segunda-feira, 25 de julho de 2011

Para a Xica com amor...

Embora, na minha vida, seja apenas uma doce e indelével referência, a Xica, uma pequena e graciosa macaca, é, também, um dos mais belos e comoventes motivos da tela, onde vou registando, com tinta de luz ou de sombra, cada um dos meus dias!
Contudo, a tela a que a Xica realmente pertenceu e onde deixou gravada a marca da sua infinita dedicação, em pinceladas de amor, alegria e doçura, é outra, há muito tempo, impiedosamente, interrompida!

São outros, os animais queridos que fizeram e fazem parte da minha vida e, quando eu tiver cumprido a minha missão, e depositar, aos pés de Deus, a tela que, na urdidura dos dias, laboriosamente pintei, muitos serão os motivos coloridos, luminosos e macios que todos eles, ali terão deixado gravados, num esplendor de encanto, de dedicação e de ternura!
E, eles contribuirão, com a beleza pura do seu recorte, para a redenção de todos os pedaços negros, pantanosos, medonhos, dos meus desencontros comigo mesma, dos gritos mudos dos meus terrores, dos momentos amargos do meu desespero, das horas pungentes do meu cansaço!


Nasci em África. Uma África, então pacífica, bordada de mar, enfeitada de cores alegres e cintilantes, envolta em sol, rescendente de cheiros doces e fortes, num arrebatamento de pura beleza e de imensidão!
Nesse tempo, faziam-se, ao fim de semana, longos e deliciosos piqueniques, mato adentro, alegres pretextos para convívios de familiares e de amigos.
Num desses piqueniques, na Anha, ainda eu não era nascida, a minha Mãe viu e nunca mais perdeu de vista, o que ela pensou ser um macaco, ainda pequeno, solitário, meio escondido, fugidio, mas curioso e a seguir, interessado mas, à distância, a divertida reunião.
A certa altura, uns olhos grandes, escuros e redondos como contas, cruzaram-se com os olhos claros da minha Mãe. Olharam-se, mediram-se, entenderam-se e começou, então, um silencioso jogo de sedução e conquista.
Vencido o receio, uma mãozinha esguia, escura e felpuda, perdeu-se, confiante, numa outra, branca e fina que a acolheu ternamente. Ao cair da tarde, no regresso a casa, a pequena macaca, (afinal era uma menina ), que, decerto, se perdera do bando, já tinha um lar, uma família e um nome: Xica!

...

Uns dois anos mais tarde, nasci eu e lembro-me de, anos mais tarde, já crescida e a esbracejar aflita, num mar alteroso de tristeza e de saudade, ver fotografias, aquelas fotografias antigas, a preto e branco, com uma pequena margem branca, recortada, onde a minha Mãe sorria e a Xica, os olhos grandes, escuros e redondos, como contas e a boca rasgada num pretenso "sorriso" de dentes brancos, se sentava no seu ombro esquerdo e lhe abraçava o pescoço alto e fino, com a mãozinha esguia, escura e felpuda; noutras, as duas, de mãos dadas, olhavam, divertidas, uma para a outra, numa afectuosa cumplicidade; em algumas, já eu aparecia, risonha, ao colo de minha Mãe, enquanto, a Xica, no chão, agarrada à sua saia, olhava atenta e enternecida, quero crer, mas não tenho a certeza, para o bebé loiro e risonho que eu era.
Lembro-me, especialmente, de uma fotografia onde a Xica e a criança que fui, se sentavam, lado a lado, numa esteira. Convencida que era a menina mais bonita da minha rua, eu fixava, em pose, o fotógrafo que era, certamente, o meu pai, enquanto a Xica, com a mãozinha esguia, escura e felpuda pousada, no meu braço, se inclinava, para mim, como se me estivesse a contar um segredo divertido ou, se preparasse para me dar um beijo.
Mas, a fotografia de que eu sempre mais gostei, era aquela onde eu me aninhava, pequenina, nos braços macios de minha Mãe que sorria, com a Xica, empoleirada no seu ombro, a abraçar-lhe o pescoço alto e fino, ao mesmo tempo que, com o seu peculiar e rasgado "sorriso" de dentes brancos, transbordante de alegria, olhava, muito vaidosa, para o fotógrafo, com os olhos grandes, escuros e redondos como contas, a brilharem como estrelas!
Ainda que inconscientemente, sempre pressenti que, naquela fotografia, tinha ficado, para sempre registado, um desses raros e mágicos momentos, de suprema Felicidade que a vida, às vezes, generosamente, nos concede!

...

Quando eu tinha dois anos, a minha Mãe adoeceu gravemente e viajámos, à pressa, para o Continente, na vã esperança de a salvar...
...

A Xica e a Pequenina, a cadela enorme que, de pequenina só tinha o nome, lá ficaram,em África, entregues aos cuidados dos meus tios.
A Pequenina deixou de comer uns dias, sentiu, profundamente, a falta dos donos mas, recuperou. O instinto primário de conservação da vida foi mais forte do que o desamparo da ausência, do que a agonia da saudade!

A Xica, a macaquinha meio-selvagem, encontrada sozinha no mato, não!
Deixou-se ficar, teimosamente, sentada num recanto do jardim, com os olhos grandes, escuros e redondos como contas, à espera de minha Mãe.
Nunca mais comeu, nunca mais quis brincar, recusou, furiosa, sentar-se no ombro da minha tia e nunca mais saiu do recanto onde seria mais provável ver chegar, enfim, a luz que lhe iluminava a vida. Foi ficando cada dia mais débil, os olhos, sem expressão, cada vez maiores e mais redondos, criando entre ela e o mundo que não era o seu mundo, uma distância intransponível!
Uma manhã, dias depois, os meus tios encontraram a Xica estendida, imóvel, as mãozinhas esguias, escuras e felpudas, abertas num pungente abandono, o olhar vazio, transfixo. Tinha morrido!
A minha Mãe, que faleceu meses depois, nunca soube que a Xica, a macaquita indefesa que resgatara do mato, resgatando-a, assim, da fome, da solidão e do perigo, tinha desistido de viver, mergulhada na tristeza da sua falta, esgotada pela angustiante expectativa de a voltar a ver e abraçar!

...

... A Xica desistiu e deixou-se morrer, presa numa dolorosa teia de amargura e afundada no desespero de uma infinita saudade!
A Xica amou a minha Mãe, numa entrega total, sem limites!

Às vezes, nas minhas noites de insónia, como esta, imagino-as juntas, num jardim imenso, luminoso e perfumado: a minha Mãe sorrindo e a Xica, os olhos grandes, escuros e redondos como contas, para sempre feliz, sentada no seu ombro esquerdo, enquanto a abraça, amorosamente, coma mãozinha esguia, escura e felpuda, como na velha fotografia , a preto e branco, com uma pequena margem branca, recortada, mas onde, incompleta, ainda permanecem vazios, os braços de minha Mãe!


Nota: Sendo mães extremosas, só é possível tirar a cria a uma macaca, matando-a! Imagino hoje, como a minha Mãe deve ter sentido então, o desespero da mãe da Xica e dela própria, quando, desgraçadamente, se perderam uma da outra!
Mas, só assim, a Xica pôde ser uma benção de dedicação, de ternura e de alegria na nossa família, especialmente, para com a senhora de olhos claros, a quem dedicou, amorosamente, inteiramente, a sua vida!

3 comentários:

José Almeida da Silva disse...

Lindíssimo, este texto! Cheio de memórias, cheio de melancolia! À Xica, à Pequenina, à Mãe! Urdido na poesia dos afectos, o texto reescreve um passado que se torna presente trazendo à luz do dia uma história de amor e de morte,uma homenagem, e outra vez de amor.

Às vezes, a catarse impõe-se-nos para podermos continuar a viver.

Muitos parabéns e um abraço de imensa amizade.

A desalinhada disse...

Obrigada, querido Amigo! O Zé, não sei se se recorda, já tinha lido este texto que "ressuscitei", para colaborar com uma Associação de ajuda a animais abandonados, uma causa que me é muito cara! Mas este texto foi, é, uma catarse, realmente! A imagem da mãe, em perspectivas diversas, está, de facto, presente em muitos dos meus textos. O nosso amigo, sabe quem é, apercebeu-se disso e disse-me para fazer uma colectânea. Vamos ver!
Um abraço também de uma imensa amizade, admiração e muito grato pelas suas boas, lindas palavras.

redonda disse...

Muito triste e muito bonito.
um beijinho
Gábi