terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

A Gula e... a Vida!


Pão de Ló húmido... de Chocolate


Ingredientes
4ovos
6gemas
200 grs de açúcar
130 grs de farinha
80 grs de chocolate



Preparação

Misturar as gemas com os ovos e o açúcar.
Bater bem, durante aproximadamente, 25 minutos. A meio ligar o forno a 250º.


À medida que juntava os ingredientes para, passado tanto tempo, fazer, de novo, este bolo, a sua vida de casada, foi-se desenrolando, perante ela, como um filme, onde ela era a estrela principal! Dizem que acontece o mesmo com os afogados: nos breves minutos que antecedem a morte, perpassa-lhes, nítida, na memória, os pedaços bons e os pedaços maus da sua vida, que se esvai!
Dizem, ainda, que, por isso, os afogados choram, quando dão à costa! Dos olhos, sem luz, escorrem lágrimas, com cheiro a desespero e a morte, no momento em que alguém querido se aproxima. Talvez, por não terem tido tempo de se despedir, de pedir perdão ou... de perdoar.

Este era o bolo predilecto do marido.

Ao princípio, nos primeiros anos de casados, faziam-no, a quatro mãos. Era uma festa, um arraial, um enlevo e uma canseira depois, com a cozinha, numa perfeita desordem, também limpa pelos dois, quando, enfim, o Pão de Ló húmido... de Chocolate, ficava pronto!
Era, então, que o cheiro doce, guloso, vibrante, quase erótico do chocolate, inundava toda a casa

Ele separava as claras das gemas e ligava o forno.

Ela sabia que, nesse momento e sem poder esperar mais tempo, também ele, a arder de amor e de desejo, agarrava-a, abraçava-a, beijava-a nos lábios, no pescoço, nos seios, excitado e guloso , como se, também, ela fosse chocolate macio e, com as mãos, a tremer, em frémitos de gula, ele percorria-lhe o corpo bonito que cheirava a juventude, a morango e a baunilha. E, ela deixava-se perder, suspirando baixinho, como se, por magia, se tivesse transformado em chocolate quente, aveludado, derretido, entre os lábios e as mãos dele, a taça com os ovos e o açúcar, esquecida no balcão da cozinha...

Com o tempo, era ela que fazia o Pão de Ló húmido... de Chocolate, o doce predilecto dele, agora feito a duas mãos, as dela, porque o ritmo dos dias era outro!
Mas, a alegria, o prazer com que ele o comia, era o mesmo e fazia-a rir, a sua fingida surpresa, quando a via pousá-lo na mesa!
Depois, abraçava-a, beijava-a e percorria-lhe o corpo, com a sofreguidão, a gula, de um faminto ou, saboreava-a, devagar, ternamente, como se fosse ela o seu chocolate crocante, mais doce, mais precioso e raro!

À parte, misturar a farinha com o chocolate em pó.
Quando terminar de bater, juntar ao creme de ovos, a mistura de farinha e chocolate, peneirados.


Durante anos, ela continuou a fazer o bolo húmido e apetitoso, a casa inundada com o cheiro sensual, quase lascivo, do chocolate morno mas, a atitude dele foi-se tornando diferente: às vezes, só provava. Para não engordar, dizia.
Ao princípio, os dois tinham sido um só, que o fio da vida enrolava na mesma cadência. Depois, com o tempo, com as dificuldades que íam surgindo, cada um era um, que a vida ía enrolando, enrolando, afastando e... sorvendo, em separado!
Nasceram as filhas e o trabalho era tanto que ela não tinha sequer tempo para fazer o Pão de Ló húmido ... de Chocolate e ele também já não perguntava pelo seu doce predilecto!

Mexer, delicadamente, a mistura.

A casa cheirava, agora, a leite, a pó de talco, a lápis de cor, a cadernos, a ballet, a flores e, se calhar, ao profundo cansaço dela!
Ela estava, realmente, cada vez mais cansada, com o trabalho profissional, com o arranjo da casa, que fazia sozinha, com os cuidados com as filhas que cresciam e precisavam tanto da sua atenção!
Enquanto mexia, suavemente, a massa aveludada, recordou o Domingo em que ela lhe confessara que, com as despesas que tinha, não podia pagar a uma empregada mas, estava tão exausta que, o que mais queria, era alguém que a ajudasse!
Insensível, rude, quase mau, ele dissera-lhe que quem não tem dinheiro, não tem vícios!
Ele estava a reconstruír uma casa enorme, que era o seu sonho dourado, feito de pedra e, ao qual tinha todo o direito, e ela devia sentir-se orgulhosa, trabalhar e não se queixar!


Untar com manteiga uma forma sem buraco e forrar com papel vegetal também untado e deitar a massa.


Uma noite, ao jantar, ele disse-lhe que tinha de ir a Londres, com uma cliente e o cunhado dela, para tratar de um assunto de heranças.
Enquanto ía untando a forma, ela recordou o cuidado com que lhe prepara a mala ! Recordou os post-its que tinha colado no casaco do pijama, “ Dorme bem, querido! Boa noite!” e os que colara nas duas camisas “ Bom dia, querido, que tudo corra muito bem! Aqui estou à tua espera, cheia de saudades!”
À noite, ele telefonara e ela perguntara.”Onde estás?” “No hotel. Vou dormir.” “ Não vais passear por Londres, à noite? É tão bonita!” Não, estou cansado!”
E, ela, tranquila e crédula, foi também para a cama, com as suas meninas, que cheiravam a inocência, a sabonete e a pó de talco Johnson.! Radiantes, mergulharam as três, num sonho lindo, perfumado e colorido, enfeitado com estrelas prateadas, rosas amarelas, e açucenas, e com cheiro a chocolate, a baunilha e a framboesas!

Nesse momento, lágrimas de revolta, de raiva e de fúria, grandes, pesadas, como punhos, rolaram-lhe pelo rosto, como um pequeno rio de mágoa.
Apeteceu-lhe atirar com a forma ao chão mas, conteve-se! Não seria, assim, tão primária! Nunca se perde a compostura, tinham-lhe ensinado, em criança!
Afastou-se, no entanto, da taça, mesmo ao lado, para que o Pão de Ló húmido...de Chocolate, não ficasse amargo e ainda mais húmido, com o rio cristalino das suas lágrimas!
Como pudera ser tão burra? Como pudera ser tão ingénua? Como pudera ser tão estúpida?
Uma menina grande mas tonta, a escrever bilhetinhos a um homem mentiroso e empolgado por outras experiências, por técnicas de sedução que ela nunca conhecera!

Quando regressou, ele trouxe-lhe um perfume “ Caleche” da marca elegante e, então, bastante exclusiva, “Hermès”. Surpreendida, perguntou-lhe: “Escolheste este perfume sozinho?”; “Não, a menina da perfumaria ajudou-me!”
Mesmo para as filhas, os eternos peluches eram diferentes dos habituais ursos.
Surpreendeu-se mas, depressa esqueceu as suspeitas! Não era ela que afirmava, perante o espanto e a risonha incredulidade das amigas, que, não só poria as mãos, no fogo, pela fidelidade do marido, como se lançaria toda, na fogueira?
Até um dia...!

Levar ao forno, a 230º, durante 10 minutos.
Findo este tempo, reduzir para 150º e deixar ficar mais 5 minutos.


Ele estava diferente há muito! Tudo o irritava nela, em casa, nas filhas! Não tinha tempo para nada, nem mesmo para as festinhas do colégio, a que não ía ou, se se dava ao trabalho de ir, chegava no fim!
Um dia, ela confrontou-o com a verdade: “Tens ou tiveste uma amante!”;
“Tive!” “ A tua cliente, com quem te lambuzaste, em Londres?”; “ Sim, mas acabou tudo, há muito tempo! Como soubeste, só agora?”; “ Desde há muito tempo, que te sinto diferente e distante! Mas, sabes, nem quis acreditar! Fiz como a avestruz e ignorei! Agora tenho recebido chamadas telefónicas esquisitas! Já não dá para fazer de conta! Como foste capaz?”; “ A culpa foi tua! Só pensavas no trabalho e nas filhas!”

Aquela cruel e cobarde injustiça, sob a forma de uma desculpa esfarrapada e insultuosa, foi a punhalada final, como a estocada de misericórdia que o toureiro dá ao touro, depois de lhe ter infligido um longo e tremendo martírio, na arena!
Foram dias e dias, semanas e semanas de luta titânica. Consigo mesma! Sozinha!

Ele nunca lhe pediu desculpa, mas, jurou que só a amara a ela! Sempre! Disse-lhe que tinha um bombom em casa e perdera tempo com um rebuçado velho e azedo!
Voltou a ser o rapaz terno e atencioso, com quem casara.
Agora tinha uma empregada a tempo inteiro! Raramente cozinhava e jantavam fora frequentemente.
Oferecia-lhe tudo: roupas caras, como ela nunca vestira, jóias, produtos de beleza caros, perfumes, que ela escolhia e viajavam muito! Ela ía aceitando...
Tinha sido demasiado tempo de esquecimento de si mesma!
Tudo o que ele, agora, lhe dava, era-lhe, simplesmente, devido! Tout court!
Ofereceu-lhe mesmo um perfume, “ In love again”, de Yves Saint Laurent. Era um símbolo de recomeço, dizia ele!
Agora era ele, o tonto! Ela detestava os perfumes de Yves Saint Laurent! Para ser honesta, experimentou-o! Deitou-o fora!
Deixá-lo, para quê? Tinha duas filhas que precisavam do amor e da presença dos dois, para terem estabilidade emocional e, ( porque não dizê-lo?), estabilidade financeira. E, não podia esquecer que estava muita tristeza sua, muita renúncia, muita solidão, muito trabalho seu , muito suor, enterrados, naquele sonho de pedra, em feitio de casa!
Sentia-se velha, exausta! Mas, foi procurar forças, lá no mais recôndito de si e impôs-se!
Um laço forte, fortíssimo estava, contudo e para sempre, destruído, desfeito, desatado!
Pediu-lhe, muitas vezes, para voltarem a fazer o Pão de Ló húmido... de Chocolate, a quatro mãos! Tentou, uma vez mas, não conseguiu! Sentiu um constrangimento insuportável! Ele percebeu e não insistiu! Por vergonha, talvez!
Ou, estaria, de novo, a ser ingénua?

Retirar do forno e desenformar quando estiver arrefecido>

Também ela tinha arrefecido...
Perdoara? Ela julgara, sinceramente, que sim! Mas, como perdoara, se não esquecera? Perdoar é tremendamente difícil, quando esquecer é impossível! E, é tão exasperante a incapacidade de esquecer a dor da traição, a náusea da mentira e o desespero da confiança destruída!
Amava-o ainda? Não sabia! A paixão acaba e o amor transforma-se! Sempre!
Agora era, talvez, amizade, carinho e... hábito! Resignação, nunca!
Resignar-se é estagnar, é deixar-se morrer, crucificada na agonia lenta da submissão, do desalento, da desesperança!
E, ela impusera-se! Cedera, é certo, mas era ela, agora, que dominava, no jogo da vida, a dois!

Era tempo de tirar o Pão de Ló húmido...de Chocolate, já arrefecido, do forno!

Ele fora em trabalho a Lisboa e pedira-lhe para que fosse com ele! Ela sabia que era trabalho mas, poderia ser passeio, se ela quisesse e sabia, também , que ele não voltara a prevaricar. Mas, não foi com ele!
Deu uma desculpa e ficou em casa, a fazer o doce predilecto dele! Para ele...?
Faziam hoje trinta anos de casados! Seria possível?
De manhã, a florista entregara, em casa, um lindíssimo cesto, com trinta rosas vermelhas, e com um cartão, muito terno, do marido!

A ela, apetecera-lhe fazer aquele bolo que, de uma certa maneira, guardava, em si, o registo do seu casamento!

Ficou alguns minutos a olhar para para aquela massa ressumante, de chocolate...
Que fazer-lhe? Comê-lo, não! Agora, enjoava-a e, de resto, a dieta não o permitia! Dar à empregada? Não, que pensaria ela? Deitá-lo fora? Também não! Há muita fome no mundo! Seria um pecado!
“Bem, veremos!” pensou, com um sorriso.

A Teresa tinha-a desafiado para irem, com a Camila, ao cinema, ver “ A dúvida” e depois jantarem, num restaurante da Foz.
Aceitaria o desafio ou...não?
Estava, de qualquer modo, a fazer-se tarde. Subiu ao quarto, tomou um banho, vestiu-se, maquilhou-se ligeiramente e penteou-se. Deixou cair, sobre si, um chuvisco delicioso de Chanel nº 5.
Viu-se ao espelho e gostou do que viu!
Era ainda uma mulher bonita, atraente, elegante e bem conservada, apesar de tanta amargura e tanta canseira!

Tocaram à campainha. O coração disparou...
Desceu as escadas a correr! Seria a primeira vez...
O cheiro doce, guloso, vibrante, quase erótico, do chocolate quente, inundava toda a casa...
Respirou fundo, deu um jeito à blusa de seda e abriu a porta.
O rosto bonito iluminou-se num sorriso e os olhos verdes, brilharam, com a cor e a doçura das folhas tenras e orvalhadas, nas madrugadas macias e transparentes de Verão...
“Entra!”, disse docemente.

Quando retirar do forno e poucos minutos depois, o Pão de Ló húmido... de
Chocolate, vai perder o aspecto bonito, tufado e fofo ! Vai baixar. É normal...


MC
( A Gula - Pecado Mortal)

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