domingo, 6 de dezembro de 2009

Uma vida

O quarto estava escuro, cheirava a mofo, a suor, a corpo mal lavado e a doença.
No meio, sobressaía a cama, onde mal se vislumbrava um vulto, sob as cobertas enxovalhadas.
Marta aproximou-se. Sobre a almofada, salpicada de nódoas de sangue e de pus, descansava uma cabeça mirrada, com o cabelo fino e ralo, em desordem, o rosto desfigurado, a pele amarela e enrugada. Na dobra do lençol encardido, descansava uma mão grande, descarnada, coberta de manchas castanhas.
Marta debruçou-se sobre a cama e viu uns olhos escuros, brilhantes de febre, fixarem-se nos seus. A vida que ainda teimava resistir, naquele corpo em ruínas, parecia ter-se concentrado, naqueles olhos remelosos, com pálpebras vermelhas e purulentas.
Ao inclinar-se, Marta quase pousou a mão no lençol áspero e os dedos esguios e ossudos, com unhas compridas, como garras, esgravataram, de leve, numa tentativa aflita para a alcançarem. Ela retirou a mão bruscamente, assustada e com repugnância.
Cheirava a urina infecta, aos fluídos escuros e pútridos que enchiam sacos pendurados ao lado da cama e, sobretudo, cheirava a abandono e a solidão!
Os olhos escuros, brilhantes de febre continuavam fixos nela. Seria num apelo ou, seria aquele, um último lampejo de maldade?
Ela sentou-se, recostou-se no sofá duro e desconfortável e os olhos vermelhos, orlados de pus, fecharam-se devagarinho...

Marta era a rapariga mais bonita do bairro. Alegre, ladina e estuante de vida, tinha uma graça e uma beleza que despertava acesas paixões.
António era um rapaz sem grandes atractivos físicos, calado, teimoso e, diziam, com mau feitio.
No dia que o conheceu, Marta apaixonou-se, irremediavelmente, por ele que, em silêncio, já há muito, morria de amores por ela!
Eram, no entanto, tão diferentes, que aquele namoro foi um espanto, para todos.
Marta tentou ajustar o corpo ao sofá e, recordou, com umestremecimento, o dia do casamento: um dia bonito e luminoso! Um dia de rosas e de alegres girassóis! Girassóis altos, radiosos, vibrantes de cor, virados para a luz! Mil sóis a brilharem só para ela!
Foram felizes mas, o nascimento do filho, o Ruizinho, marcou um subtil ponto de viragem no casamento, como se um dos nós que os prendia, se tivesse tornado lasso ou se tivesse mesmo desatado.
E, o António começou a mudar! Tornou-se ainda mais calado, mais frio, mesmo irascível! Distanciou-se e fechou-se num mundo só dele!
A vida estava cada vez mais dificil. António era ambicioso, queria ser rico e decidiu ir trabalhar para a África do Sul, em busca de fortuna!
A sua partida, se, até certo ponto, foi um alívio, foi também uma tristeza! Ficara um vazio. Abrira-se no coração de Marta um buraco pequenino, insistente, incomodativo! Era talvez saudade! Apesar de tudo!
Ela escrevia-lhe muitas vezes. Ele, só de vez em quando, escrevia umas linhas e mandava-lhe algum dinheiro! Que, mesmo sendo pouco, era uma dádiva.
Os dias arrastavam-se. Marta trabalhava numa fábrica e, ao Sábado, fazia limpeza em casa de uma das patroas. Sentia-se cansada mas não lhes faltava nada e o Ruizinho era um bálsamo e a sua companhia.
Quatro anos depois, o António escreveu-lhe a propôr-lhe que fosse ter com ele a África do Sul, onde, dizia, tinha, agora, uma bonita fazenda e vivia bem.
Com o coração a transbordar de alegria, tudo, em seu redor, se transformou num campo vasto de girassóis altos, radiosos, vibrantes de cor, virados para a luz. Mil sóis a brilharem, de novo, só para ela!
E aquela carta fria, quase formal, fez-se um poema, fez-se um hino, fez-se uma esplendorosa sinfonia!
Marta embarcou com o filho, cheia de esperança e de sonhos! O Ruizinho tinha crescido, era um menino desenvolto, bonito e inteligente e o pai iria, certamente, gostar muito dele!
A viagem de avião foi longa e penosa! Fechada naquele pássaro de aço, enorme, tolhida numa teia densa, de medo e de insegurança, do que iria encontrar, quase se arrependeu de ter saído da sua terra!

Já no aeroporto de Johannesburg, Marta, ainda que ligeiramente apreensiva, desembarcou com o coração a repicar de esperança e ansiosa por se lançar nos braços fortes de António! Para começarem uma vida nova, num país novo, tão diferente, tão colorido, tão luminoso, a cheirar a vida e a sol!
No aeroporto, de mão dada com o Ruizinho, sentiu-se, subitamente, perdida e inquieta, porque não via o António, em lado nenhum.
Começava a entrar em pânico, quando um homem mestiço, ainda jovem, se aproximou dela e perguntou: “ D. Marta Medeiros?”
“ Sim, sou eu”, respondeu com espanto. “ Eu sou o João Chipenda, o capataz, da fazenda da D. Mary Anne Tyler e sou eu que vou levar a senhora e o menino, até lá. O sr. Medeiros não pôde vir.”
Um imenso desapontamento estampou-se-lhe no rosto bonito e uma tremenda confusão e uma infinita tristeza desceram sobre ela, envolvendo-a num manto de gelo que a paralisou!
“ Não tenha receio,D. Marta! Ainda hoje, estaremos na fazenda!”, disse João com simpatia. Ela agradeceu e pareceu-lhe vislumbrar, nos olhos daquele desconhecido, uns laivos de comiseração que a assustaram.
A viagem de jeep foi longa, parecia nunca mais acabar e o nome Mary Anne Tyler pairava no seu cérebro, como uma nuvem negra a ameaçar temporal e desgraça!
Quando chegaram a Bethlehem, Marta estava exausta, tinha o corpo dorido, a cabeça meio-zonza e uma expectante ansiedade oprimia-lhe o coração.
Então, avistou António na enorme varanda, de uma casa ampla e ensolarada.
“O meu marido, a minha nova casa, ali, já tão perto, à minha espera!”, pensou Marta, com alegria e nervosismo, a tristeza e o cansaço já esquecidos!
Como uma noiva, na noite do casamento, Marta tremia de embaraço e de excitação, antecipando, numa trepidação de menina apaixonada, os abraços e os beijos do marido!
Mas, António recebeu-a friamente e ignorou o filho a quem não dirigiu um sorriso ou, uma palavra.
A seu lado apareceu uma mulher forte, sardenta e loira que ele abraçou pela cintura e que a fixou, curiosa, com uns olhos inexpressivos, de um azul deslavado!
Era Mary Anne, a mulher com quem António vivia e a quem parecia amar.
E, mesmo ali, Marta ficou a saber que seria uma espécie de governanta: orientaria e ajudaria na lida da casa e, como boa cozinheira que era, ocupar-se-ía da preparação das refeições.
Atónita, coberta de suor, morta de humilhação, destroçadas as suas expectativas de dias felizes, gritou que era ela a mulher dele mas, António, empertigado e arrogante, voltou-lhe as costas.
Estupidificada de assombro e de dor, Marta deixou-se levar para o quarto que partilharia com o filho, nos anexos da casa grande.
Sozinha, presa numa revolta brutal que parecia envenená-la, Marta, numa agonia, vomitou uma aguadilha amarga, verde e amarela, e chorou! Chorou incontrolavelmente!

Mary Anne era uma mulher branda e desligada, que parecia desconfortável na presença dela. Sentada na varanda, sombreada por exuberantes buganvílias, que se entrelaçavam, numa explosão de cor, gostava de ler avidamente os jornais e as revistas que recebia, regularmente, de Johannesburg, de passar um tempo infinito a arranjar e a pintar as unhas e jogar a canasta, duas vezes por semana, com três amigas, que viviam em fazendas vizinhas. Não era simpática mas, não era autoritária, nem exigente.
António, porém, parecia não ver Marta, não lhe dirigia palavra e, quando o fazia, era ríspido, sobranceiro e rude.
Com Mary Anne era, ostensivamente, terno, solícito, mesmo deferente!
O filho foi obrigado a trabalhar na fazenda e não ía à escola. Marta trabalhava incansavelmente, preparava refeições para os dois e para os muitos amigos que estavam sempre a receber. A qualidade e variedade da sua comida tornaram-se conhecidas e muito apreciadas! Contudo, não tomava as refeições que preparava, à mesa com eles, o que até era uma benesse, nem recebia qualquer salário, o que era uma injustiça!
Soube, entretanto, como presumira, que a fazenda era de Mary Anne. Depois da morte do marido, num terrível acidente, nunca inteiramente esclarecido, António, que trabalhava na fazenda, insinuara-se, assumira-se, um ano mais tarde, como senhor da casa e soubera tornar-se imprescindível, na gestão dos negócios!
Marta sentia-se como um pequeno rato que, imprudente e indefeso, mordera o pedacinho de queijo que servia de engodo e ficara, mortalmente, preso na ratoeira!
O isco que ela, sôfrega, mordera, tinha sido a esperança de ser feliz, ter uma vida famíliar equilibrada, feita de afecto, de alegria e de companheirismo! E, enfeitada de girassóis!
E, como abundavam girassóis, naquela terra! Girassóis altos, radiosos, vibrantes de cor, virados para a luz! Mas, esses mil sóis amarelos não brilhavam para ela!
Marta não tinha dinheiro nem conhecia ninguém a quem pudesse pedir ajuda. Nem mesmo em Portugal!
O ódio e o nojo que sentia por aquele homem cresciam... cresciam... Um ódio profundo que lhe preenchia a única fantasia que lhe era permitido ter: vê-lo morto!
Desejou-lhe, todos os dias, ardentemente, a morte! Uma morte lenta, dolorosa, solitária! Pensou, até, matá-lo! Mas, abafou esse pensamento negro, dentro de si: matá-lo seria perder-se e perder, magoar o filho! E isso, nunca!
Entretanto, António parecia, agora, segui-la, guloso, com os olhos. Aparecia-lhe, de repente, nos corredores, na cozinha, pelos cantos da casa. Quando a apanhava sozinha, agarrava-a, tentava apalpar-lhe os seios, abrir-lhe a blusa e meter-lhe a mão por baixo da saia, tocando-a, conspurcando-a!
Enojada, Marta gritava e, como uma enguia enfurecida, fugia-lhe por entre os dedos.
Um dia, ao entardecer, quando ela, como de costume, ía a entrar no quarto, para refrescar o rosto e dar um jeito ao cabelo, ele surgiu-lhe de um canto, prendeu-a, com violência e fechou a porta à chave. Marta gritou. António, meio louco, fora de si, talvez bêbedo, continuou a prendê-la entre os seus braços fortes, bateu-lhe para a dominar e rasgou-lhe a blusa. “ És minha, és minha e faço de ti e contigo o que eu quiser, ouviste?”
Estarrecida, Marta gritou com a força de uma desmedida raiva e ele tapou-lhe a boca com a mão, sufocando-a.
De repente, ouviu-se a voz do João, o capataz, gritar: “ D. Marta, o que se passa? Abra a porta! Mrs. Mary Anne Tyler anda a passear no jardim, aqui perto! Vou chamá-la!”
António, subitamente quieto, olhou esgazeado para a porta, largou-a e atirou-a, violentamente para o chão. Depois, como um animal acuado, perdeu-se, cobarde e rasteiro, na escuridão que, entretanto, caíra.
Ainda no chão, Marta recusou aceitar que aquele horror, aquele assalto nojento, tinha acontecido a ela. E, de repente, teve a estranha sensação de se ter perdido de si própria e de, num total desligamento, ter abandonado o corpo e pensar que, aquela mulher humilhada que, de um canto do quarto, via estendida, a seus pés, ferida e meio-desnuda, não ser ela!
Aquilo era um invólucro vazio que talvez já tivesse sido ela... Aquele podia ter sido o seu corpo mas, ela já não estava ali! Então ela, a essência dela, onde estava?
Desmaiou e tudo se desvaneceu num imenso caos!
Mrs. Mary Anne Tyler, naturalmente, nunca apareceu e nunca soube de nada!

Uns dias depois, João perguntou-lhe: “ D. Marta, a senhora quer voltar para Portugal?” A chorar, ela respondeu baixinho: “ Quero! Mas, João, como posso pensar em voltar se não tenho dinheiro, nem conheço ninguém que me possa ajudar?”
“ Vamos ver, D. Marta! Tenha calma e não tenha receio! Quero que saiba que estou sempre atento e por perto! Conte comigo, com a minha ajuda e protecção!”
Na semana seguinte, uma irmã do João e o marido levaram-nos , de noite, em segredo, a Johannesburg e meteram-nos num avião, para Lisboa.
Marta nunca soube como o João arranjou o dinheiro para comprar os bilhetes, como os comprou, vivendo eles nos recônditos do país, assim como também nunca mais teve notícias dele.
Gostava de pensar naquele rapaz mestiço, que tanto a ajudara , como se ele fosse um anjo, uma daquelas pessoas que atravessam os caminhos mais negros e mais tortuosos, dos mais infelizes, para os suavizar, e para os iluminar e enfeitar com mil girassóis, com mil sóis amarelos!
Já em Portugal, nunca contou a ninguém o que se passara em Bethlehem, a não ser à Clara, sua amiga desde sempre e viúva do irmão do António, que morrera uns meses antes.
Marta não voltou para a fábrica. Foi trabalhar para a loja do sr. Clemente, um solteirão simpático e educado, com quem começou a viver, tempos depois. Ele amou-a e foi, para o Ruizinho, o pai que ele, verdadeiramente, nunca tinha tido. Educou-o, acompanhou-o e ajudou-a a fazer dele, o homem de bem que era hoje.
Clemente fora uma dádiva preciosa que transformou o deserto árido que era a sua vida, num jardim imenso de ternura e de paz.
Tinha sido a Clara que lhe dissera, uma semana antes, que António tinha regressado ao país, há uns meses, vivia num quartito miserável, estava muito doente e pedira para vê-la.

Marta estremeceu como se acordasse de um medonho pesadelo e, antes de os ver, sentiu os olhos grandes, brilhantes de febre e orlados de pus, fixos intensamente, nela .
Não sentiu ódio, nem piedade, nem a compreensível satisfação, perante a morte lenta, dolorosa e solitária daquele homem desumano e perverso, carrasco feroz, de tantos dos seus sonhos!
Levantou-se, olhou-o uma vez mais e, friamente, com uma profunda indiferença, voltou-lhe as costas.
Nesse momento, numa voz, inesperadamente forte e rouca, o seu nome rasgou, num apelo desesperado, o silêncio pesado, doentio do quarto: “Marta!”
Parou, hesitou uma fracção de segundo mas não olhou para trás, continuou a andar e saiu!
Na rua, a luz quente e poderosa do sol entonteceu-a.
Encostou-se à parede e deixou que essa luz lhe aquecesse o corpo entorpecido e a alma, esgotada pelas recordações que acabara de exorcisar! Para sempre!
Respirou fundo e quase correu, ao encontro do Clemente, que a esperava, no carro, com um sorriso, onde brilhavam os mil sóis radiosos que lhe iluminavam os dias.


Nota: Este “conto” que pode parecer o enredo rocambolesco de uma telenovela mexicana, é quase inteiramente baseado no relato de uma vida, dolorosamente amassada com lágrimas, humilhações, perdas e cardos mas, também adoçada com amor, bondade, esperança e radiosos girassóis, que me foi feito, no hospital, já há uns anos, por uma doente, uma “ Marta”, já velhinha.

MC

domingo, 29 de novembro de 2009

Aniversário

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a.olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

Álvaro de Campos
Heterónimo de Fernando Pessoa

Gato que brincas na rua

Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.

Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.

Fernando Pessoa - Ortónomo

Tão cedo passa tudo quanto passa

Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.


* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * *
Ricardo Reis/ Ode
Heterónimo de Fernando Pessoa

Sim

Sim, sei bem
Que nunca serei alguém.
Sei de sobra
Que nunca terei uma obra.
Sei, enfim,
Que nunca saberei de mim.
Sim, mas agora,
Enquanto dura esta hora,
Este luar, estes ramos,
Esta paz em que estamos,
Deixem-me crer
O que nunca poderei ser


Ricardo Reis - Ode
Heterónimo de Fernando Pessoa

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Os animais e o circo

Nunca gostei de circo! Mesmo em criança, a cara pintada e as gargalhadas dos palhaços assustavam-me, as habilidades dos animais, selvagens ou não, entristeciam-me e o silvo do chicote e os gritos do domador revoltavam-me! Surpreendiam-me, aliás, os risos e os aplausos provincianos, das pessoas, à minha volta!
Os elefantes, os leões e os tigres sempre me pareceram desajustados e infelizes, naquele espaço reduzido, obrigados, nem sabia eu ainda, a poder de quanta tortura, a obedecer a ordens estúpidas e em completo desacordo com a sua natureza.
Não fui muitas vezes ao circo, mas lembro-me de ter pensado, maldosamente, como seria interessante se o feitiço se virasse contra o feiticeiro e o monumental elefante, num momento de pura rebeldia, pousasse, ainda que levemente, a patorra cilíndrica, obedientemente erguida, sobre a ousada menina, que de estendia, mesmo debaixo dela e o leão ou o tigre riscasse, numa súbita fúria e numa fracção de segundo, o sorriso alvar, da cara do domador!
Quem, amando e respeitando os animais, nunca teve um inconfessável pensamento, como este, a transbordar indignação, ao vê-los miseravelmente subjugados, para divertimento da populaça?
Sempre me ensinaram que os animais selvagens são seres nobres, livres, poderosos e imponentes, senhores absolutos de uma terra que é sua!
Assim, talvez porque nasci em África, sempre detestei vê-los, no circo, sujeitos a uma humilhante submissão, e espoliados da sua nobreza, e da sua dignidade!
Confrangia-me, igualmente, ver cães, pateticamente, vestidos com ridículos tutus e saloios arrebiques na cabeça, a dançarem mecanicamente, apenas apoiados nas patas traseiras!
Por tudo isto, aplaudi, com entusiasmo, a lei que aponta para o fim do uso dos animais, no circo, como fonte de entertenimento!
Embora ainda haja muito para fazer, em relação aos maus tratos e ao abandono dos animais, congratulo-me que, pelo menos nesta vertente, lhes seja, enfim, dada a protecção que lhes é devida e lhes seja reconhecido o respeito a que têm direito e os deixem viver, majestosos e tranquilos, no seu habitat natural!

MC

domingo, 15 de novembro de 2009

Sinead

A Sinead morreu!
A Sinead faz-me falta, Faz-me tanta falta!
Depois de ter estado comigo, mais de catorze anos, a Sinead morreu, no dia três, deste Novembro chuvoso e triste, e deixou-nos uma infinita saudade e um irremediável vazio!
Foi-me confiada, quando tinha seis meses, por uma amiga que não podia ter aquela cachorrinha linda mas, travessa e cheia de energia, no apartamento, onde vivia. Durante todo este tempo,connosco, ela foi uma dádiva de amor, de ternura e de alegria que nunca pude, nem poderei agradecer bastante!
A Sinead era uma Setter-irlandês, com uma pelagem ruivo-fogo, com reflexos de ouro, lindíssima! Tinha uns olhos escuros, expressivos e doces! Era uma cadelinha terna, delicada e generosa.
Gostava de correr, de brincar e adorava dormir, debaixo do pinheiro manso, no jardim.
Agora, já velhinha, não corria, passeava devagarinho, não brincava muito mas, abanava, contente e vigorosamente, a cauda, para dizer que nos amava e dormia, cada vez mais tempo, no seu cantinho preferido, no jardim.
A partir de uma certa idade, tornou-se muito frágil mas, com uma vontade, férrea, de viver, foi, corajosamente, ultrapassando todos os problemas de saúde, alguns bastante graves.
No dia três, já perdida, dei-lhe a última prova de amor e de respeito, que lhe podia dar: uma morte assistida, sem sofrimento, serena e digna, como lhe era devido! E, regada de lágrimas amargas!
Estive sempre com ela. Morreu nos meus braços, a minha filha, que ela adorava, e que tanto a acompanhou, a segurar-lhe, amorosamente, as mãozinhas felpudas.
A Sinead partiu e deixou-me, também, a eterna e aflitiva interrogação, inevitável perante a morte: será que lhe dei todo o amor e toda a atenção que ela merecia, ela que tanto nos deu, sem, em troca, nada pedir?
É que, se, seguramente, nunca se ama, nunca se cuida demais, a verdade é que, se calhar, nunca se ama e nunca se cuida, o suficiente! Não sei...
Como última homenagem, a Sinead foi cremada. Entregaram-me, dias depois, as cinzas dela, numa caixinha de madeira branca, com o nome gravado e, delicadamente, rematada com uma fitinha de cetim castanho.
A caixinha ainda está comigo! Um dia, as cinzas da Sinead vão repousar, para sempre, debaixo do pinheiro manso, onde ela gostava tanto de dormir umas sonecas e de preguiçar!
Mas, por estes dias, não! Por estes dias, ainda não...

MC