Esta noite, sonhei contigo.Estávamos de mãos dadas e, apesar da irrealidade do lugar, sem dimensão, nem tempo, eu distinguia, claramente, todos os traços do teu rosto.
Sobre nós, o céu parecia uma imensa árvore, densa e escura, pontilhada de estrelas brancas, cintilantes e tão próximas que, se eu quisesse, poderia tocar-lhes, prendê-las entre os meus dedos e deixar o seu brilho enfeitar o meu destino.
Foi numa noite assim, vestida de negro e de prata e já perdida na teia que o tempo, incansável, tece, que comparaste as estrelas a incontáveis grãos de luz e nós, enquanto seres mortais, a grãos de pó que o vento, um dia, levará consigo.
Falaste-me depois, pela primeira vez, da fragilidade da vida e de como é tudo tão
efémero, tão transitório que, o que pensamos ter, não chega, na verdade, a ser nosso.
Não somos donos de nada, não possuímos ninguém e, quando o fim se aproxima, tudo desaparece e, connosco, só fica o Amor. O que fomos capaz de dar e, talvez também, o que, em troca, recebemos.
No jardim, cresciam dúzias de rosas, de caule esguio e pétalas de veludo, que enchiam de perfume e de encanto, a tarde serena e quente. Dístraída, desfolhei uma que se abria púrpura e exuberante à luz incandescente, mas já cansada, do sol dormente e tu, com esse teu jeito de menino que nunca deixaste de ser,disseste-me que nada se destói na Natureza, sem perturbar o equilíbrio do Universo, tão forte, tão íntima, é a ligação entre tudo o que existe.
Não sei se, então, terei compreendido bem o sentido das tuas palavras, mas, nessa noite, adormeci, já suspensa, entre a incipiente consciência da delicada e perfeita harmonia da Criação e a noção pungente da minha fragilidade e da força destruidora que essa mesma fragilidade escondia .
Tinhas uns olhos lindos, que os óculos esbatiam, mas que mudavam de cor, não sei se conforme a maior ou menor intensidade da luz, se conforme o teu estado de espírito ou se, porque eram, simplesmente, assim .
Às vezes eram castanho-esverdeado, outras vezes, de um verde profundo e aveludado, como as folhas das árvores nas madrugadas macias e serenas, outras ainda, de um castanho tão claro e transparente que pareciam âmbar.
Um dia, perguntei-te de que cor eram os teus olhos.
Meio-divertido, meio-surpreendido com a pergunta, disseste que os teus olhos eram da cor que eu os via, como, aliás, tudo à minha volta. Explicaste-me que, pela força das minhas emoções, com a minha alegria luminosa e radiante, com a minha tristeza sombria e gelada, assim eu coloria ou escurecia cada um dos meus dias. Era como se, ao projectar-me em tudo ao meu redor, eu tivesse, sem saber, o poder de recriar o mundo, embelezando-o ou desfigurando-o, o poder supremo de pintar a minha vida da cor que eu escolhesse, da cor que eu mais gostasse!
E, nessa noite, adormeci feliz, cheia de esperança num mundo que eu iria pintar de de azul, verde, branco e amarelo. E de todas as outras mil cores possíveis!
Muitas vezes, perdida no escuro, afogada nos velhos medos e pesadelos ancestrais que já nascem connosco, eu chorava baixinho e sufocava, na almofada, o terror, sem nome e sem tamanho, de te perder! Porque perder-te, seria o fim, trágico e definitivo, do meu pequeno mundo de afectos e seria perder-me!
Uma noite, pressentindo-me a solidão e as lágrimas, abraçaste-me e prometeste que nunca me deixarias enquanto eu não fosse suficientemente forte para prosseguir sem ti! Foste ousado na promessa que não sabias se irias cumprir, mas , eu suspirei de alívio e, como sempre, descansei em ti.
E, quando, por fim, adormeci, aconchegada na ternura morna dos teus braços, o meu coração batia, já, ao ritmo sereno do teu, de novo compassado, seguro, confiante.
Contaram-me um dia, uma história complicada, daquelas de grande elevação moral, que não me convenceu pelo exagero, pela pieguice avulsa e, talvez também, por uma certa incongruência.
Mesmo assim, perguntei-te o que era aceitar, perdoar e resignar-se.
Muito sério, disseste-me que aceitar podia ser uma opção profundamente dolorosa, esgotante, mesmo violenta; perdoar podia ser tremendamente difícil, porque esquecer era, às vezes, impossível; resignar-se podia ser estagnar, desistir, quase deixar-se morrer, crucificado na agonia lenta da desesperança e do desalento.
Inclinavas-te perante o dom sublime do perdão e compreendias a aceitação e a resignação perante o abismo insondável da Morte, mas nunca, perante as vicissitudes da vida, perante a injustiça, perante a prepotência!
Depois, olhaste para mim com esses teus olhos tão verdes e brilhantes como folhas tenras e orvalhadas, nas madrugadas suaves e transparentes e pediste-me que nunca me resignasse!
Não me lembro já o que prometi, mas, se por temperamento, não me rendo, nem me resigno facilmente, o facto é que já senti, no mais profundo de mim, a verdade crua das tuas palavras, na violência da aceitação, na incapacidade exasperante do esquecimento, na dificuldade extrema do perdão e na tristeza, na infinita tristeza da resignação !
Ensinaste-me sempre a ver o Mundo como um filme fantástico, de largos horizontes e em deslumbrante colorido.Talvez por isso, nunca tive da vida, das pessoas, dos sentimentos, uma imagem linear, cinzenta e entediante .
M.C.
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