Testamento
À prostituta mais nova
Do bairro mais velho e escuro,
Deixo os meus brincos, lavrados
Em cristal, límpido e puro...
E àquela virgem esquecida
Rapariga sem ternura,
Sonhando algures uma lenda,
Deixo o meu vestido branco,
O meu vestido de noiva,
Todo tecido de renda...
Este meu rosário antigo
Ofereço-o àquele amigo
Que não acredita em Deus...
E os livros, rosários meus
Das contas de outro sofrer,
São para os homens humildes,
Que nunca souberam ler.
Quanto aos meus poemas loucos,
Esses, que são de dor
Sincera e desordenada...
Esses, que são de esperança,
Desesperada mas firme,
Deixo-os a ti, meu amor...
Para que, na paz da hora,
Em que a minha alma venha
Beijar de longe os teus olhos,
Vás por essa noite fora...
Com passos feitos de lua,
Oferecê-los às crianças
Que encontrares em cada rua...
(poemas)
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Trago os olhos naufragados
em poentes cor de sangue...
Trago os braços embrulhados
numa palma bela e dura
e nos lábios a secura
dos anseios retalhados...
Enrolada nos quadris
cobras mansas que não mordem
tecem serenos abraços...
E nas mãos, presas com fitas
azagaias de brinquedo
vão-se fazendo em pedaços...
Só nos olhos naufragados
estes poentes de sangue...
Só na carne rija e quente,
este desejo de vida!...
Donde venho, ninguém sabe
e nem eu sei...
Para onde vou
diz a lei
tatuada no meu corpo...
E quando os pés abram sendas
e os braços se risquem cruzes,
quando nos olhos parados
que trazem naufragados
se entornarem novas luzes...
Ah! Quem souber,
há-de ver
que eu trago a lei
no meu corpo...
(poemas)
Ronda
Na dança dos dias
meus dedos bailaram...
Na dança dos dias
meus dedos contaram
contaram, bailando
cantigas sombrias...
Na dança dos dias
meus dedos cansaram...
Na dança dos meses
meus olhos choraram
Na dança dos meses
meus olhos secaram
secaram, chorando
por ti, quantas vezes!
Na dança dos meses
meus olhos cansaram...
Na dança do tempo,
quem não se cansou?!
Oh! dança dos dias
oh! dança dos meses
oh! dança do tempo
no tempo voando...
Dizei-me, dizei-me,
até quando? até quando?
ALDA LARA
NOTA: Alda Lara nasceu em Benguela, Angola, em 1930. Médica dedicada e Poeta de alto gabarito, enriqueceu, com a sua obra, a literatura africana, mais propriamente, a literatura angolana!
Lamentavelmente, partiu muito cedo, aos trinta e dois anos de idade, em Cambambe, no recôndito de Angola, no exercício abnegado, da sua profissão. O escritor, também médico, Orlando Albuquerque, com quem era casada, editou, postumamente os seus poemas e alguns contos.
Esta é a minha Homenagem a uma Poeta, angolana como eu, e que ainda tive o privilégio de conhecer, através dos meus pais.
MC
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