quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Os meninos de Angola

Os meninos de Angola
Já não se sentam à roda da fogueira.
Ninguém lhes conta histórias
Fantásticas, de encantar...
Nem adormecem
Ao som de velhas canções
De magia e de ninar.
Os meninos, apagada a fogueira,
Nunca conheceram a escola,
os doces,
o riso
E a brincadeira...

Os meninos de Angola
Conhecem a guerra, a miséria, o sofrimento...
Cheiram a morte, a loucura, a chacina e o tormento
De um País martirizado, ferido, sangrado!


Os meninos de Angola
O olhar sem luz, distante, vago...
Perdido!
As mãos pequeninas, escuras, geladas...
Suplicantes, ainda...
Fecham-se em concha,
Cheias de nada!
Bocas ávidas, vorazes
Lábios finos, ressequidos
Sugam a Morte em seios secos...
Sacos vazios
Pendidos!

Os meninos de Angola
Já não se sentam à roda da fogueira
Jazem, agonizantes, sozinhos...
Na terra nua, vermelha...
Encharcada de lágrimas,
de sangue,
de horror...
Esqueletos vivos...
Barrigas redondas... enormes
Grávidas de fome!
Prenhes de Dor!
Corações inocentes, tristes, cansados...
Transidos de medo...
Transidos de frio...
Sob o sol africano, ardente...
Dardejante...sofrido...sangrento!

Angola...calor...raios de luz
Flamejantes!
Riqueza, quanta riqueza...
Fartura, gula só...para alguns!
Angola desumana...egoísta... gananciosa...
Indiferente...
Angola dos senhores e do esbanjamento,
Rica em minério
Petróleo e diamantes!
Abundância que os meninos não conhecem,
Que não os alimenta,
Não os ajuda a viver,
Nem os consola...

Os meninos de Angola
Perdida a Esperança...
Choram baixinho...
E há uma súplica dorida
No seu olhar perdido...
Nos seus gritos mudos, pungentes
Que se dissolvem no ar!
E, sem nunca ter sido criança,
Choram muito de mansinho...
E desesperam...
Desesperam...!

Será por mim,
Será por ti,
Será por nós,
Que os meninos clamam
E, ansiosos,
Ainda esperam?

Os meninos de Angola
Já não se sentam à roda da fogueira...
Vão morrendo devagar...
Devagarinho...
E jazem famintos, esgotados, doentes,
No chão...
Na pedra...
Na poeira...

Refeição adiada dos abutres
Que... medonhos, imóveis, gulosos, salivam...
Salivam gulosos...
E, pacientes, esperam...
Esperam...
Esperam...

MC

domingo, 19 de outubro de 2008

A bata amarela

Tenho uma bata amarela
Com dois bolsos
Pregados
Que visto no hospital.
Neles, guardo ternura,
Sorrisos,
Palavras,
Afagos,
E suaves mentiras,
Daquelas, que não fazem mal!

Pressinto e prendo nas mãos
Muitas horas
Sofridas
As dúvidas
Restos de fé perdida
Pedacinhos, esfarrapados
De Esperança,
Tristes lágrimas incontidas!
Mas, ainda mais do que a dor,
Guardo nas minhas mãos
O susto
O desespero
O pânico
E, um imenso terror!

Lá fora, brilha o sol...
Há risos, vozes no ar
Muita alegria
Na praça!
É a vida a brotar
Livre
Apaziguada
Apressada
Na gente sadia
Que passa!

Lá dentro, rostos velhos
Rostos jovens
Pálidos, esquálidos
Corpos ardentes de febre
Lábios secos
Cansados
Ansiosos
Dizem-me como em oração:
" Deus é grande!"
" Deus é Pai!"
E, fixam os olhos nos meus
À espera que eu diga:" Sim!"
" Estou melhor, hoje, não estou?"
E,fixam os olhos nos meus,
Inquietos, à espera,
Agora, à espera de mim!

Então, muito de mansinho
os meus dedos esguios
Trémulos
Desajeitados
Gelados
Tiram de um dos bolsos
Pregados
Da minha bata amarela
Que visto no hospital,
Uma suave mentira
Daquelas, que não fazem mal!

Quando a doença é feroz
E me estendem a mão
Transparente
Emaciada
Suada
Que eu aperto nas minhas
Sinto e cheiro
Impotente
Agoniada
Ansiosa
E aterrada
A estranha vibração
Da Morte que já fareja
Faminta
Gulosa
Excitada
E, ronda no hospital!

Sob a minha bata amarela
Que visto no hospital,
O meu coração agita-se
Num tremor mal contido!

Quem me vê, vê-me serena
Naquele momento supremo.
Mas, dentro, num grito
Mudo
Angustiado
Perdido,
A minha alma explode
E, esgotada
Incapaz,
Chora
Clama
E pergunta:
" Porquê tanto sofrimento?
Se existes,
Deus,
Onde estás?"

MC