quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Presença Africana

Escondido, entre uns papeis antigos, encontrei, esta manhã, um postal, já envelhecido pelos anos, onde ardiam, magníficas, as acácias rubras de África.
E a incandescência vibrante daquelas árvores, a desfazerem-se, esplendorosas, em flor, inundou o meu dia sombrio, de luz, de cor, de encantamento...


África foi o meu berço, foi a minha escola, foi o meu primeiro amor! E eu, eu sou um pedacinho de África!

Eu sou a acácia rubra, provocante e atrevida; sou a raiz forte, funda, tentacular do embondeiro; eu sou o a terra ocre, suada, sangrada, sofrida; eu sou o sol infatigável, ardente, voluptuoso.

Eu sou a árvore nua, espectral,como mãos descarnadas erguidas, para o céu, numa prece nunca atendida; eu sou a vegetação luxuriante, num verde de mil matizes, onde o cacimbo escorre, límpido e manso, como lágrimas de reconciliação; eu sou o capim ressequido, descorado, frágil.

Eu sou o flamingo cor-de-rosa, toque de delicado romantismo, no mangal; eu sou o pássaro de mil cores, que corta  o espaço numa vibração de alegria e plenitude; eu sou o animal selvagem, senhor absoluto de uma terra, que é sua.

Eu sou o diamante, o minério, a cana-de-açúcar, o algodão, o café que se oferecem, fartos, num esbanjanmento de fidalguia abastada, eu sou o cantar monocórdico das cigarras; eu sou o pequeno pirilampo, delicado ponto de luz, perdido no escuro, profundo e denso, de uma terra adormecida.

Eu sou a baía  de água azul, langorosa e morna, como regaço de mãe; eu sou a areia branda, dourada e doce, como carícia de noivo; eu sou o mar, essa força genesíaca, grandiosa, lustral.

Eu sou a palmeira esguia, ondulante, lânguida, que o vento agita, lascivo e amoroso, com requintes de amante; eu sou o cheiro consolado da terra, depois da chuva, benção divina que fecunda e cria; eu sou a trovoada violenta, repentina, que atroa os ares e desperta, malévola, os velhos medos de infância.

Eu sou o frenesim sensual, inquietante, indomável, das batucadas que, súbitas, irrompem no ar, em frémitos de paixão e de luxúria.

Eu sou o poente breve, mas intenso, clarões fortes, sanguinolentos, como lagos de amor, de ciúme, de traição.
Eu sou uma centelha viva de África!

Em mim, na minha memória, nos meus sentidos, nas minhas veias, perdura, bela e intacta, essa África exuberante e misteriosa, como parte integrante de mim, como uma marca de fogo, indelével.


Presença Africana

 
E apesar de tudo,
Ainda sou a mesma!
Livre e esguia,
filha eterna de quanta rebeldia
me sagrou.
Mãe-África!
Mãe forte da floresta e do deserto,
ainda sou,
a Irmã-Mulher
de tudo o que em ti vibra
puro e incerto...
A dos coqueiros,
de cabeleiras verdes
e corpos arrojados
sobre o azul...
A do dendém
Nascendo dos braços das palmeiras...
A do sol bom, mordendo
o chão das Ingombotas...
A das acácias rubras,
Salpicando de sangue as avenidas,
longas e floridas...
Sim!, ainda sou a mesma.
A do amor transbordando
pelos carregadores do cais
suados e confusos,
pelos bairros imundos e dormentes
(Rua 11!... Rua 11!...)
pelos meninos
de barriga inchada e olhos fundos...
Sem dores nem alegrias,
de tronco nu
e corpo musculoso,
a raça escreve a prumo,
a força destes dias...
E eu revendo ainda, e sempre, nela,
aquela
Longa história inconsequente...
Minha terra...
Minha, eternamente...
Terra das acácias, dos dongos,
dos cólios baloiçando, mansamente...
Terra!
Ainda sou a mesma.
Ainda sou a que num canto novo
pura e livre,
me levanto,
ao aceno do teu povo!   
 
ALDA LARA
 
Benguela 1953

MC


 

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