domingo, 15 de maio de 2016

Bata amarela - Regresso a Casa


Falei com ela na Segunda-feira. Ainda não tinha quarenta e cinco anos e estava muito doente. Uma doença feroz que, há muito tempo, a mantinha ali internada. Exausta, desligada e triste. Como se, perdida num amargo, desamparado negrume, estivesse a desistir.
Nesse dia,  surpreendeu-me.   Pareceu-me diferente. Com um brilhozinho nos olhos, disse-me que se sentia melhor e que, talvez em breve, fosse para casa. Falou-me da alegria de voltar para casa e, no rosto esquálido, perpassou uma breve cintilação de contida ansiedade. Voltar para casa. Para a família, para o jardim, para o cão.

Sorriu de leve e estendeu-me a mão magra e pálida.
Com as palavras sufocadas na garganta, obriguei-me, também, a sorrir e prendi-lhe a mão emaciada, nas minhas, como se a abraçasse. Na sua quase absoluta fragilidade, aquele era o abraço possível.

Na Quarta-feira, regressou a casa. Não à casa onde se enleavam os laços e se atavam e desatavam os nós da sua vida; não, onde no jardim nu, a terra pesada e escura se revolve e se prepara para uma profusa explosão de veludo, de cor, e de perfume; não, onde o cão,  ansioso,  ainda a espera para, num abraço, lhe contar o quanto as saudades dela o consumiram e doeram.
Mas, como previu, regressou a Casa.

 
Na minha bata amarela tenho dois bolsos. Num, guardo palavras, afagos, sorrisos e pequenas mentiras que não fazem mal e, talvez, possam dar algum alento, não sei. E, sobretudo, guardo silêncios. Aqueles delicados silêncios, de que também são feitas as palavras e, atrás dos quais, elas se escondem e se diluem, quando são de mais.

No outro bolso, guardo as perdas. Em dezasseis anos, são já  muitas,  as perdas.  Sentidas, todas. Dolorosas, algumas.
Ela lá está, serena, aconchegada, no bolso da minha bata amarela. Uma lembrança, cada dia, mais ténue. Um fio invisível, infinito, de ausência.

MC

1 comentário:

Elza disse...

Texto esmagador, tão doloroso, como belo, como é a vida. De uma forma ou de outra, sempre regressaremos a casa, e não sózinhos, como pensávamos, podemos simplesmente estar no bolso de uma bata amarela de alguém especial que nos guardou. Obrigada pela partilha e um beijinho com saudades. Pi