quarta-feira, 29 de junho de 2011

Que parem os relógios, cale o telefone, ...

Diz-se que as pessoas nascidas sob o signo do Sol são bonitas, talentosas, estuantes de encanto e de alegria. São pessoas vibrantes, amadas por multidões e que brilham intensamente, com luz própria, como a Estrela que os rege! A sua passagem por este mundo é, porém, fugaz! Talvez porque os caminhos tortuosos, poeirentos, sombrios que nos são dados percorrer não suportem a sua intensa vibração e a sua luminosidade! Esplendorosa!

A sua partida é, geralmente, súbita, inesperada e deixa, naqueles que os rodeiam, os amam e os admiram, um desolado vazio, um doloroso espanto, uma saudade aturdida, que o rasto cristalino da sua luz ameniza e consola.

Resplandecem, certamente, noutras paragens.

Lembro, naturalmente aqui, o Angélico que nos deixou ontem, o Carlos Paião, o Francisco Adam, o Feher, mas também todos os jovens bonitos e promissores cujos sonhos a morte interrompeu estupidamente, impiedosamente!

Algumas destas estrelas fugazes tornam-se mitos. Estou a lembrar-me de James Dean, por exemplo.



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BLUES FÚNEBRES

Que parem os relógios, cale o telefone,

jogue-se ao cão um osso e ele não ladre mais,

que emudeça o piano e o tambor sancione

a vinda do caixão com seu cortejo atrás.

Que os aviões, gemendo acima em alvoroço,

Escrevam contra o céu o anúncio: ele morreu.

Que as pombas guardem luto – um laço no pescoço –

e os guardas usem finas luvas cor-de-breu.

...

...

...

...

É hora de apagar estrelas – são molestas –

Guardar a lua, desmontar o sol brilhante,

De despejar o mar, jogar fora as florestas,

Pois nada mais há de dar certo doravante.


W. H. Auden (1907-1973) em Poesia Alheia, 124 Poemas Traduzidos, tradução e organização de Nelson Archer, Editora Imago, 1998.


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LISURA

Entras na morte,

como se entra em casa,

desvestindo a carne,

pondo teus chinelos

e pijama velho.

Entras na morte,

como alguém que parte

para uma viagem:

não se sabe o norte

mas começa agora.

Entras na morte,

sem escuros,

sem punhais ocultos

sob o teu orgulho.

Entras na morte,

limpo

de cuidados breves;

como alguém que dorme

na varanda enorme,

entras na morte.

Carlos Nejar , em Obra Poética, Nova Fronteira, 1980.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

" O ano da morte de Ricardo Reis" - José Saramago

Gosto da comparação do livro, "O Ano da Morte de Ricardo Reis" de José Saramago, a um labirinto cerrado, tortuoso, mas fascinante, repleto de citações, referências históricas, aqui uma ode de Ricardo Reis, ali um poema de Fernando Pessoa, onde adorei perder-me para me reencontrar, literariamente mais rica, mas também pequenina e reverente perante a genialidade e a imaginação poderosa de um grande Escritor! Com a leitura deste livro, confesso que me "reconciliei", definitivamente, com José Saramago! E, fiquei a gostar, ainda mais, de Ricardo Reis.
Este é um texto magistralmente estruturado, profundamente denso, poético, irónico, labirintico, que tem de ser lido cuidadosamente, e tão ardilosamente assimilado, como foi ardilosamente entretecido, e que começa com um verso dos Lusíadas “ Aqui o mar começa e a terra principia” e termina com a frase "Aqui onde o mar se acabou e a terra espera."


“Mas será que é possível escapar deste complicado labirinto que é esta obra? Será possível encontrar a saída da labinrítica cidade de Lisboa (“descendo pela Rua do Norte chegou ao Camões, era como se estivesse dentro de um labirinto que o conduzisse sempre ao mesmo lugar”), encontrar sentido nas mulheres (“um enigma, um quebra-cabeças, um labirinto, uma charada”), no homem (“o homem, claro está, é o labirinto de si mesmo.”) e até do mundo (caracterizado pelo anúncio do Freire Gravador: “este anúncio é um labirinto, um novelo, uma teia.”)?”


A teia que constitui este livro começa a urdir-se, quando Ricardo Reis chega a Lisboa, vindo do Brasil, no barco Highland Brigade, uma alusão, talvez, à barca de Caronte, presumindo que ele já não está no mundo dos vivos, no ano em que Fernando Pessoa morreu e cujo túmulo ele faz questão de visitar.
Se pensarmos que Ricardo Reis nunca existiu, compreendemos a dificuldade do Autor na constução do romance, que pretende verosímil, integrando a sua acção na realidade histórica da época, um mundo a debater-se num tremendo conflito que prenuncia uma nova guerra, tempos de ditadura, de ditadores e de intensa convulsão!
É aqui, na urdidura da vida de Ricardo Reis, nesse ano da sua morte, que brilham, a grande altura, o génio de José Saramago e o seu gigantesco poder imaginativo.
Muito interessantes as conversas entre Ricardo Reis e Fernando Pessoa morto, que o visita, enquanto, como diz, lhe é possível, enquanto não se distancia e parte para sempre.

É difícil desembaraçar essa teia intricada, mas deixo aqui aberto um caminho laboriosamente percorrido por Regina Helena Dvorzak, uma das trilhas mais sinuosas desse labirinto e que se refere a um dos aspectos mais complexos da obra: O TEMPO.

Ricardo Reis inicia sua jornada em Lisboa esquecendo-se de devolver o livro à biblioteca do navio, depois disso, suas lembranças são poucas, seu afastamento do mundo quase completo, tudo é um labirinto, seu tempo de vida encerrou-se com a morte de Fernando Pessoa. Seu percurso no romance é a aventura de um morto em busca de si mesmo, um mesmo que não existe mais.
Ao tomar consciência de que também não existe mais, Ricardo Reis vai embora com Fernando Pessoa, levando “The god of the labyrinth”, mesmo sabendo que não poderá ler para, como ele mesmo diz, deixar o mundo aliviado de um enigma. Que enigma? Quem sabe a vida, quem sabe a morte.

O tempo, que ficara suspenso no Hotel Bragança, retoma seu curso na consciência da morte:

“Meia hora passou assim, ouviram-se as pancadas de um relógio no andar de cima, É estranho, pensou Ricardo Reis, não me lembrava deste relógio, ou esqueci-me dele depois de o ter ouvido pela primeira vez.” (RR, p. 427)

Os tempos se agregam, seja o tempo de inverno, frio, que remete ao passado longínquo e às lembranças que praticamente inexistem; seja o tempo do relógio que lembra a personagem que já é hora de ir; seja o tempo interior desta mesma personagem, um tempo de espera ou de preparação para sua retirada final.

Tempos em que vivemos, tempos que são um só, aquele tempo que, parafraseando Borges, é a substância de que somos todos feitos.


“A multiplicidade da personagem Ricardo Reis é lembrada durante toda a narrativa, seus duplos participam de sua despedida final até à sua integração definitiva em Fernando Pessoa, o único que realmente é parte dele ou de quem ele é parte.
O narrador comenta o mal estar de Ricardo Reis ao sair do cemitério em visita ao túmulo de Fernando Pessoa. Talvez o choque de se deparar com seu próprio fim tenha resultado neste mal estar:
Enquanto ia subindo a rua, devagar, sentiu dissipar-se a náusea, apenas lhe ficava uma vaga dor de cabeça, talvez um vago na cabeça, como uma falta, um pedaço de cérebro a menos, a parte que me coube.” (RR, p. 37)”


Não quero, não posso dar por terminada esta deambulação por um livro de que gostei particularmente, e onde perpassa uma Lídia, prosaica criada no hotel, que o Poeta escolheu para se instalar, e mais tarde sua amante, sem transcrever esta ode magnífica de Ricardo Reis, o heterónimo mais clássico, de Fernando Pessoa:


Vem Sentar-te Comigo, Lídia, à Beira do Rio

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassosegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podiamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento —
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim — à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço.

Ricardo Reis, in "Odes"
Heterónimo de Fernando Pessoa


Ricardo Reis é o Poeta da Razão e de quem Pessoa disse:

“ Pus em Ricardo Reis a minha disciplina vestida da música que lhe é própria.
Reis escreve melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado.”


Nota: Homenagem singela a José Saramago, que faz um um ano após a sua morte.

MC

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Aniversário do Poeta

Homenagem ao Poeta Fernando Pessoa, no dia do seu aniversário!

"Tão cedo passa tudo quanto passa!
....
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada."


A vida é breve, fugaz, o seu ciclo inevitável e tudo passa tão cedo. Mas, às vezes, na turbulência dos dias e na insónia agitada das noites, viver cansa...

Aniversário


No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a.olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui - ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas - doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos. . .

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

Álvaro de Campos


Pouco me importa

Pouco me importa
Pouco me importa o quê?
Não sei: pouco me importa.

Alberto Caeiro



Prefiro Rosas

Prefiro rosas, meu amor, à pátria,
E antes magnólias amo
Que a glória e a virtude.

Logo que a vida me não canse, deixo
Que a vida por mim passe
Logo que eu fique o mesmo.

Que importa àquele a quem já nada importa
Que um perca e outro vença,
Se a aurora raia sempre,

Se cada ano com a primavera
As folhas aparecem
E com o outono cessam?

E o resto, as outras coisas que os humanos
Acrescentam à vida,
Que me aumentam na alma?

Nada, salvo o desejo de indiferença
E a confiança mole
Na hora fugitiva.

Ricardo Reis


Sabes quem sou? Eu não sei. (12-4-1934)

Sabes quem sou? Eu não sei.
Outrora, onde o nada foi,
Fui o vassalo e o rei.
É dupla a dor que me dói.
Duas dores eu passei.

Fui tudo que pode haver.
Ninguém me quis esmolar;
E entre o pensar e o ser
Senti a vida passar
Como um rio sem correr.

O (des)conhecimento do EU

Fernando Pessoa - Ortónimo

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Dia de Portugal

PRECE

Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
O mar universal e a saudade.

Mas a chama, que a vida em nós criou,
Se ainda há vida ainda não é finda.
O frio morto em cinzas a ocultou:
A mão do vento pode erguê-la ainda.

Dá o sopro, a aragem – ou desgraça ou ânsia –,
Com que a chama do esforço se remoça,
E outra vez conquistemos a Distância –
Do mar ou outra, mas que seja nossa!



NEVOEIRO

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer –
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo - fátuo encerra.

Ninguém sabe que coisa quer,
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...


É a Hora!


Valete, Frates




«O poema aponta para um tom geral de disforia, de tristeza e melancolia, marcado por palavras e expressões de negatividade, caracterizando uma situação de crise a vários níveis: político “Nem rei nem lei, nem paz nem guerra” (repare-se na sucessão do advérbio de negação – nem); crise de identidade, também “este fulgor baço da terra/ que é Portugal a entristecer/ brilho sem luz e sem arder/ como o que o fogo-fátuo encerra” (note-se o vocabulário e imagística disfórica: fulgor baço – Portugal a entristecer – brilho sem luz e sem arder – novo oximoro reforçado pela proposição, marca de ausência, sem); crise de valores morais, da alma “Ninguém sabe que coisa quer,/ ninguém conhece que alma tem,/ nem o que é mal, nem o que é bem” (de novo as palavras que marcam a negação – os pronomes indefinidos ninguém, o advérbio nem).

A situação é, em síntese, de incerteza, de indefinição: “Tudo é incerto e derradeiro./ Tudo é disperso, nada é inteiro./ Ó Portugal, hoje és nevoeiro...”. Mas porque – e isto é afirmado no verso central da 2ª estrofe em discurso parentético – algo ficou, consubstanciado na “ânsia distante” que “perto chora” -, e justamente porque Portugal hoje é nevoeiro, “É (também) a Hora!” (teremos que ter em conta que, segundo a lenda sebastianista, o Rei redentor regressaria numa manhã de nevoeiro). A Hora, maiusculada, mas de quê? Pessoa não o diz, mas todo o livro o significa: a Hora de partir, de novamente conquistarmos a “Distância/ do mar ou outra, mas que seja nossa!” (...), de assumirmos o sonho, cumprindo o nosso destino de sagrados por Deus e portadores do seu gládio, do seu sinal – assim a Obra nascerá de novo, como em Mar Português.

Assim sendo, temos que ler Mensagem justamente como a epopeia da era que há-de vir, a do sonho feito realização, a da loucura, divina, porque assumida conscientemente, e interrompida, de D. Sebastião, de D. Fernando, do Infante e dos outros heróis expectantes evocados por Pessoa.» [Bibl.]

A epígrafe final “Valete, Frates” (Adeus, Irmãos) era usual como símbolo de fraternidade em organizações esotéricas; ao usá-la, Pessoa remete-nos para o carácter esotérico/ místico da obra.

Fernando Pessoa - Mensagem

MC

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Dia da Criança

"Nunca ninguém conseguirá ir ao fundo de um riso de criança"
Victor Hugo

Neste Dia da Criança, aqui ficam as palavras de uma deliciosa canção popular infantil que, creio, tem origem no Brasil, " a Barata diz que tem..."

A escritora Luísa Ducla Soares, escreveu o bonito poema, "Mariana diz que tem...", aqui também transcrito, seguindo essa estrutura.


A Barata diz que tem...


A Barata diz que tem sete saias de filó
É mentira da barata, ela tem é uma só
Ah ra ra, iá ro ró, ela tem é uma só !

A Barata diz que tem um sapato de veludo
É mentira da barata, o pé dela é peludo
Ah ra ra, Iu ru ru, o pé dela é peludo !

A Barata diz que dorme numa colcha de cetim
É mentira da barata, ela dorme é no capim
Ah ra ra, rim rim rim, ela dorme é no capim!

A Barata diz que usa perfume de margarida
É mentira da barata, ela usa inseticida
Ah ra ra, ia ro ró, ela usa inseticida!

A Barata diz que tem um anel de formatura
É mentira da barata, ela tem é casca dura
Ah ra ra , iu ru ru, ela tem é casca dura!

A Barata diz que tem o cabelo cacheado
É mentira da barata, ela tem coco raspado
Ah ra ra, ia ro ró, ela tem coco raspado!

A Barata diz que usa um produto da Avon
É mentira da barata, ela usa detefon
Ah ra ra, ia ro ró, ela usa detefon!

A Barata diz que mora numa casa enfeitadinha
É mentira da barata, ela mora é na cozinha
Ah ra ra, ia ro ró, ela mora é na cozinha!

A Barata diz que tem hidromassagem na banheira
É mentira da barata, toma banho de goteira
Ah ra ra, ia ro ró, toma banho de goteira!

A Barata diz que foi num lugar muito maneiro
É mentira da barata, ela foi é no banheiro
Ah ra ra, ia ro ró, ela foi é no banheiro!

A Barata diz que tem uma coroa de rainha
É mentira da barata, ela só tem anteninha
Ah ra ra, ia ro ró, ela só tem anteninha!

A Barata diz que foi trabalhar num escritório
É mentira da barata, ela foi no mictório
Ah ra ra, ia ro ró, ela foi no mictório!

A Barata diz que tem uma capa de bolinha
É mentira da barata, a capa é da joaninha
Ah ra ra, ia ro ró, a capa é da joaninha!

A Barata diz que tem um sapato de fivela
É mentira da barata, o sapato é da mãe dela
Ah rá rá, oh ró ró, o sapato é da mãe dela!


Mariana diz que tem...

Mariana diz que tem
sapatinhos de cristal.
Mas só vejo nos seus pés
as botas de cabedal.

Mariana diz que tem
um cavalo p´ra correr.
Mas só vi no seu jardim
sete ratos a roer.

Mariana diz que tem
chocolates na algibeira.
Mas só lá tem um pão duro
dos que lhe deram na feira.

Mariana diz que tem
estrelinhas a brilhar.
São os seus olhos que brilham
quando se põe a sonhar.

Luísa Ducla Soares - Antologia Poética, Verso a Verso

Vila Nova de Gaia


"Imaginando o oceano, as crianças brincam numa poça de água"
Carlos Novais

domingo, 29 de maio de 2011

Um poema ao Sul, um poema mais ao Norte

Hoje, apeteceu-me bincar aos poetas. Assim sendo, aí fica o meu "Diário mais ao Norte", um arremedo do poema de Adília Lopes, " Diário lisboeta", publicado no Público, a semana passada.
Espero que a Poeta Adília Lopes, mulher inteligente, de mente aberta e com um coração imenso, não se zangue comigo!


Diário lisboeta

1 de Abril de 2011, 6ª feira
Vi um cão abandonado.
2 de Abril de 2011, sábado
Vi dois papagaios verdes no alto de um choupo.
3 de Abril de 2011, domingo
Vi uma rosa cor-de-rosa no quintal do 14.
4 de Abril de 2011, 2ª feira
Arrumei o casacão no guarda-fato.
6 de Abril de 2011, 4ª feira
A Bé gostava de ter um macaquinho.
9 de Abril de 2011, sábado
Quero escrever frases, tagarelar e dançar.
Gosto de solinho. Ver o barómetro.
10 de Abril de 2011, domingo
Descomplicar.
A Leonor tem roupa à janela

Adília Lopes

Diário mais ao Norte

2o de Maio de 2011, 6ªfeira
Resgatei, da rua, um cão abandonado.
A Íris, a minha collie melre, fez um ano.
21 de Maio de 2011, sábado
Vi o pôr-do-sol, o céu em chamas e caminhei na praia.
À noite, o mar enfeitou-se de prata. A lua estava cheia.
22 de Maio de 2011, domingo
Colhi duas rosas vermelhas e vi um sapo, no jardim.
Fiz um bolo de chocolate e comi cerejas.
23 de Maio de 2011, 2ªfeira
A Nani deitou fora as canadianas e calçou sapatos de salto alto.
Vesti o vestido branco. Já me esqueci da roupa de inverno.
25 de Maio de 2011, 4ªfeira
O Gui gostava de ter um cãozinho.A mãe não deixa.
Mas, vai ter. Um, talvez, dois. Um dia. Na casa dele.
28 de Maio de 2011, Sábado
Quero ler o jornal, ir às compras e passear.
Adoro o sol. Está calor. Amanhã também.
29 de Maio de 2011, domingo
Descansar. Preguiçar, preguiçosamente, ao sol.
A Xana nunca tem roupa à janela.
Só um mar colorido de gerânios em flor.

MC

domingo, 15 de maio de 2011

Pedaços de mágoa e de espanto de uma menina gorda, que a anorexia devorou...

Estou confusa! Isto parece um velório! Isto é um velório! Há muitas rosas brancas, círios, uma Cruz enorme e uma urna a transbordar de seda e de tule!
Cheira a velas, a flores e a lágrimas.
Não sei porque estou aqui, neste velório.
Comigo, estão muitos colegas meus e muitos professores.
...

Ninguém fala comigo. Parece que ninguém me vê! Que estranho...
....
O que estará a fazer aqui, o meu irmão? Meu Deus, como chora!
...
Deve ter sido alguém da Escola que morreu! Por isso, estou aqui!
...

Ali, ao canto está o Miguel, o rapaz por quem me apaixonei, com o encantamento do primeiro amor e a insegurança dos meus dezasseis anos!
...
Um dia, quando uns colegas nossos, nos viram juntos, disseram-lhe, a rir, que eu era perfeita, para ser sua namorada! A sua gargalhada escarninha, o olhar meio enjoado, meio piedoso que me lançou e o “Não!”, que lhe escapou, quase gritado, dos lábios, envergonharam-me e magoaram-me profundamente!

Eu era, na verdade e para meu infinito desgosto, muito diferente das outras raparigas, bonitas, soltas, esguias.
...

O meu tio, irmão do meu pai, gostava de, às escondidas, me apalpar as mamas e as nádegas! Dias depois do claro repúdio do Miguel, o meu tio apanhou-me sozinha e amarfanhou-me contra a parede da sala com o corpo e, enquanto com uma mão me tapava a boca, com a outra mão, suada e viscosa, abriu-me o vestido e apalpou-me as mamas, as pernas , explorou todo o meu corpo enquanto dizia, com a voz enrouquecida, vermelho e com os olhos brilhantes de excitação: Que rica xixa!
Um barulho qualquer obrigou-o a soltar-me e eu fugi, a rebentar de raiva , de mágoa , horrorizada comigo própria!

Nunca, como nesse dia, me detestei tanto! Senti um nojo imenso pelo meu tio e também pelo monte de carne, que eu era! Que sou!

Nessa noite, despi-me e olhei-me, criticamente, ao espelho.
...

Vi, com horror, a minha cara muito redonda, com bochechas balofas e luzidias, ,s meus braços fortes, muito roliços e as minhas ancas e pernas muito volumosas, flácidas, feias! Não tinha sequer cintura mas, um rolo carnudo, enrolava-se, à minha volta, como se fosse um cinto e começava a ter uma barriguinha que tremelicava de gordura! As minhas mamas, meio caídas, pareciam sacos mal ajeitados. Só ao meu tio, debochado e sujo, as minhas carnes, gordas e flácidas, podiam dar algum prazer!


Decidi, nesse momento, sozinha, no meu quarto, fazer uma dieta a sério!

Comecei a cortar na comida! O mais que podia!
...
Fazia muito exercício físico, às vezes, quase até à exaustão! Agora, já não posso...
...

Em meses, tinha perdido algum peso, continuo a perder peso mas, nunca deixei de me sentir pesada, inchada, enorme! Continuava, continuo gorda.
...
Tornei-me hábil e manhosa!

Tomava, ainda tomo, medicamentos para não engordar, que me davam forças e energia mas, como não me ajudavam a emagrecer tanto quanto desejava, recorria, como recorro ainda, aos laxantes.

Agrada-me este controlo que tenho sobre mim e sabe-me bem a abstinência a que me forço! Gosto de me sentir limpa e vazia por dentro!

E, sobretudo, respiro aliviada porque, se antes fugia apavorada do meu tio, agora é ele que me evita e nem para mim olha! Apesar de ainda estar gorda, farta de xixa.

...
Estudava muito e tinha notas muito altas! Queria ser a melhor, em tudo! Ultimamente, já não consigo! Estou muito cansada!
...

Dizem-me que estou a perder peso em excesso e que já tenho os ossos quase à mostra e as veias salientes. Mas, eu continuo a ver-me pesada, enorme! Porque estou pesada e enorme! Por isso e para esconder os refêgos de gordura, que se vão amontoando, em mim, uso roupa larga!

Vejo-me ao espelho e sei que não tenho graciosidade nenhuma, nem encanto, nem leveza!
...
Nos meus sonhos mais róseos, eu vejo-me linda, leve, deslizante, quase etérea, como uma sílfide! E, é assim, que eu irei ser! Um dia...!

Quando atingi os trinta quilos, internaram-me, no hospital!
Foi a maneira mais suave que os meus pais encontraram para me dizerem que não gostam de mim e estão fartos de me aturarem! Ninguém, aliás, gosta de uma rapariga volumosa, balofa e feia!
Dizem-me que tenho a pele seca e fina. Não é bem assim e eu esfrego-a muito bem, com sabonete, para que nem uma ponta de gordura me possa conspurcar!
Já não tenho menstruação há uns meses e os meus braços, pernas e costas estão cobertos de uma penugem, que, dizem, se chama lanugo, que eu escondo com a roupa larga que tenho de usar!
Parece que o meu cabelo está mais fino e muito menos farto mas, não é a pele, nem o cabelo, nem o lanugo, nem a amenorreia, que me preocupam!
...

Os meus pais discutem muito, dizem que por minha causa.

...

No hospital, tenho conhecido muitos jovens e alguns horrorizam-me porque persistem, teimosamente, numa dieta de que já não necessitam pois, são pele e osso, com os olhos enormes, nem sei se vazios ou, meio alucinados, os braços e as pernas cheios de manchas arroxeadas, e fazem-me lembrar aqueles meninos, completamente desnutridos, da Somália mas, sem as barrigas enormes, grávidas de nada, grávidas de falta de tudo!
Há uma rapariga, que me faz muita impressão, porque até cospe a saliva! Para não se sentir conspurcada!

Como se sentiriam eles se fossem, como eu, roliços e fartos de xixa, como diria o meu tio?

A vida no hospital, não é fácil! Querem que “façamos as pazes” com a comida! Não quero! Custou-me muito chegar aos trinta quilos e ainda tenho peso para perder! Não!

...

Nem o meu tio, nem homem algum irá jamais esfregar-se de gozo na minha carne!
....
Apesar de, mesmo assim, ainda estar volumosa! A minha dieta não terminou!

Continuo no velório!
...

Tenho de saber quem é esta “ela” de quem todos falam! E por quem tantos choram!
É tudo tão dolorosamente estranho...Sinto-me tão sozinha...
...

Neste momento, entram os meus pais. Meu Deus, como estão diferentes, parecem ter
envelhecido muitos anos, os rostos exaustos, devastados!

...

Que angustiante é isto tudo! Parece que estou a viver a irrealidade paralisante de um tremendo pesadelo, do qual, por mais que me debata, não consigo acordar!

Indiferente às minhas carícias e à meiguice das minhas palavras, a minha mãe aproxima-se da urna e um rio de lágrimas desaba sobre quem ali descansa!
Por quem chorará, assim, tão aflitivamente, a minha mãe? O meu pai não chora, não se aproxima da urna, nem da minha mãe, que mal se segura de pé! Não fala com ninguém! Parece de pedra! Ali está, ao canto, tão cansado, tão desligado, tão ausente!

...

Aproximo-me da urna envernizada e olho, atentamente, para quem ali repousa. Vejo um pequeno volume, envolto em sedas e tules brancos, quase afogado em rosas brancas que se vão desfolhando com o calor e vejo um rosto emaciado, magro, a pele esticada sobre os ossos, as mãos esqueléticas, os dedos entrelaçados.
O rosto não me é estranho... Na verdade, é vagamente parecido com o meu... Mas, eu tenho a cara redonda com bochechas balofas e luzidias!
Sobre o rosto imóvel, de cera, ainda escorrem as lágrimas da minha mãe e parece que é a morta que chora!

De repente, lembro-me...
...

A Andreia deu-me, a meu pedido, uns comprimidos, daqueles que nos fazem sentir melhor. Tomei-os e adormeci!

...

Depois, senti-me cair... Pareceu-me ouvir vozes, muito ao longe, e o som, lindo, ciciado, do Bolero de Ravel que adoro e que ouço, incansavelmente!
Lembro-me de, nesse momento, me sentir muito bem! Relaxada, calma, liberta! Depois, mais nada...!

Surpreendida, compreendi, enfim!
Sou eu que, branca, imóvel e finalmente tranquila, descanso ali! A minha luta, sem quartel, contra o excesso de peso, contra a comida, contra a xixa acumulada do gozo excitado do meu tio, terminou!
Nunca mais, a manápula de um homem conspurcará o meu corpo!

Porque, serenamente, morri, esta madrugada!

Como diria Sartre, “ les jeux sont faits” ! Sinto uma imensa e fantástica indiferença descer sobre mim e afastar-me, irremediavelmente, de todos e de tudo!
Mas, estranhamente, não me importo!
Aprisionada, perdida, nos tentáculos poderosos, dessa gélida indiferença , esqueço os meus afectos, as minhas alegrias, os meus dramas e os meus medos! Numa absoluta solidão!

Para sempre...!

MC