quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

O perú


Numa planície , viviam um Pavão e um Urubu. Certo dia, o Pavão reparando bem no Urubu, pensou: "Sou a ave mais bonita do mundo animal , tenho uma belíssima plumagem, macia, colorida e exuberante, porém, nem voar eu posso, de modo a mostrar, a todos, a minha beleza! Feliz é o Urubu que é livre para voar, para onde o vento o levar!
O Urubu, por sua vez, também reflectia, no alto de uma árvore: "Que infeliz ave sou eu, a mais feia de todo o reino animal e ainda tenho que voar e ser visto por todos! Quem me dera ser belo e vistoso tal qual aquele Pavão!
Foi então que ambas as aves tiveram uma brilhante ideia e juntaram-se para discorrer sobre ela: cruzarem-se seria óptimo para ambos, gerando, assim, um descendente que tivesse a beleza e a graciosidade de um Pavão e voasse, livre, como um Urubu .
Cruzaram-se, cheios de esperança, e nasceu o Perú! Que é feio e não voa!

Moral da história: Se a situação não está boa, é melhor não tentar compor, porque pode ficar pior!

Os Bichos na Mitologia

MC

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Natal de quem?

Mulheres atarefadas
Tratam do bacalhau,
Do peru, das rabanadas.

-- Não esqueças o colorau,
O azeite e o bolo-rei!

- Está bem, eu sei!

- E as garrafas de vinho?

- Já vão a caminho!

- Oh mãe, estou pr'a ver
Que prendas vou ter.
Que prendas terei?

- Não sei, não sei...

Num qualquer lado,
Esquecido, abandonado,
O Deus-Menino
Murmura baixinho:

- Então e Eu,
Toda a gente Me esqueceu?


Senta-se a família
À volta da mesa.
Não há sinal da cruz,
Nem oração ou reza.
Tilintam copos e talheres.
Crianças, homens e mulheres
Em eufórico ambiente.
Lá fora tão frio,
Cá dentro tão quente!

Algures esquecido,
Ouve-se Jesus dorido:
- Então e Eu,
Toda a gente Me esqueceu?


Rasgam-se embrulhos,
Admiram-se as prendas,
Aumentam os barulhos
Com mais oferendas.
Amontoam-se sacos e papeis
Sem regras nem leis.
E Cristo Menino
A fazer beicinho:
- Então e Eu,
Toda a gente Me esqueceu?


O sono está a chegar.
Tantos restos por mesa e chão!
Cada um vai transportar
Bem-estar no coração.
A noite vai terminar
E o Menino, quase a chorar:
- Então e Eu,
Toda a gente Me esqueceu?

Foi a festa do Meu Natal
E, do princípio ao fim,
Quem se lembrou de Mim?
Não tive tecto nem afecto!

Em tudo, tudo, eu medito
E pergunto no fechar da luz:

- Foi este o Natal de Jesus?!!!


(João Coelho dos Santos
in Lágrima do Mar - 1996)

Natal

Nasce mais uma vez,
Menino Deus!
Não faltes, que me faltas
Neste inverno gelado.
Nasce nu e sagrado
No meu poema,
Se não tens um presépio
Mais agasalhado.
Nasce e fica comigo
Secretamente,
Até que eu, infiel, te denuncie
Aos Herodes do mundo.
Até que eu, incapaz
De me calar,
Devasse os versos e destrua a paz
Que agora sinto, só de te sonhar.

(Miguel Torga)

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

O Pavão e a ursa


Júpiter era um amante do sexo feminino e, por esse motivo, Juno, sua esposa e rainha dos deuses, representada por um pavão, possuía muitas rivais, entre elas, a bela Calisto, que Juno, enciumada, transformou numa ursa. Calisto passou, assim, a viver sozinha com medo dos caçadores e das outras feras da floresta, esquecendo-se de que ela própria era uma.
Um dia, Calisto reconheceu, num caçador, o seu filho Arcas. Esquecida que era uma ursa felpuda, ela quis dirigir-se a ele e abraçá-lo ternamente, como a mãe amorosa que era, mas Arcas, ao ver aquele enorme animal correr direito a si, assustou-se e já erguera sua lança para matá-lo, quando Júpiter, vendo a desgraça que estava para acontecer, afastou-os e lançou-os ao céu, transformando-os nas constelações de Ursa Maior e Ursa Menor.
Juno, enfurecida por Júpiter ter dado tal privilégio à sua rival, sai à procura de Tétis e Oceanus, as antigas divindades do mar. Conta-lhes que essas estrelas, pedaços flutuantes de luz e de brilho no céu, são a eternização de uma das mais dolorosas ofensas que Júpiter lhe fizera, e pede para que eles não deixem que essas constelações se escondam nas suas águas. É por isso que a Ursa Maior e a Ursa Menor se movem em círculo no céu mas nunca descem por trás do oceano, como as outras estrelas.

Os bichos na Mitologia


MC

sábado, 19 de dezembro de 2009

As andorinhas

Era uma casa térrea, pintada de branco, com um jardinzinho, bem cuidado, à frente e uma pequena horta, com três árvores de fruto, atrás.
À entrada, na parede branca, pousavam, em fila, da maior para a mais pequena, seis andorinhas toscas, de barro, como um símbolo ingénuo de alegre harmonia familiar, como um singelo prenúncio de uma Primavera eterna naquele lar.
A casa estava mobilada sem luxos, mas com um gosto simples, onde não faltavam os naperons de renda, tecidos com mil pacientes laçadas e sempre meticulosamente limpa.
Na cozinha, uma mulher baixa e roliça, preparava o jantar. Curvava-se, ligeiramente, para a banca e desprendia-se dela, a aura cinzenta de um infinito cansaço e de um triste desalento, a boca sumida num rictus de amargura.
À entrada, soaram uns passos pesados e, ligeiramente incertos.
Nesse instante, uma incontrolável aversão, mesclada de medo e de uma imensa incerteza, submergiu-a.
Pouco depois, entrou, de rompante, na cozinha, um homem de estatura mediana, gordo, com os olhos injectados, pequeninos e piscos, e o pescoço baixo, um rolo de gordura lustroso e vermelho, como o de um porco. O cabelo grisalho, ralo mas comprido, colava-se, em desordem, à testa.
Ela percebeu, de imediato, que ele já estava meio bêbedo. Como sempre!
“ O jantar está pronto?” rosnou, grosseiro.
“ Está quase!” respondeu ela, sem olhar para ele, o coração a bater, num desatino, muito quieta, junto do fogão.
Parecia ainda mais baixa, encolhida e curvada sobre o tacho que fervia. Estava exausta! Estava farta! Dele, daquela amargura, da vida!
“ Não sei o que fazes todo o dia, em casa, mulher! Nem agora que estás desempregada, as coisas estão prontas a horas! És uma preguiçosa, uma relaxada, é o que tu és!”
Ela suspirou e não respondeu.
Estava, realmente, desempregada, há três meses, mas continuava a trabalhar! Trabalhava, talvez, ainda mais duramente, a dias e a lavar as escadas de uns escritórios.
“ Faço o que posso e não te peço dinheiro, pois não? Não te peço nada, aliás!”
Ele ignorou-a e ela começou a servir o jantar.
Já sentado, ele comeu,sôfrego, a sopa e logo a seguir a massa guisada com frango, sem esperar por ela.
Ao vê-lo sorver a comida, como um animal esfaimado, uma onda de nojo e de desesperado ódio, inundou-a, sufocando-a.

Tinham dois filhos.
A filha, uma rapariga de dezanove anos, trabalhava, para seu desgosto, num bar, à noite. A mãe mal a via. Entrava em casa, já alta manhã. Dormia horas a fio e só se dignava sair do quarto, para comer e tomar banho. Falava continuamente, ao telemóvel e estendia, na mais absoluta desarrumação, as roupas e os sapatos, pelo quarto.
Curiosamente, o pai não a enfrentava! Desde sempre, tivera para com a filha, gestos, inesperados nele, de delicada doçura e de meiguice! Ela tinha sido sempre a sua menina, a quem perdoava tudo, a quem permitia tudo! Levava-a ao parque, ao circo, ao cinema e comprava-lhe guloseimas, brinquedos e revistas.
Já crescida, quando se tentara impor, ela enfrentara-o, provocadora, uma luz estranha, maligna, no olhar. E ele calara-se submisso e sumira-se, sorrateiro!
O filho, um bom rapaz, inteligente e sensato, era a luz dos seus olhos, o seu enlevo e o seu orgulho! E, como a sua ternura, o calor do seu sorriso lhe faziam falta! Tanta falta!
Trabalhava em Espanha e mandava-lhe, sem o pai saber, algum dinheiro, dádiva preciosa para equilibrar as despesas, em casa.
Como se lesse os seus pensamentos, ele disse, com incontida raiva: “ Aquele ingrato do Alberto não diz nada! Lá está em Espanha, a viver como um lorde. Quando cá veio, no Verão, parecia um principe, vaidoso e tolo!” E, a inveja que ressumava, ferina, das suas palavras, atingiu-a como uma bofetada.
“ Se ele está bem, é porque trabalha muito. E, telefona, todas as semanas, bem sabes!” disse ela com os olhos, rasos de lágrimas, uma fúria danada a crescer, impetuosa, dentro dela.
“ Telefona, todas as semanas? E dinheiro? Manda dinheiro para casa? Não é obrigação dele, mandar dinheiro para casa?”
“Obrigação dele, mandar dinheiro para casa? Porquê? Ele é um homem de bem e um bom filho! Tu, que és forte e saudável, porque não deixas de beber e trabalhas, a sério, como ele? Como eu, mesmo desempregada, como não te cansas de mo lembrar?”
Ele levantou-se, os olhos faiscantes de cólera, o rosto torcido de ódio, o pescoço arroxeado, as veias dilatadas, a latejarem, ameaçadoramente!
O diabo, ele lembra-me o diabo, do meu catecismo, quando eu era criança, pensou ela, num sobressalto aflito!
Um ronquido irado escapou-se-lhe, então, da garganta e ele fez menção de lhe atirar com o copo, que tinha mão, ao rosto, mas não se atreveu! O olhar dela, agora duro e frio, donde pareciam desprender-se chispas acesas de ódio e de desprezo, fixava-o desafiador!
Descontrolado, atirou o copo ao chão que se estilhaçou em mil pedaços de raiva! Depois, com um esgar de maldade, puxou uma ponta da toalha e a louça que estava em cima da mesa, partiu-se, em mil bocados.
Com a casquinada estrídula e alvar, de um vencido, saíu, cambaleante, da cozinha.
Poucos minutos mais tarde, a porta da frente bateu com tanta força que a casa abanou e pareceu desconjuntar-se. Ela estremeceu assustada mas, em seguida, respirou de alívio.
"Logo vem a cair de bêbedo! Como sempre!" E, exausta, encolheu os ombros!
A filha passou por ela, numa pressa indiferente, como se não se tivesse apercebido de nada. “ Até amanhã, mãe!” E dirigiu-se para a porta da rua.
Vestia uns jeans muito justos, um top muito decotado, que também lhe deixava parte da barriga de fora, um casaco de curto a imitar pele, o rosto, ainda muito jovem, carregado de maquilhagem. Atrás de si deixou o rasto forte de um perfume barato. Era tudo barato e vulgar nela! Ela própria, a sua filha, era uma prostituta barata e vulgar!
Abanou a cabeça e prendeu as lágrimas que se amontoavam no seu coração, que insistiam, teimosas, em subir e ameaçavam estrangulá-la, num nó apertado!
No súbito silêncio da casa, ela respirou fundo e começou a varrer os estilhaços dos copos e os cacos da louça, como destroços das vidas, que as telhas da sua casa encobriam, e que, agora, juncavam o chão da cozinha.

Lá fora, pousadas, em fila, na parede branca, da maior para a mais pequena, como um símbolo ingénuo de alegre harmonia familiar, como um singelo prenúncio, de uma Primavera eterna naquele lar, as inocentes andorinhas de barro continuavam, imperturbáveis, o seu infinito e infantigável voo, sem saírem do mesmo sítio!

MC

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

O Pavão e a bezerra











Juno, também conhecida como Hera na mitologia grega, a esposa de Júpiter é a rainha dos deuses. É representada pelo pavão, a sua ave favorita.

Júpiter era um amante do sexo feminino e, por esse motivo, Juno possuía muitas rivais, entre elas, a bela Io, que Júpiter, para defender de Juno, transforma numa bezerra. Juno, desconfiada, pede a bezerra de presente. Ora, Júpiter não podia negar um presente tão insignificante a sua mulher, e então, pesaroso, entrega a bezerra a Juno que a coloca sob os cuidados de Argos, um monstro de muitos olhos. Como Argos tinha cem olhos e nunca fechava mais do que dois para dormir, vigiava Io dia e noite.
Júpiter, perturbado pelo sofrimento da amante, pede a Mercúrio que mate Argos. Com músicas e histórias, Mercúrio consegue fazer com que Argos feche seus cem olhos e corta-lhe a cabeça. Juno entristecida recolhe os olhos que haviam perdido toda a luz e coloca-os na cauda de seu pavão, onde permanecem até hoje.

Os bichos na Mitologia



MC

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Confissões de uma cobaia humana

Ainda não nasci, nem sei quando vou nascer. Ainda não vejo, não conheço mas, já ouço tudo!
Sei, por isso, que, juntamente com a minha mãe, sou uma cobaia humana. Co-bai-a, gosto deste som!
A minha mãe tem o vírus da Sida! Ouvi-a contar que foi infectada pelo meu pai, um drogado manhoso. Eu não sei o que é um pai, nem sabia que tinha um, mas parece que pai é coisa ruim que traz desgraça! Também não sei o que é drogado manhoso mas, coisa boa, não pode ser!
Estamos as duas a experimentar um medicamento novo, que trata e pode impedir a transmissão da Sida, a doença da minha mãe, para mim e eu serei saudável.
Para que isso aconteça, somos cobaias humanas! Não sei o que é uma cobaia mas, deve ser bom, pelo menos, acho que sempre será melhor do que pai!
Sinto-me muito confortável, neste ambiente quentinho e aquoso da barriga da minha mãe embora, uma vez por outra, me tenha sentido mal, muito inquieta e aflita!
Sei tudo isto, porque ouvi a minha mãe dizer ao senhor doutor, (não sei o que é um senhor, nem sei o que é doutor), que me sente inquieta e aflita.
Ele disse-lhe que é normal e que estou a crescer cheia de energia.
Se calhar, energia são umas espetadelas fininhas que fazem doer, e os meus pontapés, quando me apetece mudar de posição!
A minha mãe diz que sou uma menina e que me vai comprar roupinhas bonitas, com lacinhos e um bercinho branco e cor-de-rosa, com o dinheiro que lhe deram para deixar experimentar o medicamento novo, nela e em mim.
Parece que era pobre mas, agora está tranquila e feliz! Acho que pobre é uma outra doença que ela também tinha mas o dinheiro, que, parece, é um medicamento muito bom, curou-a!
Ouço-a dizer que não me vai faltar nada, vou ter muitos peluches fofinhos, um quarto branco e cheio de luz!

Não sei o que é ser menina, não sei o que são lacinhos, não sei o que é o branco, nem sei o que são peluches. O que será a luz? E, fofinho, o que será?
Pela vibração da voz e do riso da minha mãe, deve ser tudo, assim muito quentinho, muito suave, como a barriga dela e, por tudo isso, estou ansiosa por nascer!
Mas, de há umas semanas para cá, ela não se tem sentido bem e eu também não. Ouvi-a dizer que está assustada e tem medo, por mim e por ela! Por sermos cobaias humanas! Mas, eu acho que deve ser bom ser cobaia, afinal, foi ela que quis!
Eu ouvi o doutor, (doutor faz-me lembrar pai!), dizer-lhe que ela sabia, perfeitamente, o que fazia quando assinou o contrato! Não gosto deste som: con-tra-to! Magoa, quando o ouço! Não é macio, como bercinho, cor-de–rosa ou roupinhas!
Senti que ela estava nervosa e ele disse-lhe para ter paciência, que esse mal-estar, (também não sei o que é um mal-estar!), não tem importância, vai tudo correr bem, ela vai ficar melhor e eu vou ser uma menina saudável! Saudável, eu acho que deve ser como o ninho macio, onde que me estendo e me enrolo!
Às vezes, a minha mãe diz-me, muito baixinho, que espera que eu tenha cabelo loiro e olhos azuis, como ela.
E, eu, embora não tenha a mínima ideia do que sejam cabelo, olhos, loiro e azuis, estou ansiosa por ter o cabelo loiro e os olhos azuis , para ser igualzinha a ela!
A minha mãe costuma cantar para mim e eu ficava muito quieta, só para a ouvir! Ultimamente, tenho andado muito agitada e, mesmo quando ela canta, já não me aquieto, dou pontapés e revolvo-me, revolvo-me, no ninho morno e sedoso, onde me aconchego! A voz da minha mãe já não suaviza estes picos fininhos, que me espetam tanto...
Sei que não estou bem, porque foi, exactamente isso, que a ouvi dizer ao doutor, quando também lhe disse que está farta de sermos cobaias humanas, que nunca devia ter assinado o contrato, (este som magoa!) e preferia nunca não ter recebido dinheiro nenhum!
Acho que, agora, preferia, mesmo, ter ainda aquela doença que se chama pobre, porque afinal isto de ser cobaia é que me tem feito mal! A mim e a ela!
Hoje, ouvi a minha mãe falar muito alto com o doutor, (não gosto dele!), que falou ainda mais alto e disse-lhe: “Cale-se!” A minha mãe não disse mais nada, mas chorou, que eu ainda a ouvi, embora um bocadinho ao longe, o que é estranho, porque estamos sempre muito juntinhas...!
De repente, apercebo-me que nem sequer me revolvo, ou dou pontapés! Já mal consigo respirar ou mexer-me Estou muito cansada!
Já pensei que talvez esteja assim porque estou, mesmo, para nascer e poderei, então, rebolar-me nos lacinhos cor-de–rosa, no bercinho, nos peluches e na luz! Gosto deste som: luz!
Se for isso, fico muito contente porque vou, enfim, ver o rosto da minha mãe e tocar e sentir o cheiro da pele dela. Ouvi-la, já não é muito importante porque já lhe conheço a voz e o riso e o choro.
Mas não! Não devo estar, ainda, a nascer! E, estou tão ansiosa por nascer...
Mesmo agora estou a ouvi-la gritar:” Doutor, que me deu para tomar? Porque me convenceu a ser cobaia e, comigo, a minha filha, desse medicamento novo, se não o conhecia, se não tinha a certeza de nada? Não sinto o meu bebé! A minha menina morreu! Posso não lhe ter transmitido a Sida, mas matei-a!”
Não sei o que é matar, nem quero saber! Estou muito cansada!
Continuo sem saber, realmente, o que é ser cobaia mas, seja o que for, agora sei, que não é bom! Estou muito cansada e tenho muito frio, tanto frio, apesar da barriga da minha mãe ser muito quentinha!
Para falar verdade, também não sei o que é morrer! Ou, talvez saiba!
Porque, se morrer, é não respirar, se morrer, é deixar de ouvir, se morrer é este indiferente e gelado abandono, então...morri!

Nota:Este texto, que pretende ser uma sentida homenagem a tantas vítimas inocentes de um doloroso flagelo, não foi lido, na sessão de 9/12 e ainda bem, porque o seu registo, que é o meu registo, é completamente diferente dos óptimos textos, que ouvi ler.

MC

domingo, 6 de dezembro de 2009

Uma vida

O quarto estava escuro, cheirava a mofo, a suor, a corpo mal lavado e a doença.
No meio, sobressaía a cama, onde mal se vislumbrava um vulto, sob as cobertas enxovalhadas.
Marta aproximou-se. Sobre a almofada, salpicada de nódoas de sangue e de pus, descansava uma cabeça mirrada, com o cabelo fino e ralo, em desordem, o rosto desfigurado, a pele amarela e enrugada. Na dobra do lençol encardido, descansava uma mão grande, descarnada, coberta de manchas castanhas.
Marta debruçou-se sobre a cama e viu uns olhos escuros, brilhantes de febre, fixarem-se nos seus. A vida que ainda teimava resistir, naquele corpo em ruínas, parecia ter-se concentrado, naqueles olhos remelosos, com pálpebras vermelhas e purulentas.
Ao inclinar-se, Marta quase pousou a mão no lençol áspero e os dedos esguios e ossudos, com unhas compridas, como garras, esgravataram, de leve, numa tentativa aflita para a alcançarem. Ela retirou a mão bruscamente, assustada e com repugnância.
Cheirava a urina infecta, aos fluídos escuros e pútridos que enchiam sacos pendurados ao lado da cama e, sobretudo, cheirava a abandono e a solidão!
Os olhos escuros, brilhantes de febre continuavam fixos nela. Seria num apelo ou, seria aquele, um último lampejo de maldade?
Ela sentou-se, recostou-se no sofá duro e desconfortável e os olhos vermelhos, orlados de pus, fecharam-se devagarinho...

Marta era a rapariga mais bonita do bairro. Alegre, ladina e estuante de vida, tinha uma graça e uma beleza que despertava acesas paixões.
António era um rapaz sem grandes atractivos físicos, calado, teimoso e, diziam, com mau feitio.
No dia que o conheceu, Marta apaixonou-se, irremediavelmente, por ele que, em silêncio, já há muito, morria de amores por ela!
Eram, no entanto, tão diferentes, que aquele namoro foi um espanto, para todos.
Marta tentou ajustar o corpo ao sofá e, recordou, com umestremecimento, o dia do casamento: um dia bonito e luminoso! Um dia de rosas e de alegres girassóis! Girassóis altos, radiosos, vibrantes de cor, virados para a luz! Mil sóis a brilharem só para ela!
Foram felizes mas, o nascimento do filho, o Ruizinho, marcou um subtil ponto de viragem no casamento, como se um dos nós que os prendia, se tivesse tornado lasso ou se tivesse mesmo desatado.
E, o António começou a mudar! Tornou-se ainda mais calado, mais frio, mesmo irascível! Distanciou-se e fechou-se num mundo só dele!
A vida estava cada vez mais dificil. António era ambicioso, queria ser rico e decidiu ir trabalhar para a África do Sul, em busca de fortuna!
A sua partida, se, até certo ponto, foi um alívio, foi também uma tristeza! Ficara um vazio. Abrira-se no coração de Marta um buraco pequenino, insistente, incomodativo! Era talvez saudade! Apesar de tudo!
Ela escrevia-lhe muitas vezes. Ele, só de vez em quando, escrevia umas linhas e mandava-lhe algum dinheiro! Que, mesmo sendo pouco, era uma dádiva.
Os dias arrastavam-se. Marta trabalhava numa fábrica e, ao Sábado, fazia limpeza em casa de uma das patroas. Sentia-se cansada mas não lhes faltava nada e o Ruizinho era um bálsamo e a sua companhia.
Quatro anos depois, o António escreveu-lhe a propôr-lhe que fosse ter com ele a África do Sul, onde, dizia, tinha, agora, uma bonita fazenda e vivia bem.
Com o coração a transbordar de alegria, tudo, em seu redor, se transformou num campo vasto de girassóis altos, radiosos, vibrantes de cor, virados para a luz. Mil sóis a brilharem, de novo, só para ela!
E aquela carta fria, quase formal, fez-se um poema, fez-se um hino, fez-se uma esplendorosa sinfonia!
Marta embarcou com o filho, cheia de esperança e de sonhos! O Ruizinho tinha crescido, era um menino desenvolto, bonito e inteligente e o pai iria, certamente, gostar muito dele!
A viagem de avião foi longa e penosa! Fechada naquele pássaro de aço, enorme, tolhida numa teia densa, de medo e de insegurança, do que iria encontrar, quase se arrependeu de ter saído da sua terra!

Já no aeroporto de Johannesburg, Marta, ainda que ligeiramente apreensiva, desembarcou com o coração a repicar de esperança e ansiosa por se lançar nos braços fortes de António! Para começarem uma vida nova, num país novo, tão diferente, tão colorido, tão luminoso, a cheirar a vida e a sol!
No aeroporto, de mão dada com o Ruizinho, sentiu-se, subitamente, perdida e inquieta, porque não via o António, em lado nenhum.
Começava a entrar em pânico, quando um homem mestiço, ainda jovem, se aproximou dela e perguntou: “ D. Marta Medeiros?”
“ Sim, sou eu”, respondeu com espanto. “ Eu sou o João Chipenda, o capataz, da fazenda da D. Mary Anne Tyler e sou eu que vou levar a senhora e o menino, até lá. O sr. Medeiros não pôde vir.”
Um imenso desapontamento estampou-se-lhe no rosto bonito e uma tremenda confusão e uma infinita tristeza desceram sobre ela, envolvendo-a num manto de gelo que a paralisou!
“ Não tenha receio,D. Marta! Ainda hoje, estaremos na fazenda!”, disse João com simpatia. Ela agradeceu e pareceu-lhe vislumbrar, nos olhos daquele desconhecido, uns laivos de comiseração que a assustaram.
A viagem de jeep foi longa, parecia nunca mais acabar e o nome Mary Anne Tyler pairava no seu cérebro, como uma nuvem negra a ameaçar temporal e desgraça!
Quando chegaram a Bethlehem, Marta estava exausta, tinha o corpo dorido, a cabeça meio-zonza e uma expectante ansiedade oprimia-lhe o coração.
Então, avistou António na enorme varanda, de uma casa ampla e ensolarada.
“O meu marido, a minha nova casa, ali, já tão perto, à minha espera!”, pensou Marta, com alegria e nervosismo, a tristeza e o cansaço já esquecidos!
Como uma noiva, na noite do casamento, Marta tremia de embaraço e de excitação, antecipando, numa trepidação de menina apaixonada, os abraços e os beijos do marido!
Mas, António recebeu-a friamente e ignorou o filho a quem não dirigiu um sorriso ou, uma palavra.
A seu lado apareceu uma mulher forte, sardenta e loira que ele abraçou pela cintura e que a fixou, curiosa, com uns olhos inexpressivos, de um azul deslavado!
Era Mary Anne, a mulher com quem António vivia e a quem parecia amar.
E, mesmo ali, Marta ficou a saber que seria uma espécie de governanta: orientaria e ajudaria na lida da casa e, como boa cozinheira que era, ocupar-se-ía da preparação das refeições.
Atónita, coberta de suor, morta de humilhação, destroçadas as suas expectativas de dias felizes, gritou que era ela a mulher dele mas, António, empertigado e arrogante, voltou-lhe as costas.
Estupidificada de assombro e de dor, Marta deixou-se levar para o quarto que partilharia com o filho, nos anexos da casa grande.
Sozinha, presa numa revolta brutal que parecia envenená-la, Marta, numa agonia, vomitou uma aguadilha amarga, verde e amarela, e chorou! Chorou incontrolavelmente!

Mary Anne era uma mulher branda e desligada, que parecia desconfortável na presença dela. Sentada na varanda, sombreada por exuberantes buganvílias, que se entrelaçavam, numa explosão de cor, gostava de ler avidamente os jornais e as revistas que recebia, regularmente, de Johannesburg, de passar um tempo infinito a arranjar e a pintar as unhas e jogar a canasta, duas vezes por semana, com três amigas, que viviam em fazendas vizinhas. Não era simpática mas, não era autoritária, nem exigente.
António, porém, parecia não ver Marta, não lhe dirigia palavra e, quando o fazia, era ríspido, sobranceiro e rude.
Com Mary Anne era, ostensivamente, terno, solícito, mesmo deferente!
O filho foi obrigado a trabalhar na fazenda e não ía à escola. Marta trabalhava incansavelmente, preparava refeições para os dois e para os muitos amigos que estavam sempre a receber. A qualidade e variedade da sua comida tornaram-se conhecidas e muito apreciadas! Contudo, não tomava as refeições que preparava, à mesa com eles, o que até era uma benesse, nem recebia qualquer salário, o que era uma injustiça!
Soube, entretanto, como presumira, que a fazenda era de Mary Anne. Depois da morte do marido, num terrível acidente, nunca inteiramente esclarecido, António, que trabalhava na fazenda, insinuara-se, assumira-se, um ano mais tarde, como senhor da casa e soubera tornar-se imprescindível, na gestão dos negócios!
Marta sentia-se como um pequeno rato que, imprudente e indefeso, mordera o pedacinho de queijo que servia de engodo e ficara, mortalmente, preso na ratoeira!
O isco que ela, sôfrega, mordera, tinha sido a esperança de ser feliz, ter uma vida famíliar equilibrada, feita de afecto, de alegria e de companheirismo! E, enfeitada de girassóis!
E, como abundavam girassóis, naquela terra! Girassóis altos, radiosos, vibrantes de cor, virados para a luz! Mas, esses mil sóis amarelos não brilhavam para ela!
Marta não tinha dinheiro nem conhecia ninguém a quem pudesse pedir ajuda. Nem mesmo em Portugal!
O ódio e o nojo que sentia por aquele homem cresciam... cresciam... Um ódio profundo que lhe preenchia a única fantasia que lhe era permitido ter: vê-lo morto!
Desejou-lhe, todos os dias, ardentemente, a morte! Uma morte lenta, dolorosa, solitária! Pensou, até, matá-lo! Mas, abafou esse pensamento negro, dentro de si: matá-lo seria perder-se e perder, magoar o filho! E isso, nunca!
Entretanto, António parecia, agora, segui-la, guloso, com os olhos. Aparecia-lhe, de repente, nos corredores, na cozinha, pelos cantos da casa. Quando a apanhava sozinha, agarrava-a, tentava apalpar-lhe os seios, abrir-lhe a blusa e meter-lhe a mão por baixo da saia, tocando-a, conspurcando-a!
Enojada, Marta gritava e, como uma enguia enfurecida, fugia-lhe por entre os dedos.
Um dia, ao entardecer, quando ela, como de costume, ía a entrar no quarto, para refrescar o rosto e dar um jeito ao cabelo, ele surgiu-lhe de um canto, prendeu-a, com violência e fechou a porta à chave. Marta gritou. António, meio louco, fora de si, talvez bêbedo, continuou a prendê-la entre os seus braços fortes, bateu-lhe para a dominar e rasgou-lhe a blusa. “ És minha, és minha e faço de ti e contigo o que eu quiser, ouviste?”
Estarrecida, Marta gritou com a força de uma desmedida raiva e ele tapou-lhe a boca com a mão, sufocando-a.
De repente, ouviu-se a voz do João, o capataz, gritar: “ D. Marta, o que se passa? Abra a porta! Mrs. Mary Anne Tyler anda a passear no jardim, aqui perto! Vou chamá-la!”
António, subitamente quieto, olhou esgazeado para a porta, largou-a e atirou-a, violentamente para o chão. Depois, como um animal acuado, perdeu-se, cobarde e rasteiro, na escuridão que, entretanto, caíra.
Ainda no chão, Marta recusou aceitar que aquele horror, aquele assalto nojento, tinha acontecido a ela. E, de repente, teve a estranha sensação de se ter perdido de si própria e de, num total desligamento, ter abandonado o corpo e pensar que, aquela mulher humilhada que, de um canto do quarto, via estendida, a seus pés, ferida e meio-desnuda, não ser ela!
Aquilo era um invólucro vazio que talvez já tivesse sido ela... Aquele podia ter sido o seu corpo mas, ela já não estava ali! Então ela, a essência dela, onde estava?
Desmaiou e tudo se desvaneceu num imenso caos!
Mrs. Mary Anne Tyler, naturalmente, nunca apareceu e nunca soube de nada!

Uns dias depois, João perguntou-lhe: “ D. Marta, a senhora quer voltar para Portugal?” A chorar, ela respondeu baixinho: “ Quero! Mas, João, como posso pensar em voltar se não tenho dinheiro, nem conheço ninguém que me possa ajudar?”
“ Vamos ver, D. Marta! Tenha calma e não tenha receio! Quero que saiba que estou sempre atento e por perto! Conte comigo, com a minha ajuda e protecção!”
Na semana seguinte, uma irmã do João e o marido levaram-nos , de noite, em segredo, a Johannesburg e meteram-nos num avião, para Lisboa.
Marta nunca soube como o João arranjou o dinheiro para comprar os bilhetes, como os comprou, vivendo eles nos recônditos do país, assim como também nunca mais teve notícias dele.
Gostava de pensar naquele rapaz mestiço, que tanto a ajudara , como se ele fosse um anjo, uma daquelas pessoas que atravessam os caminhos mais negros e mais tortuosos, dos mais infelizes, para os suavizar, e para os iluminar e enfeitar com mil girassóis, com mil sóis amarelos!
Já em Portugal, nunca contou a ninguém o que se passara em Bethlehem, a não ser à Clara, sua amiga desde sempre e viúva do irmão do António, que morrera uns meses antes.
Marta não voltou para a fábrica. Foi trabalhar para a loja do sr. Clemente, um solteirão simpático e educado, com quem começou a viver, tempos depois. Ele amou-a e foi, para o Ruizinho, o pai que ele, verdadeiramente, nunca tinha tido. Educou-o, acompanhou-o e ajudou-a a fazer dele, o homem de bem que era hoje.
Clemente fora uma dádiva preciosa que transformou o deserto árido que era a sua vida, num jardim imenso de ternura e de paz.
Tinha sido a Clara que lhe dissera, uma semana antes, que António tinha regressado ao país, há uns meses, vivia num quartito miserável, estava muito doente e pedira para vê-la.

Marta estremeceu como se acordasse de um medonho pesadelo e, antes de os ver, sentiu os olhos grandes, brilhantes de febre e orlados de pus, fixos intensamente, nela .
Não sentiu ódio, nem piedade, nem a compreensível satisfação, perante a morte lenta, dolorosa e solitária daquele homem desumano e perverso, carrasco feroz, de tantos dos seus sonhos!
Levantou-se, olhou-o uma vez mais e, friamente, com uma profunda indiferença, voltou-lhe as costas.
Nesse momento, numa voz, inesperadamente forte e rouca, o seu nome rasgou, num apelo desesperado, o silêncio pesado, doentio do quarto: “Marta!”
Parou, hesitou uma fracção de segundo mas não olhou para trás, continuou a andar e saiu!
Na rua, a luz quente e poderosa do sol entonteceu-a.
Encostou-se à parede e deixou que essa luz lhe aquecesse o corpo entorpecido e a alma, esgotada pelas recordações que acabara de exorcisar! Para sempre!
Respirou fundo e quase correu, ao encontro do Clemente, que a esperava, no carro, com um sorriso, onde brilhavam os mil sóis radiosos que lhe iluminavam os dias.


Nota: Este “conto” que pode parecer o enredo rocambolesco de uma telenovela mexicana, é quase inteiramente baseado no relato de uma vida, dolorosamente amassada com lágrimas, humilhações, perdas e cardos mas, também adoçada com amor, bondade, esperança e radiosos girassóis, que me foi feito, no hospital, já há uns anos, por uma doente, uma “ Marta”, já velhinha.

MC