domingo, 24 de maio de 2009

A minha mais longínqua memória

Lembro-me dela, um vulto sem rosto, fixo na minha memória, meio-soerguida na cama, junto à janela, com os braços magros, estendidos, na ânsia de um abraço.
E, à porta do quarto, uma mulher apertava, nos braços fortes, dominadores, uma criança que gritava, chorava e esbracejava, na tentativa vã de se aninhar, pequenina, na ternura doce daqueles braços esguios e febris.
O vulto sem rosto era a minha mãe, a criança, que chorava, era eu.

E, foi a visão dessa criança chorosa, aflita, subjugada e sedenta de afagos e de beijos, que a minha Mãe, os braços estendidos para mim , vazios de mim, levou consigo!
Tive, sempre, saudades da Mãe que mal conheci mas, também tive, sempre, saudades daquele pedaço de mim que foi, juntamente com ela, brutalmente arrancado dela e... arrancado de mim! Para sempre!


Nota: - Este texto foi escrito, em vinte minutos, na sessão do dia 29 de Abril.

MC

Entrevista em vinte minutos

Vestimos a pele de jornalistas e, em vinte minutos, foi-nos feito, na sessão do dia 22 de Abril, o desafio de inventar as perguntas que fariamos ao nosso insigne entrevistado, Dr. Mário Cláudio, assim como as suas respostas.

Vestida de jornalista e de Mário Cláudio, aqui fica a entrevista possível:


Jorn. - Quero agradecer-lhe o facto de me ter concedido esta entrevista, Dr. Mário Cláudio.

M.C. - Sim? Não sei porquê!

Jorn. - Não...?

M.C. - Não! Sabe, eu falo pouco e, sobretudo, não gosto de falar de mim. E isso é muito mau, para si, enquanto entrevistadora!

Jorn. - Se sabia que era mau para mim, porque acedeu a que o entrevistasse? Porque não recusou?

M.C. - Porque pediu com tanta insistência que eu já não sabia como escusar-me e, se calhar, porque sou um bocadinho mau...

Jorn. - E agrada-lhe ser mau?

M.C. - Às vezes, até me agrada mesmo muito, ser mauzinho e observar uma reacção como a sua, neste momento: confesse que está desconcertada e... zangada! Bem, vamos lá à primeira pergunta.

Jorn. - Quando percebeu que a escrita era o seu destino?

M.C. - Não sei. Acho que escrevo, desde que me conheço. Desde sempre, mesmo quando não tenho papel e lápis comigo, tenho a escrita, na minha cabeça.
Observo a vida que passa por mim e a escrita nasce. Não dissocio a vida da escrita.

Jorn. - Gosta assim tanto de escrever? Porquê?

M.C. - Porque gosto das palavras. Gosto de as escolher, de as misturar, de as escutar, de esgrimir com elas ou, de as rejeitar. Às vezes, as palavras amam-me, outras odeiam-me!
Nos dias felizes, elas falam comigo, confiam-me segredos, cantam e riem para mim. Mas,nos dias cinzentos, são caprichosas, sabe? São difíceis e mimadas as palavras! Por isso, nesses dias maus, zangam-se comigo, fazem birra e recusam-se, teimosas, a saltar, bonitas e delicadas, para o papel em branco!

Jorn. - E, o que faz, então?

M.C. - Olhe, aprendi a esperar que apareçam e voltem a brilhar. Depois, perdoo-lhes os caprichos e mimo-as. Elas sabem que são parte essencial do meu mundo mas também sabem que, sem mim, sem a minha capacidade de as alinhar e conferir sentido e emoção, não teriam vida! A vida das minhas palavras é-lhes dada por mim. E, então, de repente, elas voltam, choram e riem comigo, no papel.
As palavras, minha querida, são como as mulheres, zangam-se, amuam para, depois, se deixarem amar, perdoar e mimar!

Jorn. - E, o Sr. Doutor, escreve só porque gosta?

M.C. - Escrevo, essencialmente, porque a escrita me dá um imenso prazer mas, também porque gosto que me leiam, me entendam e me apreciem! Se não gostarem, quero que me critiquem construtivamente!

Jorn. - O que sente, quando acaba um livro e o entrega à Editora?

M.C. - Sinto que estou a entregar um filho que pari com muito sacrifício, com muito suor e muitas lágrimas, um filho que tem muito de mim, que é parte de mim e leva consigo, muito de mim mas, do qual, nesse momento, me desligo. Completamente!

Jorn. - É um escritor muito premiado, no nosso País e no estrangeiro. Gosta de ganhar prémios?

M.C. - Adoro...!

Nota - A apreciação do Escritor quando li esta entrevista inventada, que lhe fiz, foi: " Leva-me muito a sério!"

MC

Um quarto de hora de escrita

No jardim suspenso, no cimo da montanha, ela bordava, com o seu bastidor, os sonhos infinitos que a prendiam ao passado, à partida do navio que, no mar, à mercê de tempestades,de peixes e de baleias, lhe arrebatara a alma e perdia-se no labirinto cinzento da saudade, assombrado por ternas lembranças e mil tristezas!
Como uma esfinge impenetrável, olhava, sem ver, o horizonte. A seu lado brincava o filho, no seu cavalo de pau, inocente e ainda indiferente aos enredos da vida.
ao longe, um touro pastava, manso e ronceiro, num campo coberto de erva e pequenas flores amarelas.


Nota: Este texto foi escrito, durante um quarto de hora, na sessão do dia 8 de Abril, e onde tinham, obrigatoriamente, de constar as palavras e expressões em Bold.

terça-feira, 12 de maio de 2009

...esta madrugada, exactamente, às 4.35!

O som estridente e contínuo do telefone soou, como uma explosão, no quarto quieto e escuro. Ela acordou, num sobressalto e olhou, estremunhada, para o relógio, na mesinha, onde os ponteiros luminosos marcavam o tempo. Indiferentes e paulatinamente!
Eram, exactamente, 4.35 da madrugada!

Que hora tão despropositada para um telefonema, pensou. Seria alguma das filhas? O coração disparou e, ansiosa, atendeu o telefone com uma voz ligeiramente esganiçada: “ Estou?”
“ Amei-te sempre! Adeus!”
Já completamente desperta e atónita com a mensagem, ainda repetiu, a voz de falsete, ainda mais alta : “Estou?”, “Estou?” mas, a chamada terminara!
O marido, meio-adormecido, agitou-se e resmungou: “Quem era?” “ Não sei, deve ter sido engano! Dorme!”
Ele virou-se para o outro lado, de novo, perdido no mundo sem limites e insondável do sono.

Mas, ela não! Ficou acordada, com os olhos bem abertos no escuro e com aquelas estranhas palavras a martelarem-lhe o cérebro. A voz roufenha, lenta e abafada, como se viesse de muito, muito longe ou, como se os sons fossem articulados, com infinito esforço, pareceu-lhe, levemente, familiar. Impressão sua! Fora um engano! Apenas!

Tinha andado todo o dia nervosa, numa inquietação esquisita, com aquele friozinho desagradável na base do estômago e um aperto na garganta, incomodativo, quase doloroso, como uma garra poderosa...
E, tinha-se lembrado continuamente e, para seu espanto, do Miguel Centeno!
Há quanto tempo ele não lhe vinha, tão insistentemente, à ideia!
O Miguel tinha sido um colega de trabalho. Estavam agora, ambos reformados, não se viam há uns dois anos e não se falavam, talvez, há mais de dez! Um afastamento que, no início, fora tão súbito, quanto doloroso, sobretudo, porque ela nunca compreendera a razão de ser daquela ruptura!
A última vez que vira o Miguel, foi no funeral de um amigo e, verdade seja dita, ela, de repente, quase não o reconheceu: estava mais gordo, os olhos pequeninos, com papos e a pele, talvez por causa do frio, estava, estranhamente rosada!
Estava tão diferente! Não parecia o mesmo homem elegante, bem parecido e com aquele charme que não se adquire, já é inato!
Reconheceu-lhe contudo, num tímido esgar, um resquício do bonito sorriso que, de vez em quando, lhe iluminava o rosto, com a luz radiosa, que vem da alma!
Ocorreu-lhe, de repente, que a voz que ouvira ao telefone, era parecida com a dele. O Miguel, no entanto, não era pessoa para brincadeiras e atitudes de mau gosto, como aquela! Era sério, muito contido e... estava muito zangado com ela!

Os dois tinham sido bons amigos, nunca houvera nada de menos próprio entre eles, nem um abraço mais profundo, nem um beijo mais sentido mas, havia, indiscutivelmente, entre os dois, um vibração tão forte e especial que, quem estivesse por perto, sentia, mesmo sem querer, o poder dessa atracção transbordante!
Ela nunca esquecera a sensação estranha que a inundou, como uma vaga tumultuosa, a primeira vez que o vira entrar na sala de convívio da empresa: não lhe viu claramente as feições porque ele parecia saído de um nevoeiro que lhe nublava a visão. Era como se ele, enquanto se dirigia a ela, estivesse envolto numa aura diáfana que o distinguia de todas as outras pessoas.
Mais tarde, pensou se ele seria, nas malhas que o destino tece e destece, a alma gémea que, dizem, todos temos e que vinha, enfim, ao seu encontro, tardiamente!
Conversavam muito, entendiam-se bem, a corrente eléctrica que se estabelecera entre eles, sublimada numa delicada amizade que crescia, crescia.

Depois, talvez porque a percepção daquele poderoso magnetismo, daquela atracção quase palpável, entre os dois, forte emais para passar despercebida, tivesse sido consourcada por gente mesquinha e maldosa; talvez devido a uma urdidura nefanda de intrigas e mentiras de mentes doentias; talvez por receio, a verdade é que ele, se foi afastando, foi deixando de lhe falar e, um dia, disparatou, desabrido, com ela, devido a uma observação jocosa mas inocente que ela fizera, na sala de convívio da empresa. Foi mesquinho, rude e de uma espantosa falta de educação! E, talvez, por cobardia, propositadamente, em público!
E, ela afastou-se,digna e discreta, embora profundamente surpreendida, ofendida e... muito zangada!

A cabeça começara a doer-lhe, enquanto via os minutos a passarem, no relógio luminoso, na mesinha.
Não dormiu mais nessa noite, mergulhada em lembranças que o tempo, moinho lento mas implacável, moera, moera e jaziam desfeitas e já quase esquecidas, bem lá no fundo do baú da memória, o coração ainda acelerado e aquele friozinho desagradável, na base do estômago e o aperto, como uma garra, na garganta!

Levantou-se muito cedo. As tarefas da manhã, ocuparam-na e acalmaram-na.
Às onze horas, estava pronta para ir ao supermercado e à lavandaria.
Foi então que o telemóvel tocou. Meio-receosa, porque a chamada era anónima, atendeu. Era a Margarida.
Depois de umas palavras de circunstância, e uns risinhos sem graça, a Margarida disse: “ Tenho uma notícia triste para te dar: o Miguel Centeno faleceu!”
As palavras, duras e frias, atingiram-na como uma punhalada e, incrédula, quase morta de ansiedade, perguntou atabalhoadamente:
“ Faleceu? Porquê? Como? Quando?”
“A filha, quando comunicou a morte, disse que ele já estava doente há uns tempos e, ontem, o estado de saúde agravou-se inesperadamente e o coração não aguentou. O Miguel morreu...”

Ela já não ouvia a Margarida que falava, falava, o telemóvel caído no chão. Afinal, as lembranças não estavam, assim, tão desfeitas, no baú da memória!

Com o coração aos tropeções, já sem o friozinho desagradável no estômago, nem o aperto, como uma garra, na garganta mas, a cabeça a estalar e as lágrimas a rolarem, em cascata incontida, pelo rosto abaixo e a mancharem-lhe a blusa branca, ela completou a frase, muito baixinho:
“ ... esta madrugada, exactamente, às 4.35!

MC