãos esqueléticas, os dedos entrelaçados.
O rosto não me é estranho... Na verdade, é vagamente parecido com o meu... Mas, eu tenho a cara redonda com bochechas balofas e luzidias!
Sobre o rosto imóvel, de cera, ainda escorrem as lágrimas da minha mãe e parece que é a morta que chora!
De repente, lembro-me...
...
A Andreia deu-me, a meu pedido, uns comprimidos, daqueles que nos fazem sentir melhor. Tomei-os e adormeci!
...
Depois, senti-me cair... Pareceu-me ouvir vozes, muito ao longe, e o som, lindo, ciciado, do Bolero de Ravel que adoro e que ouço, incansavelmente!
Lembro-me de, nesse momento, me sentir muito bem! Relaxada, calma, liberta! Depois, mais nada...!
Surpreendida, compreendi, enfim!
Sou eu que, branca, imóvel e finalmente tranquila, descanso ali! A minha luta, sem quartel, contra o excesso de peso, contra a comida, contra a xixa acumulada do gozo excitado do meu tio, terminou!
Nunca mais, a manápula de um homem conspurcará o meu corpo!
Porque, serenamente, morri, esta madrugada!
Como diria Sartre, “ les jeux sont faits” ! Sinto uma imensa e fantástica indiferença descer sobre mim e afastar-me, irremediavelmente, de todos e de tudo!
Mas, estranhamente, não me importo!
Aprisionada, perdida, nos tentáculos poderosos, dessa gélida indiferença , esqueço os meus afectos, as minhas alegrias, os meus dramas e os meus medos! Numa absoluta solidão!
Para sempre...!
MC
Cheira a velas, a flores e a lágrimas.
Não sei porque estou aqui, neste velório.
Comigo, estão muitos colegas meus e muitos professores.
...
Ninguém fala comigo. Parece que ninguém me vê! Que estranho...
....
O que estará a fazer aqui, o meu irmão? Meu Deus, como chora!
...
Deve ter sido alguém da Escola que morreu! Por isso, estou aqui!
...
Ali, ao canto está o Miguel, o rapaz por quem me apaixonei, com o encantamento do primeiro amor e a insegurança dos meus dezasseis anos!
...
Um dia, quando uns colegas nossos, nos viram juntos, disseram-lhe, a rir, que eu era perfeita, para ser sua namorada! A sua gargalhada escarninha, o olhar meio enjoado, meio piedoso que me lançou e o “Não!”, que lhe escapou, quase gritado, dos lábios, envergonharam-me e magoaram-me profundamente!
Eu era, na verdade e para meu infinito desgosto, muito diferente das outras raparigas, bonitas, soltas, esguias.
...
O meu tio, irmão do meu pai, gostava de, às escondidas, me apalpar as mamas e as nádegas! Dias depois do claro repúdio do Miguel, o meu tio apanhou-me sozinha e amarfanhou-me contra a parede da sala com o corpo e, enquanto com uma mão me tapava a boca, com a outra mão, suada e viscosa, abriu-me o vestido e apalpou-me as mamas, as pernas , explorou todo o meu corpo enquanto dizia, com a voz enrouquecida, vermelho e com os olhos brilhantes de excitação: Que rica xixa!
Um barulho qualquer obrigou-o a soltar-me e eu fugi, a rebentar de raiva , de mágoa , horrorizada comigo própria!
Nunca, como nesse dia, me detestei tanto! Senti um nojo imenso pelo meu tio e também pelo monte de carne, que eu era! Que sou!
Nessa noite, despi-me e olhei-me, criticamente, ao espelho.
...
Vi, com horror, a minha cara muito redonda, com bochechas balofas e luzidias, ,s meus braços fortes, muito roliços e as minhas ancas e pernas muito volumosas, flácidas, feias! Não tinha sequer cintura mas, um rolo carnudo, enrolava-se, à minha volta, como se fosse um cinto e começava a ter uma barriguinha que tremelicava de gordura! As minhas mamas, meio caídas, pareciam sacos mal ajeitados. Só ao meu tio, debochado e sujo, as minhas carnes, gordas e flácidas, podiam dar algum prazer!
Decidi, nesse momento, sozinha, no meu quarto, fazer uma dieta a sério!
Comecei a cortar na comida! O mais que podia!
...
Fazia muito exercício físico, às vezes, quase até à exaustão! Agora, já não posso...
...
Em meses, tinha perdido algum peso, continuo a perder peso mas, nunca deixei de me sentir pesada, inchada, enorme! Continuava, continuo gorda.
...
Tornei-me hábil e manhosa!
Tomava, ainda tomo, medicamentos para não engordar, que me davam forças e energia mas, como não me ajudavam a emagrecer tanto quanto desejava, recorria, como recorro ainda, aos laxantes.
Agrada-me este controlo que tenho sobre mim e sabe-me bem a abstinência a que me forço! Gosto de me sentir limpa e vazia por dentro!
E, sobretudo, respiro aliviada porque, se antes fugia apavorada do meu tio, agora é ele que me evita e nem para mim olha! Apesar de ainda estar gorda, farta de xixa.
...
Estudava muito e tinha notas muito altas! Queria ser a melhor, em tudo! Ultimamente, já não consigo! Estou muito cansada!
...
Dizem-me que estou a perder peso em excesso e que já tenho os ossos quase à mostra e as veias salientes. Mas, eu continuo a ver-me pesada, enorme! Porque estou pesada e enorme! Por isso e para esconder os refêgos de gordura, que se vão amontoando, em mim, uso roupa larga!
Vejo-me ao espelho e sei que não tenho graciosidade nenhuma, nem encanto, nem leveza!
...
Nos meus sonhos mais róseos, eu vejo-me linda, leve, deslizante, quase etérea, como uma sílfide! E, é assim, que eu irei ser! Um dia...!
Quando atingi os trinta quilos, internaram-me, no hospital!
Foi a maneira mais suave que os meus pais encontraram para me dizerem que não gostam de mim e estão fartos de me aturarem! Ninguém, aliás, gosta de uma rapariga volumosa, balofa e feia!
Dizem-me que tenho a pele seca e fina. Não é bem assim e eu esfrego-a muito bem, com sabonete, para que nem uma ponta de gordura me possa conspurcar!
Já não tenho menstruação há uns meses e os meus braços, pernas e costas estão cobertos de uma penugem, que, dizem, se chama lanugo, que eu escondo com a roupa larga que tenho de usar!
Parece que o meu cabelo está mais fino e muito menos farto mas, não é a pele, nem o cabelo, nem o lanugo, nem a amenorreia, que me preocupam!
...
Os meus pais discutem muito, dizem que por minha causa.
...
No hospital, tenho conhecido muitos jovens e alguns horrorizam-me porque persistem, teimosamente, numa dieta de que já não necessitam pois, são pele e osso, com os olhos enormes, nem sei se vazios ou, meio alucinados, os braços e as pernas cheios de manchas arroxeadas, e fazem-me lembrar aqueles meninos, completamente desnutridos, da Somália mas, sem as barrigas enormes, grávidas de nada, grávidas de falta de tudo!
Há uma rapariga, que me faz muita impressão, porque até cospe a saliva! Para não se sentir conspurcada!
Como se sentiriam eles se fossem, como eu, roliços e fartos de xixa, como diria o meu tio?
A vida no hospital, não é fácil! Querem que “façamos as pazes” com a comida! Não quero! Custou-me muito chegar aos trinta quilos e ainda tenho peso para perder! Não!
...
Nem o meu tio, nem homem algum irá jamais esfregar-se de gozo na minha carne!
....
Apesar de, mesmo assim, ainda estar volumosa! A minha dieta não terminou!
Continuo no velório!
...
Tenho de saber quem é esta “ela” de quem todos falam! E por quem tantos choram!
É tudo tão dolorosamente estranho...Sinto-me tão sozinha...
...
Neste momento, entram os meus pais. Meu Deus, como estão diferentes, parecem ter
envelhecido muitos anos, os rostos exaustos, devastados!
...
Que angustiante é isto tudo! Parece que estou a viver a irrealidade paralisante de um tremendo pesadelo, do qual, por mais que me debata, não consigo acordar!
Indiferente às minhas carícias e à meiguice das minhas palavras, a minha mãe aproxima-se da urna e um rio de lágrimas desaba sobre quem ali descansa!
Por quem chorará, assim, tão aflitivamente, a minha mãe? O meu pai não chora, não se aproxima da urna, nem da minha mãe, que mal se segura de pé! Não fala com ninguém! Parece de pedra! Ali está, ao canto, tão cansado, tão desligado, tão ausente!
...
Aproximo-me da urna envernizada e olho, atentamente, para quem ali repousa. Vejo um pequeno volume, envolto em sedas e tules brancos, quase afogado em rosas brancas que se vão desfolhando com o calor e vejo um rosto emaciado, magro, a pele esticada sobre os ossos, as mãos esqueléticas, os dedos entrelaçados.
O rosto não me é estranho... Na verdade, é vagamente parecido com o meu... Mas, eu tenho a cara redonda com bochechas balofas e luzidias!
Sobre o rosto imóvel, de cera, ainda escorrem as lágrimas da minha mãe e parece que é a morta que chora!
De repente, lembro-me...
...
A Andreia deu-me, a meu pedido, uns comprimidos, daqueles que nos fazem sentir melhor. Tomei-os e adormeci!
...
Depois, senti-me cair... Pareceu-me ouvir vozes, muito ao longe, e o som, lindo, ciciado, do Bolero de Ravel que adoro e que ouço, incansavelmente!
Lembro-me de, nesse momento, me sentir muito bem! Relaxada, calma, liberta! Depois, mais nada...!
Surpreendida, compreendi, enfim!
Sou eu que, branca, imóvel e finalmente tranquila, descanso ali! A minha luta, sem quartel, contra o excesso de peso, contra a comida, contra a xixa acumulada do gozo excitado do meu tio, terminou!
Nunca mais, a manápula de um homem conspurcará o meu corpo!
Porque, serenamente, morri, esta madrugada!
Como diria Sartre, “ les jeux sont faits” ! Sinto uma imensa e fantástica indiferença descer sobre mim e afastar-me, irremediavelmente, de todos e de tudo!
Mas, estranhamente, não me importo!
Aprisionada, perdida, nos tentáculos poderosos, dessa gélida indiferença , esqueço os meus afectos, as minhas alegrias, os meus dramas e os meus medos! Numa absoluta solidão!
Para sempre...!
MC
sábado, 14 de maio de 2011
Crepúsculo
Não gosto do crepúsculo! Entristece-me. Temo-o.
Não sei porquê ou, talvez inconscientemente, saiba, associo o crepúsculo, essa hora dos “mágicos cansaços”, dos poetas e dos artistas, à memória mais remota que tenho da minha mãe, doente, num quarto despojado, quase nu, hoje sei que era um sanatório, sentada numa cama estreita, junto a uma janela, com os braços estendidos para mim, e imagino-lhe os olhos chorosos, numa ansiedade aflita. Não me lembro das feições do rosto, mas recordo-me, (será que me recordo mesmo?), de uma voz, severa e dura, dizer: "Não esteja com isso, não a chame, sabe que não pode tocar-lhe. Só pode vê-la. De longe..."
E, lembro-me de mim, pequenina, à porta, aos gritos e a chorar, também eu com os braços estendidos para ela, aprisionada entre os braços fortes de uma mulher, ansiosa por fugir e refugiar-me no peito macio e aconchegante, mas onde a doença galopante e facilmente transmissível, fervilhava, malévola.
Esta foi a última vez que vi a minha mãe. Uma cena crepuscular , toda feita de choro, da tristeza, sem remédio, da separação e de uma raiva imensa, que jamais esqueci.
Aqui ficam dois poemas da poetisa do amor, da saudade, do crepúsculo e dos mágicos cansaços dessa hora ambígua e carregada de melancolia.
Se tu viesses ver-me
Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços…
Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca… o eco dos teus passos…
O teu riso de fonte… os teus abraços…
Os teus beijos… a tua mão na minha…
Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri
E é como um cravo ao sol a minha boca…
Quando os olhos se me cerram de desejo…
E os meus braços se estendem para ti…
Florbela Espanca - Charneca em Flor
Crepúsculo
Teus olhos, borboletas de oiro, ardentes
Batendo as asas leves, irisadas,
Poisam nos meus, suaves e cansadas
Como em dois lírios roxos e dolentes...
E os lírios fecham... Meu Amor, não sentes?
Minha boca tem rosas desmaiadas,
E as minhas pobres mãos são maceradas
Como vagas saudades de doentes...
O Silêncio abre as mãos... entorna rosas...
Andam no ar carícias vaporosas
Como pálidas sedas, arrastando...
E a tua boca rubra ao pé da minha
É na suavidade da tardinha
Um coração ardente palpitando...
Florbela Espanca, in "Livro de Sóror Saudade"
MC
Não sei porquê ou, talvez inconscientemente, saiba, associo o crepúsculo, essa hora dos “mágicos cansaços”, dos poetas e dos artistas, à memória mais remota que tenho da minha mãe, doente, num quarto despojado, quase nu, hoje sei que era um sanatório, sentada numa cama estreita, junto a uma janela, com os braços estendidos para mim, e imagino-lhe os olhos chorosos, numa ansiedade aflita. Não me lembro das feições do rosto, mas recordo-me, (será que me recordo mesmo?), de uma voz, severa e dura, dizer: "Não esteja com isso, não a chame, sabe que não pode tocar-lhe. Só pode vê-la. De longe..."
E, lembro-me de mim, pequenina, à porta, aos gritos e a chorar, também eu com os braços estendidos para ela, aprisionada entre os braços fortes de uma mulher, ansiosa por fugir e refugiar-me no peito macio e aconchegante, mas onde a doença galopante e facilmente transmissível, fervilhava, malévola.
Esta foi a última vez que vi a minha mãe. Uma cena crepuscular , toda feita de choro, da tristeza, sem remédio, da separação e de uma raiva imensa, que jamais esqueci.
Aqui ficam dois poemas da poetisa do amor, da saudade, do crepúsculo e dos mágicos cansaços dessa hora ambígua e carregada de melancolia.
Se tu viesses ver-me
Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços…
Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca… o eco dos teus passos…
O teu riso de fonte… os teus abraços…
Os teus beijos… a tua mão na minha…
Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri
E é como um cravo ao sol a minha boca…
Quando os olhos se me cerram de desejo…
E os meus braços se estendem para ti…
Florbela Espanca - Charneca em Flor
Crepúsculo
Teus olhos, borboletas de oiro, ardentes
Batendo as asas leves, irisadas,
Poisam nos meus, suaves e cansadas
Como em dois lírios roxos e dolentes...
E os lírios fecham... Meu Amor, não sentes?
Minha boca tem rosas desmaiadas,
E as minhas pobres mãos são maceradas
Como vagas saudades de doentes...
O Silêncio abre as mãos... entorna rosas...
Andam no ar carícias vaporosas
Como pálidas sedas, arrastando...
E a tua boca rubra ao pé da minha
É na suavidade da tardinha
Um coração ardente palpitando...
Florbela Espanca, in "Livro de Sóror Saudade"
MC
terça-feira, 10 de maio de 2011
Peso Pesado - A menina gorda
Vi o programa “Peso Pesado” , na SIC, na noite da estreia e, para mim, foi o suficiente!
Este programa é, na minha opinião, chocante e grotesco. Espanta-me haver candidatos para este tipo de espectáculos e confrange-me ver aquelas pessoas, tão jovens algumas delas, expor, publicamente, a sua doença, os seus traumas, os seus dolorosos complexos, sujeitando-se à manipulação despudorada das suas emoções e à malévola exposição dos rolos imensos e flácidos de gordura que lhes deformam o corpo e lhes sufocam a alma num sofrimento atroz.
Foi arrepiante vê-los gordos, exaustos, rastejar na lama, tentar andar ligeiros, sem estarem preparados para esse esforço, um hercúleo esforço!
Vimo-los chorar quando falaram da sua obesidade, vimo-los agigantarem-se, aflitos, ofegantes, para vencer dificuldades, para eles, enormes, só com o objectivo de não serem expulsos de um programa de categoria muito duvidosa!
E, desgraçadamente, vimos dois concorrentes , em pânico, um deles, atrozmente obeso, serem maltratados por um “comando” que os fez deitar no chão, que lhes berrou como doido, que lhes atitou com baldes de água, que, em resumo, os humilhou, os exauriu e destratou, a troco de continuarem no jogo!
Foram tremendamente abusados mas, creio que, na sua simplicidade, no seu terror, nem se aperceberam do abuso de que estavam a ser vítimas!
Foi simplesmente vergonhoso, de uma baixeza e e uma maldade, sem nome e sem tamanho!
Tudo, mas tudo, tem um limite! Ali, naquela estreia, excederam-se todos os limites!
E não se diga, à laia de justificação, que todos sabiam para o que vinham! Não sabiam com certeza! Aqueles dois, por exemplo, decerto não sabiam o que iriam sofrer às mãos de um “comando” de trazer por casa, mas violento e abusador! E um canal de televisão que se preza, com o nível e as credenciais da SIC não devia enveredar por aí...
Ver a patologia da obesidade mórbida transformada em espectáculo é qualquer coisa de medonho, de revoltante que não devia sequer ser permitido!
Mas, enfim, o programa está no ar e vê quem quer!
A propósito de pesos pesados e para amenizar a aspereza do texto, aqui fica este poema imortalizado por João Villaret:
A menina gorda
Esta menina gorda, gorda, gorda,
Tem um pequenino coração sentimental.
Seu rosto é redondo, redondo, redondo;
Toda ela é redonda, redonda, redonda,
E os olhinhos estão lá no fundo a brilhar.
É menina e moça. Terá quinze anos?
Umas velhas amigas de sua mamãe
Dizem sempre que a encontram, num êxtase longo:
“Como esta menina está gorda, bonita!”
“Como esta menina está gorda, bonita!”
E ela ri de prazer. Seu rosto redondo
Esconde os olhinhos no fundo, a brilhar.
Às vezes no quarto,
Diante do espelho;
Ao ver-se tão gorda, tão gorda, tão gorda,
Ela pensa nas velhas amigas de sua mamãe
E também num rapaz
Que a olha sorrindo,
Quando toda manhã ela vai para a escola:
“– Ele gosta de mim… Ele gosta de mim.
Eu sou gorda, bonita…”
E os dedos gordinhos pegando nas tranças
Têm carícias ingénuas
Diante do espelho.
Rui Ribeiro Couto
MC
Este programa é, na minha opinião, chocante e grotesco. Espanta-me haver candidatos para este tipo de espectáculos e confrange-me ver aquelas pessoas, tão jovens algumas delas, expor, publicamente, a sua doença, os seus traumas, os seus dolorosos complexos, sujeitando-se à manipulação despudorada das suas emoções e à malévola exposição dos rolos imensos e flácidos de gordura que lhes deformam o corpo e lhes sufocam a alma num sofrimento atroz.
Foi arrepiante vê-los gordos, exaustos, rastejar na lama, tentar andar ligeiros, sem estarem preparados para esse esforço, um hercúleo esforço!
Vimo-los chorar quando falaram da sua obesidade, vimo-los agigantarem-se, aflitos, ofegantes, para vencer dificuldades, para eles, enormes, só com o objectivo de não serem expulsos de um programa de categoria muito duvidosa!
E, desgraçadamente, vimos dois concorrentes , em pânico, um deles, atrozmente obeso, serem maltratados por um “comando” que os fez deitar no chão, que lhes berrou como doido, que lhes atitou com baldes de água, que, em resumo, os humilhou, os exauriu e destratou, a troco de continuarem no jogo!
Foram tremendamente abusados mas, creio que, na sua simplicidade, no seu terror, nem se aperceberam do abuso de que estavam a ser vítimas!
Foi simplesmente vergonhoso, de uma baixeza e e uma maldade, sem nome e sem tamanho!
Tudo, mas tudo, tem um limite! Ali, naquela estreia, excederam-se todos os limites!
E não se diga, à laia de justificação, que todos sabiam para o que vinham! Não sabiam com certeza! Aqueles dois, por exemplo, decerto não sabiam o que iriam sofrer às mãos de um “comando” de trazer por casa, mas violento e abusador! E um canal de televisão que se preza, com o nível e as credenciais da SIC não devia enveredar por aí...
Ver a patologia da obesidade mórbida transformada em espectáculo é qualquer coisa de medonho, de revoltante que não devia sequer ser permitido!
Mas, enfim, o programa está no ar e vê quem quer!
A propósito de pesos pesados e para amenizar a aspereza do texto, aqui fica este poema imortalizado por João Villaret:
A menina gorda
Esta menina gorda, gorda, gorda,
Tem um pequenino coração sentimental.
Seu rosto é redondo, redondo, redondo;
Toda ela é redonda, redonda, redonda,
E os olhinhos estão lá no fundo a brilhar.
É menina e moça. Terá quinze anos?
Umas velhas amigas de sua mamãe
Dizem sempre que a encontram, num êxtase longo:
“Como esta menina está gorda, bonita!”
“Como esta menina está gorda, bonita!”
E ela ri de prazer. Seu rosto redondo
Esconde os olhinhos no fundo, a brilhar.
Às vezes no quarto,
Diante do espelho;
Ao ver-se tão gorda, tão gorda, tão gorda,
Ela pensa nas velhas amigas de sua mamãe
E também num rapaz
Que a olha sorrindo,
Quando toda manhã ela vai para a escola:
“– Ele gosta de mim… Ele gosta de mim.
Eu sou gorda, bonita…”
E os dedos gordinhos pegando nas tranças
Têm carícias ingénuas
Diante do espelho.
Rui Ribeiro Couto
MC
terça-feira, 3 de maio de 2011
Justice has been done
Osama Bin Laden foi um criminoso hediondo, responsável pela morte, sem sentido, de milhares de pessoas inocentes e pela incomensurável dor de tantos!
A sua morte é uma vitória para os Estdos Unidos e para o mundo e demonstrou que este tipo de crimes não podem ficar impunes, demore o tempo que demorar a vingá-los.
Foram precisos dez anos de busca incessante, de trabalho árduo, de avanços e recuos na perseguição deste monstro, para que o povo Americano pudesse expurgar o dia mais trágico e o atentado mais nefando da sua História!
Mas, se o líder enraivecido de uma ideologia terrorista está morto, a raiva e o ódio não estão! O mundo, especialmente o ocidente, sabe que tem de continuar vigilante, porque o terror internacional, o fanatismo, o radicalismo, e a crueldade mais feroz não acabaram!
Assustador foi o comentário curto e seco do Kremlin, à morte de Bin Laden: “ A vingança é inevitável para todos os terroristas.”
E, porque sabemos que a ameaça de uma devastadora retaliação não pode ser ignorada, todos os países de boa-fé, têm, imperativamente, de continuar a conjugar esforços, talvez redobrados, para combater o flagelo do extremismo global!
Como diz Nietzsche, o que revolta no sofrimento não é o sofrimento, em si, mas a sua falta de sentido! E, o terrorismo, causando tanta dor e tanta destruição, não tem sentido!
Mas, agora, é tempo de regozijo e, como Obama, orgulhosamente, disse a uma Nação emocionada: Justice has been done!
"So Americans understand the costs of war.Yet as a country,we will never tolerate our security being threatened, nor stand idly by when our people have been killed.We will be relentless in defence of our citizens and our friends and allies....We will be true to the values that make us who we are. And on nights like this one, we can say to those families who have lost loved ones to Al-Qaeda's terror:Justice has been done."
(From Obama`s speech)
MC
A sua morte é uma vitória para os Estdos Unidos e para o mundo e demonstrou que este tipo de crimes não podem ficar impunes, demore o tempo que demorar a vingá-los.
Foram precisos dez anos de busca incessante, de trabalho árduo, de avanços e recuos na perseguição deste monstro, para que o povo Americano pudesse expurgar o dia mais trágico e o atentado mais nefando da sua História!
Mas, se o líder enraivecido de uma ideologia terrorista está morto, a raiva e o ódio não estão! O mundo, especialmente o ocidente, sabe que tem de continuar vigilante, porque o terror internacional, o fanatismo, o radicalismo, e a crueldade mais feroz não acabaram!
Assustador foi o comentário curto e seco do Kremlin, à morte de Bin Laden: “ A vingança é inevitável para todos os terroristas.”
E, porque sabemos que a ameaça de uma devastadora retaliação não pode ser ignorada, todos os países de boa-fé, têm, imperativamente, de continuar a conjugar esforços, talvez redobrados, para combater o flagelo do extremismo global!
Como diz Nietzsche, o que revolta no sofrimento não é o sofrimento, em si, mas a sua falta de sentido! E, o terrorismo, causando tanta dor e tanta destruição, não tem sentido!
Mas, agora, é tempo de regozijo e, como Obama, orgulhosamente, disse a uma Nação emocionada: Justice has been done!
"So Americans understand the costs of war.Yet as a country,we will never tolerate our security being threatened, nor stand idly by when our people have been killed.We will be relentless in defence of our citizens and our friends and allies....We will be true to the values that make us who we are. And on nights like this one, we can say to those families who have lost loved ones to Al-Qaeda's terror:Justice has been done."
(From Obama`s speech)
MC
segunda-feira, 2 de maio de 2011
Hoje...
Ontem, como sempre, senti-me uma mãe feliz e abençoada! E, também, agradecida às minhas duas filhas, preciosas âncoras da minha vida, pelo amor, pela alegria, pela partilha do pensamento, dos risos e das lágrimas!
Uma mãe sente-se mãe, todos os dias, todas as horas, todos os minutos...
Mas,hoje, especialmente hoje, sinto-me uma menina pequenina e frágil que queria poder aconchegar-se, também ela, no colo morno e doce da mãe e adormecer, serena, na suavidade cristalina da velha canção de ninar!
Sou uma mulher madura que ainda brinca no baloiço.
Sou uma menina de salto alto, que ri e cora.
Sou uma mulher que decide, mas que também balança.
Sou uma menina cansada que, às vezes, grita e chora!
MC
(Hoje deu-me para isto! Podia ser pior...)
Uma mãe sente-se mãe, todos os dias, todas as horas, todos os minutos...
Mas,hoje, especialmente hoje, sinto-me uma menina pequenina e frágil que queria poder aconchegar-se, também ela, no colo morno e doce da mãe e adormecer, serena, na suavidade cristalina da velha canção de ninar!
Sou uma mulher madura que ainda brinca no baloiço.
Sou uma menina de salto alto, que ri e cora.
Sou uma mulher que decide, mas que também balança.
Sou uma menina cansada que, às vezes, grita e chora!
MC
(Hoje deu-me para isto! Podia ser pior...)
domingo, 1 de maio de 2011
Mãe
Com estes três lindíssimos poemas, aqui fica a minha homenagem a todas as Mães do mundo e a todos os filhos que as amaram e as amam e foram e são abençoados com o infinito, puro e destemido amor delas!
Os filhos são, para as mães, a âncora das suas vidas.
"Freda"- Sófocles
MC
Mãe
No mais fundo de ti
Eu sei que te traí, mãe.
Tudo porque já não sou
O menino adormecido
No fundo dos teus olhos.
Tudo porque ignoras
Que há leitos onde o frio não se demora
E noites rumorosas de águas matinais.
Por isso, às vezes, as palavras que te digo
São duras, mãe,
E o nosso amor é infeliz.
Tudo porque perdi as rosas brancas
Que apertava junto ao coração
No retrato da moldura.
Se soubesses como ainda amo as rosas,
Talvez não enchesses as horas de pesadelos.
Mas tu esqueceste muita coisa;
Esqueceste que as minhas pernas cresceram,
Que todo o meu corpo cresceu,
E até o meu coração
Ficou enorme, mãe!
Olha - queres ouvir-me? -
Às vezes ainda sou o menino
Que adormeceu nos teus olhos;
Ainda aperto contra o coração
Rosas tão brancas
Como as que tens na moldura;
Ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
No meio do laranjal...
Mas - tu sabes - a noite é enorme,
E todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
Dei às aves os meus olhos a beber.
Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo as rosas.
Boa noite. Eu vou com as aves.
Eugénio de Andrade
Palavras para a Minha Mãe
mãe, tenho pena. esperei sempre que entendesses
as palavras que nunca disse e os gestos que nunca fiz.
sei hoje que apenas esperei, mãe, e esperar não é suficiente.
pelas palavras que nunca disse, pelos gestos que me pediste
tanto e eu nunca fui capaz de fazer, quero pedir-te
desculpa, mãe, e sei que pedir desculpa não é suficiente.
às vezes, quero dizer-te tantas coisas que não consigo,
a fotografia em que estou ao teu colo é a fotografia
mais bonita que tenho, gosto de quando estás feliz.
lê isto: mãe, amo-te.
eu sei e tu sabes que poderei sempre fingir que não
escrevi estas palavras, sim, mãe, hei-de fingir que
não escrevi estas palavras, e tu hás-de fingir que não
as leste, somos assim, mãe, mas eu sei e tu sabes.
José Luís Peixoto, in "A Casa, a Escuridão"
Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Tenho medo da vida, minha mãe.
Canta a doce cantiga que cantavas
Quando eu corria doido ao teu regaço
Com medo dos fantasmas do telhado.
Nina o meu sono cheio de inquietude
Batendo de levinho no meu braço
Que estou com muito medo, minha mãe.
Repousa a luz amiga dos teus olhos
Nos meus olhos sem luz e sem repouso
Dize à dor que me espera eternamente
Para ir embora. Expulsa a angústia imensa
Do meu ser que não quer e que não pode
Dá-me um beijo na fonte dolorida
Que ela arde de febre, minha mãe.
Aninha-me em teu colo como outrora
Dize-me bem baixo assim: - Filho, não temas
Dorme em sossego, que tua mãe não dorme.
Dorme. Os que de há muito te esperavam
Cansados já se foram para longe.
Perto de ti está tua mãezinha
Teu irmão que o estudo adormeceu
Tuas irmãs pisando de levinho
Para não despertar o sono teu.
Dorme, meu filho, dorme no meu peito
Sonha a felicidade. Velo eu
Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Me apavora a renúncia. Dize que eu fique
Afugenta este espaço que me prende
Afugenta o infinito que me chama
Que eu estou com muito medo, minha mãe
Vinicius de Moraes
Os filhos são, para as mães, a âncora das suas vidas.
"Freda"- Sófocles
MC
Mãe
No mais fundo de ti
Eu sei que te traí, mãe.
Tudo porque já não sou
O menino adormecido
No fundo dos teus olhos.
Tudo porque ignoras
Que há leitos onde o frio não se demora
E noites rumorosas de águas matinais.
Por isso, às vezes, as palavras que te digo
São duras, mãe,
E o nosso amor é infeliz.
Tudo porque perdi as rosas brancas
Que apertava junto ao coração
No retrato da moldura.
Se soubesses como ainda amo as rosas,
Talvez não enchesses as horas de pesadelos.
Mas tu esqueceste muita coisa;
Esqueceste que as minhas pernas cresceram,
Que todo o meu corpo cresceu,
E até o meu coração
Ficou enorme, mãe!
Olha - queres ouvir-me? -
Às vezes ainda sou o menino
Que adormeceu nos teus olhos;
Ainda aperto contra o coração
Rosas tão brancas
Como as que tens na moldura;
Ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
No meio do laranjal...
Mas - tu sabes - a noite é enorme,
E todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
Dei às aves os meus olhos a beber.
Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo as rosas.
Boa noite. Eu vou com as aves.
Eugénio de Andrade
Palavras para a Minha Mãe
mãe, tenho pena. esperei sempre que entendesses
as palavras que nunca disse e os gestos que nunca fiz.
sei hoje que apenas esperei, mãe, e esperar não é suficiente.
pelas palavras que nunca disse, pelos gestos que me pediste
tanto e eu nunca fui capaz de fazer, quero pedir-te
desculpa, mãe, e sei que pedir desculpa não é suficiente.
às vezes, quero dizer-te tantas coisas que não consigo,
a fotografia em que estou ao teu colo é a fotografia
mais bonita que tenho, gosto de quando estás feliz.
lê isto: mãe, amo-te.
eu sei e tu sabes que poderei sempre fingir que não
escrevi estas palavras, sim, mãe, hei-de fingir que
não escrevi estas palavras, e tu hás-de fingir que não
as leste, somos assim, mãe, mas eu sei e tu sabes.
José Luís Peixoto, in "A Casa, a Escuridão"
Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Tenho medo da vida, minha mãe.
Canta a doce cantiga que cantavas
Quando eu corria doido ao teu regaço
Com medo dos fantasmas do telhado.
Nina o meu sono cheio de inquietude
Batendo de levinho no meu braço
Que estou com muito medo, minha mãe.
Repousa a luz amiga dos teus olhos
Nos meus olhos sem luz e sem repouso
Dize à dor que me espera eternamente
Para ir embora. Expulsa a angústia imensa
Do meu ser que não quer e que não pode
Dá-me um beijo na fonte dolorida
Que ela arde de febre, minha mãe.
Aninha-me em teu colo como outrora
Dize-me bem baixo assim: - Filho, não temas
Dorme em sossego, que tua mãe não dorme.
Dorme. Os que de há muito te esperavam
Cansados já se foram para longe.
Perto de ti está tua mãezinha
Teu irmão que o estudo adormeceu
Tuas irmãs pisando de levinho
Para não despertar o sono teu.
Dorme, meu filho, dorme no meu peito
Sonha a felicidade. Velo eu
Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Me apavora a renúncia. Dize que eu fique
Afugenta este espaço que me prende
Afugenta o infinito que me chama
Que eu estou com muito medo, minha mãe
Vinicius de Moraes
Subscrever:
Mensagens (Atom)