domingo, 25 de outubro de 2009

Uma paixão revisitada... Dois olhares!

Ele

Ele recostou-se, esgotado, no sofá do escritório! A mulher já tinha ido para a cama, ver a sua série preferida, no AXN.
As filhas dormiam placidamente!
Tinha-a visto hoje! Pela segunda vez, em onze anos, tinha-a visto, esta manhã! Ela saía da carrinha Volvo que conduzia, bonita, elegante, flexível, como a recordava! Mais mulher, talvez! Mas, também mais atraente!
Ela não o vira. Melhor assim! O coração dele disparara, num turbilhão de doidas emoções, como se uma rajada de vento o tivesse atingido brutalmente e as mãos, trémulas e suadas, atrapalharam-se, como se, de repente, não soubessem o que fazer com o volante!
Nunca a tinha esquecido, a imagem dela tinha permanecido gravada, no mais íntimo de si e essa secreta permanência dela, junto dele, dera-lhe sempre um certo conforto!
Tinha viajado muito mas, para onde quer que as suas atribulações o tivessem arrastado, ela estivera lá, a seu lado e, por isso, nunca se sentira, totalmente sozinho. Porque, como alguém escreveu, “ se a imagem do ser amado continuar viva no nosso coração, o mundo inteiro é a nossa casa.”
É estranho, pensou, nunca tinham sido namorados! Mas, tinham-se amado! Ele amara-a! Muito!
Ela era uma menina azougada, cheia de carácter e de energia e ele tivera de crescer muito depressa e aprender, antes de tempo, que a vida é feita de penosas cedências e de dolorosas opções! E, ele cedera! E optara! Talvez, aparentemente, pelo mais fácil, pelo mais agradável, pelo mais conveniente! Pelo que, mais tarde, o pudesse realizar plenamente, e fazer feliz, como homem, seguramente, não!
A mulher apareceu à porta e perguntou, num tom plangente que o aborreceu e irritou: “ Não vens deitar-te? Amanhã, levantamo-nos tão cedo!”
“ Já vou! Não te preocupes comigo! Dorme!”
A mulher parecia recusar-se a crescer! Comportava-se como a menina rica, fútil, mimada e aborrecida que era, e cobria telas e telas de tintas coloridas, a que chamava, pomposamente, pintura! Era, pois, na cabeça dela, pintora!
Ele tinha as motos, as corridas, o Paris/Dakar, os carros!
Nunca tinha havido entre a mulher e ele essa delicada intimidade, essa terna cumplicidade que só os verdadeiros amantes conhecem! Era como se uma parede invisível mas, indestrutível , se interpusesse, permanentemente, entre eles! Constrangendo-os! Separando-os!
Recostou-se, outra vez, no sofá e recordou o momento em que o amigo de sempre, o Alex, lhe telefonou a dizer que ela tinha acabado de ter um acidente.
O dia ensolarado e luminoso tornou-se, então, subitamente sombrio, o coração bateu desorientado, como se tocasse a rebate, as pernas tremeram, de repente velhas e fracas mas, em minutos, estava ao lado dela!
Encontrou-a vestida com uma enorme farda de bombeiro, porque tinha caído, com o jeep, a um riacho, numa prova de obstáculos! Viu-a sã e salva, o cabelo encharcado, ainda a tremer, como um gatinho assustado e perdido no jardim, em dia de chuva e, lembrava-se bem, sorriu feliz! O dia, então, clareou, o sol cobriu de ouro, tudo em redor, e o peso na alma dissolveu-se, como um pedaço de gelo, em água quente.
Abraçou-a e respirou fundo! De alívio!
Levou-a a casa e esteve a seu lado, enquanto ela contava aos pais, assombrados, aquele incidente de menina travessa!
Em catadupa, reviveu a noite, em que a foi acompanhar a casa e o portão da garagem desceu mais depressa do que esperava e ele, absorvido nela, bateu-lhe em cheio, com o jeep que, então conduzia. O portão estragou-se completamente. A recordação dessa noite, a inquietação e o susto dos dois, bem resolvidos graças à compreensão dos pais dela, fizeram-no sorrir de novo, no aconchego do escritório!
Entretanto, a vida dele tinha ficado num caos: o relacionamento dos pais quase em ruptura e as empresas de família, em queda vertiginosa, devido à cabeça doida do pai, com mulheres e jogo! A aflição e o desgosto da mãe era mais do que podia suportar!
Interrompeu o curso que nunca mais terminou, e deitou mãos a uma das empresas, com a ajuda do pai da, agora, sua mulher que, entretanto, decidira que ele seria seu marido, custasse o que custasse e a quem ele se submeteu, para poder suportar a casa, ajudar a mãe e permitir que as duas irmãs mais novas continuassem a estudar! Sem dificuldades!
Como se nada tivesse acontecido e a vida, sem um balanço, sem um tropeço, continuasse serena e deslizante, como um belo passeio, à beira- mar, em tarde amena, de verão!
Trabalhou, duramente, no interior de Moçambique, na exploração de madeira e tornou-se o empresário bem sucedido que era hoje!
O noivado e os preparativos para o casamento, passaram por ele, como um sonho, de que ele parecia não fazer parte!
Quando, enfim, acordou daquele sonho estranho e inquieto, daquele amontoado de cenas confusas, daquele pesadelo delirante, estava casado!
Vendi-me, fui um fraco e, no fundo, todos os que diziam que me amavam, quiseram que me vendesse, em seu próprio benefício, pensou com amargura!
Ele casou no Verão. No início desse ano, quando ela fez, com êxito, o exame na Ordem dos Advogados, ele, que acompanhava, de longe, todos os seus passos, mandou-lhe entregar, no escritório, duas dúzias de maravilhosas rosas chá! Sem cartão! Não era preciso... Ela sabia!
Um mês depois, no dia dos Namorados, um dia que, afinal, não era deles, mandou-lhe, também e ainda assim, um precioso ramo de rosas, agora, vermelhas! Sem cartão! Não era preciso... Ela sabia!
À namorada não foi capaz de dar flores! À namorada, não!
Ele nunca lhe falou das rosas. Ela nunca lhas agradeceu! Não era preciso... Eles sabiam!
Um Sábado, à noite, encontrou-a numa discoteca e ficaram, longas horas, a conversar, enquanto os olhos namoravam e, apaixonadamente, diziam o que as bocas não se atreviam dizer, as mãos se enredavam e o coração batia, batia...
À saída, a namorada estava à espera dele, viu-os juntos e fez uma patética cena de ciúmes, de choro e de lamentações que o envergonhou e enfureceu tanto, que se dispunha a pôr fim a tudo e a assumir que a amava e era ela que ele queria, quando ela, com uma voz firme e o olhar azul, frio e duro, disse à chorosa rapariga, agora sua mulher, abrindo, inteiramente, mão dele: “ Não se preocupe! Somos só amigos! Não há nada entre nós! Sejam felizes!”
Um dia, pouco antes do casamento, encontraram-se numa estação de serviço, na auto-estrada.
Lembrou-se, com angústia, da sensação de desamparo e de perda, quando a viu, do tornado violento de paixão e de mágoa que se apossou dele e fez desaparecer tudo, num louco rodopio, numa rajada de vento que a deixou, só a ela, à sua frente!
Ela nunca soube quão difícil foi para ele, tentar manter a calma e dizer-lhe, em jeito de despedida e num mal disfarçado despreendimento:
“ Não sou o homem que mereces! Não sou digno de ti! Vais encontrar alguém, muito melhor do que eu, que te vai fazer muito feliz!”
E abraçou-a! Apertou-a nos braços e aspirou, pela última vez, o perfume da pele dela! Com o coração desfeito, com a vida em farrapos, perdido num túnel frio, escuro, sem retorno e sem saída!
Separaram-se e, hoje, em onze anos, era a segunda vez que a via! Tentou respirar fundo, para aliviar a opressão que parecia esmagar-lhe o peito!
E, compreendeu, que o seu amor por ela, continuava vivo e infatigável, sempre renascido, como um braseiro que se reacende, vibrante, com uma rajada de vento!
Esfregou os olhos e, numa urgência, quis, plasmado em si, o aroma suave dela, dos cabelos revoltos dela, quis, desesperadamente, sentir o toque macio de pele dela, na sua, de mergulhar o olhar dele, turbulento e impaciente, no oceano azul, puro e sereno dos olhos dela!
Então, como a árvore que, sempre que chove, chora, também ele, porque a vira tão perto e a soube tão longe, como a árvore, fustigada pela chuva, chorou!



Ela

Eram quase onze horas da noite quando ela estacionou o carro na garagem.
Ao longe, ouvia os latidos de alegria da Maggie, a fiel lab que, ansiosa com a chegada da dona, descia apressadamente as escadas para, aos saltos, lhe dar as boas vindas!
Estava cansada…o dia tinha sido longo e ainda tinha um trabalho para entregar, por email, em mais um curso que decidira fazer para valorizar o seu CV.
Era obcecada por trabalho, sabia disso... Uma qualquer doença que a impelia ocupar-se até à exaustão! Questionava-se se o fazia por efectiva necessidade de se aperfeiçoar ou, para se abstrair da vida rotineira que vivia com Miguel, o seu companheiro de há quase seis anos.
Subiu as escadas e viu-o, no corredor, sorridente e afável, como habitualmente. Pensou que o final da paixão é triste e que não aceitará, de novo, a presença de um homem dentro de casa, da sua casa… Precisava de espaço! Sentia-se asfixiar dentro do único local onde deveria ser capaz de relaxar e descansar, a sua casa. Abriu a boca, num esgar cínico, ao lembrar-se que o Miguel nunca se mudara definitivamente para a sua casa, conservando vazio o apartamento que comprara há anos, em Matosinhos Sul. Tinha sido uma decisão acertada.
Cumprimentou-o, distraída e distante, e avisou-o que tinha de trabalhar. Como sempre….
Precisava de estar sozinha e.. de pensar. A Maggie acompanhou-a, num silêncio cúmplice, sossegando-a, com a sua respiração ritmada, na caminha ao lado da secretária dela. Ela olhou com ternura para aquele focinho preto que, tranquilamente dormia, virado para ela. Apesar da alegada irracionalidade dos cães, ela não deixava de se surpreender com o amor e carinho que aquele corpo felpudo tinha para lhe dar.
O dia fora complicado. Muito trabalhoso e cheio de adrenalina e desafios. Mas não era essa a razão da pontada que sentia na nuca…
Tinha-o visto, parado num grande Mercedes, naquela manhã, perto de casa dela. Não sabia se ele a teria visto. Ela viu-o e muito bem…
Ele, de todos os homens que se cruzaram com ela, foi o único a ter lucidez suficiente para perceber que nunca conseguiria viver com ela.. Apesar de ser o mais arrogante e truculento de todos, foi o único que compreendeu que com ela nunca conseguiria sustentar uma relação amorosa convencional. Os outros, tolos, ainda se acharam capazes…para depois capitularem… Um vive ainda numa eterna adolescência… Mas, se esse a ensinou que o casamento não era para ela, o Miguel mostrou-lhe que ela é incapaz de partilhar o seu espaço com quem quer que seja, embora ele tenha tido o melhor dela e o tenha desperdiçado quando, há três anos a abandonou durante seis meses. Os actos têm consequências, ainda que estas se revelem muito mais tarde… Pecados velhos têm longas sombras...
Lembrou-se que lera, numa revista no cabeleireiro, que ele tinha duas filhas. Ele seguiu um percurso que ela, teimosamente, não segue ... A mulher dele, aparentemente fútil, mas, na verdade madura e decidida, tinha conseguido construir com ele, a família grande com que sempre sonhara.
A verdade é que o amava muito mais do que ela o amou. Soube abdicar de tudo, incluindo do amor próprio, para casar com ele. Ela não...! Orgulhosa, arrogante e senhora de si, deixou-o ir. Protegeu-o, inclusivamente, perante aquela que seria mulher dele, quando esta, numa espera enciumada, a viu a deixá-lo junto ao carro, um dia de madrugada, na Ribeira, depois de uma noite apaixonada… Ele nunca lhe perdoou a frieza e o sangue frio, quando abriu mão dele, para sempre… “Se fosse ao contrário, eu teria dito que nós tínhamos um romance… eu tinha estragado tudo, quanto mais não fosse, pelo prazer de estragar…” disse-lhe ele, numa das últimas vezes que a viu junto à praia, naqueles encontros, à socapa, dos amantes que não eram, ao que ela, segura e firme, retorquiu, “Não queiras que seja eu a resolver os teus problemas!”
Viram-se na estação de serviço da Mealhada há onze anos.
Não foi por acaso… Ele sabia que ela frequentava o mestrado em Coimbra, porque já se tinham encontrado, mais do que uma vez, na auto-estrada, quando ele ia ao cardiologista nos HUC. Chamou-a com o pretexto de não ter bateria no carro. Ela foi ter com ele… Como sempre! Ele queria despedir-se dela... Nunca lhe disse que casava esse Verão… Meses antes, tinha-lhe enchido o escritório, de rosas chá, como presente pelo sucesso nos exames da Ordem e por outra coisa qualquer, ( talvez o Dia dos Namorados que nunca foi deles)… mandou-lhe, então, um fantástico ramo de rosas vermelhas, da Florista Antónia, situada na rua da Venezuela, onde vivia a namorada dele e onde ela viveu poucos anos depois... Ri-se, ao lembrar-se que, por momentos, ainda tinha posto a hipótese que aquelas maravilhosas flores, tivessem sido mandadas pelo colega de escritório, o João, que, coitado, nem uma esmola tinha para dar a um pobre!
Ele admirava-a intelectualmente como nenhum outro a admirou... Sem complexos! Talvez porque foi o único que sempre soube e teve a consciência que não viveria com a capacidade intelectual e a tenacidade dela! Os outros não...
Foi, nesse dia, que se despediram. Disse-lhe, então, como que para se convencer e a convencer, que ela encontraria alguém melhor. Ela achou que sim! Aquela paixão esgotava-a e amarfanhava-a, apesar de a ter feito crescer. Ela até já tinha encontrado um namorado interessante(o tal que lhe mostrou que o casamento não era para ela)e para ela aquela despedida era para sempre, definitiva.
A libertação de um jugo que se cansara de transportar, uma dor que jurou nunca mais voltar a sofrer …
Recordou o dia em que ela tivera aquele acidente com o jeep, numa prova TT, ele correra a socorrê-la! Chamaram-no e ele assustou-se... Protegeu-a à frente de todos, sem hesitação! Abraçou-a, com força, ansioso! Mas, não a ajudou a contar aos pais ... ela fê-lo sozinha, assumindo as consequências. Ainda assustada mas, sem medo!
Sorriu ao lembrar-se do incidente da porta da garagem. Completamente perdido, a olhar para ela, que estava do lado de fora a aguardar que ele saísse, para estacionar o jeep que conduzia, nem viu o portão descer. Ainda há semanas ela e o melhor amigo dela lembraram esse episódio com gargalhadas… Terá feito treze ou catorze anos, no dia do aniversário da mãe dela… Premonição…
Também aí, ele não a ajudou a explicar nada ao pai.. ela fê-lo , aliás, como quase tudo na vida, sozinha! Assumiu as consequências… O pai é que nunca acreditou que a filha fizesse tamanho disparate ao volante do seu querido jeep! E a verdade foi reposta. A mãe dela soube sempre a verdade. Foi uma bizarra prenda de aniversário…
Ele viajou muito, trabalhou em Moçambique. Ela lembrou-se , com um tremor, dos telefonemas que ele fazia quando se sentia só e dos reencontros emocionados, às vezes, ainda mal refeito do jet lag.
Mas ele casou, porque quis...! Não foi, certamente, assim tão mau… Ele sabia que jamais o faria com ela… não, com ela!
Hoje, ela sabe que a decisão não foi difícil, porque nunca houve alternativa.
Actualmente, ele é um empresário com sucesso, a que não será estranho o capital do sogro. O seu hobby continua a ser competir com motas. Tem mesmo uma equipa. No entanto, os êxitos não são muitos. Parece que ainda não conseguiu acabar o Paris Dakar. Mas, irá, certamente, continuar a tentar! E, para isso é essencial ter dinheiro, muito dinheiro...
Sim… ele hoje tinha-a visto no carro... Ela também o viu... Sentiu o coração a bater mais depressa quando recordou o rosto dele. Aos olhos um do outro ter-se-ão visto, como naquele encontro na estação de serviço: ele, esguio e tenso... ela, bonita e firme, sem que fossem visíveis, as marcas que, por dentro, foram sendo cinzeladas, ao longo dos últimos onze anos.
Mas, como há cinco anos, quando ela o viu sozinho na discoteca, sem ele a ter visto, ignorou-o e seguiu, segura e impassível, em frente, sem olhar para trás!
Ele tinha tentado telefonar-lhe, nessa tarde, depois de a ver… Ela, por acaso, não atendeu… Era um número privado que ela soube não ser da mãe dela…

Nota: Este texto, "... Dois olhares!", foi, como o título indica, escrito a duas mãos!

MC/SC

domingo, 18 de outubro de 2009

Terror azul

Amélia era uma senhora alta, magra, já entrada em anos, mas ainda bonita.
Vivia naquela rua desde que casara, há mais de três décadas, e era uma referência de afecto e simpatia para os vizinhos, porque sempre tinham tido a sorte de poderem contar com ela, para ficar com os filhos, quando tinham de sair à noite, nas férias escolares ou, quando chegavam tarde do trabalho. Amélia não tinha tido filhos mas ajudara a criar muitas crianças.
Enquanto o marido foi vivo, elas vinham para casa dela. Ali, lanchavam, brincavam, faziam os trabalhos e casa e, muitas vezes, almoçavam ou jantavam. Em casa, havia sempre uma alegre agitação que lhe preenchia os dias.
Agora, que estava sozinha, não se importava de ir ela, sobretudo à noite, a casa dos vizinhos, ficar com as crianças que adoravam os seus biscoitos gostosos e estaladiços e as histórias que lhes contava ou lia, antes de adormecerem.
Havia, no entanto uma casa onde jurara a si própria nunca mais voltar. O André, um rapazinho de oito anos, loiro, com olhos azuis e rosto angélico era, mais do que muito travesso, um menino inquieto e inquietante, imprevisível, com reacções estranhas, que lhe causava uma inexplicável repulsa e lhe provocava arrepios e aquele incómodo friozinho na base do estômago!
Havia qualquer coisa de maligno no brilho metálico e gelado do olhar azul, daquele menino com aspecto de anjo!
Na última noite que lá estivera, faltara, subitamente, a luz e, na profunda escuridão que pareceu submergir tudo na sala, bateram portas, soaram gemidos angustiados e gritos roucos, medonhos, à mistura com gargalhadas pesadas, horrendas a ressumarem maldade! Umas mãos, certamente umas mãos, grandes e carnudas, enrolaram-se-lhe, no pescoço, como uma serpente assassina! Sentiu-se quase morrer de susto e de aflição!
Quando aquele horror parou e a luz inundou, de novo, todos os recantos da sala, o André dormia, serenamente, , a seu lado, no sofá e, quando ela, numa incontrolável perturbação, tentou comentar, com ele, um pouco do torvelinho de horripilante violência que vivera, ele olhou-a, com espanto e com uma indisfarçável desconfiança, como se ela fosse louca!
Nunca tivera coragem de falar com alguém sobre aquela estranha noite! Muito menos com os pais do André. Teve medo que a julgassem doida ou, que pensassem que estava a ter uma perigosa recaída, no abismo negro da tristeza depressiva que a amarfanhara, depois da morte súbita do marido!
Tanto mais, que os sulcos fundos e vermelhos, deixados por aquelas mãos, eram certamente mãos, fortemente, enroscadas no seu pescoço, tinham desaparecido, como por magia!
Amélia estava nervosa.
A mãe do André telefonara a pedir-lhe que ficasse com o filho, na noite seguinte. Ela recusara de imediato mas, a senhora insistiu no seu pedido, porque confiava inteiramente nela, não tinha mais a quem recorrer e tinha de acompanhar o marido áquele jantar que, na verdade, a aborrecia mas que era muito importante para a carreira dele.
Por fim, acedera mas sentia-se inquieta, quase zangada consigo própria pela sua fraqueza e, sem saber porquê, levou a Bíblia consigo!
Nessa noite, porém, o André parecia cansado e sem disposição para travessuras.No ambiente sereno e acolhedor, da casa, Amélia começou a sentir-se melhor, mais calma e descontraída!
Deu, aliás, consigo a admirar a beleza suave e pura daquele rosto de menino que falava sobre a escola, os amigos e as brincadeiras no recreio, e sorria, inocente, para ela!
No quarto, leu-lhe uma história particularmente bonita de que ela sempre gostara muito: “O Principe Feliz”. Depois aconchegou-lhe a roupa e, quando ía a sair do quarto, o André pediu-lhe que se sentasse um bocadinho no sofá azul, perto da cama. Surpreendida, foi à sala buscar a Bíblia e sentou-se. Abriu-a, à sorte, e começou a ler o “ Sermão de Montanha”, Evangelho, segundo S. Mateus: "Olhai os lírios do campo; eles não trabalham nem fiam...”
Lindo e muito poético este sermão! E os lírios, tão bonitos, tão aveludados, tão esguios!
Tinha de plantar lírios, lírios brancos, roxos e amarelos, no jardim e reler o belíssimo livro de Erico Veríssimo, decidiu, com um ligeiro sorriso.
De repente, o André, com uma vozinha ensonada, pediu-lhe que lhe desse um beijo de boa noite. Um pouco aturdida, levantou-se, pousou o livro aberto no sofá e surpreendeu-se, de novo, com a serenidade, a beleza delicada daquele rosto de criança e com a doçura dos olhos azuis do André.
“Que engraçado, nunca tinha reparado como esta criança é linda e como são ternos e irresistíveis os seus olhos de um azul tão límpido mas tão profundo!” pensou, com espanto.
Debruçou-se e quando se preparava para lhe beijar a face macia, o André abraçou-a. Com força! Com uma força brutal que ele não podia ter e que quase a sufocou!
Depois o abraço enfraqueceu ligeiramente e ela viu, com horror, aquele belo rosto de criança, escurecer e desfigurar-se, num esgar maligno, assustador.
No quarto, avançava, aos roldões, uma escuridão densa que parecia engulir tudo. As coisas íam perdendo a forma, fundindo-se num todo viscoso, informe, afogado num mar de repugnante negrume! Como se a essência das coisas, dissolvendo-se, se tornasse parte de um caos infinito!
Aterrada, apenas viu dois pontos de luz: uns olhos que já não eram olhos, mas eram duas chamas vivas, brilhantes e vermelhas e os braços que, agora, a estrangulavam, eram fortes, negros, gelados e coleantes como cobras poderosas.
Simultaneamente, explodiam , no ar, gargalhadas roucas, enlouquecidas,demoníacas e,
no ar, espalhava-se o cheiro acre a queimado, da Bíblia, agora reduzida a um pequeno monte de cinzas, em cima do sofá azul.

MC

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

A despedida

Quando ela entrou no restaurante, já ele a esperava. Era um homem alto, interessante, que esbanjava o charme discreto das pessoas bem nascidas . Elegante, como sempre, pensou ela, com amargura.
Tinham tido uma relação feliz, estável e longa. Ela, pelo menos, sempre pensara que tinham sido felizes. Que eram felizes! Amara-o muito! Amava-o ainda. Tanto!
Fazem um lindo par, diziam os amigos. Completam-se tão bem, diziam os familiares.
Às vezes, do que temos mais saudade, pensou, são das pequenas coisas, dos pequenos gestos, do banho apressado, de manhã, dos beijos roubados, debaixo do chuveiro, de um passeio molhado por uma chuva inesperada, de um filme especialmente bom, das conversas ligeiras ao jantar, do vinho tinto apreciado, lentamente, junto à lareira, do beijo à saída de casa, do beijo do reencontro, à noite, da partilha das novidades, das historietas do dia. Mas, era sobretudo o sorriso dele, aquele sorriso bonito, que vinha de dentro e lhe iluminava o rosto, lhe aquecia a alma e lhe dava sentido à vida, que lhe fazia mais falta!
Ele viu-a à porta e dirigiu-se a ela. Sorriu ligeiramente e cumprimentou-a com dois beijos distraídos, de circunstância.
Ela estremeceu de ansiedade, possuída de uma súbita incerteza, quando o sorriso dele, outrora caloroso e terno, a trespassou, gelado, como uma lâmina fria e afiada.
Acompanhou-a à mesa, trocaram trivialidades e escolheram o almoço.
Ela tinha-se esmerado e, sabia-o bem, estava muito bonita e elegante. Mas, também nervosa e angustiada.
“ Quando é o casamento?”
“ Dentro de quinze dias, mas isso, aqui, não interessa nada! Ainda não me disseste foi, porque razão, precisáste, palavra tua, deste almoço comigo.”
“ Para me despedir de ti e para te entregar esta caneta que esqueceste lá em casa. Fui eu que ta ofereci, lembras-te? É tua!
“ Ah! A caneta! Obrigado! Pensei que a tinha perdido.
“ Não, não a perdeste, embora se tenha perdido tanto, entre nós, ultimamente! Quase não acredito ainda, que tudo acabou, que tudo morreu e vai, dentro de quinze dias, ser esquecido e enterrado, definitivamente, no teu fraque de noivo!
“ Não digas isso! Nada acaba! Apenas, às vezes, como aconteceu connosco, se modifica! Continuo a ter um grande carinho por ti e os anos que vivemos juntos marcaram, profundamente, a minha vida!Esse é o meu passado, o nosso passado, e um pedaço de mim ficou, para sempre, preso a ele!"
Ela não respondeu, a garra na garganta cada vez mais apertada e o coração a debater-se no peito, numa pulsação aflita, de animal enjaulado.
Apeteceu-lhe bater-lhe, insultá-lo e...chorar! Mas, ficou quieta, calada!
Mantiveram-se em silêncio, durante grande parte do almoço, como se todas as palavras, entre eles, já tivessem sido ditas!
Ele, depois da sua tirada dramática, parecia enfastiado e distraído.
E ela, à sobremesa, com o coração quase a estourar de agonia, a garra na garganta, quase a soltar-se, manhosa, para se desafogar nas lágrimas que lhe começavam a alagar os olhos, disse, num rompante:
“ É muito bonito e comovente o que disseste há pouco! Mas, a verdade, é que nunca quiseste casar comigo e vais casar com essa rapariguinha loira, bem mais nova do que eu, é claro, e que, com o ar inocente e cândido de um anjo, te assegura, entre beijinhos castos, que nunca amou, nunca se entregou a nenhum homem, senão a ti! E tu, embasbacado e vaidoso, finges que acreditas...”
“ Cala-te! Não estragues o almoço, não amargures, ainda mais, esta despedida que quiseste, que me pediste!”
De cabeça perdida, sem o ouvir, doida de raiva e consumida na labareda incandescente , incontrolável do ciúme, continuou:
“ Essa rapariga que te enfeitiçou, já deve ter tido mais de uma dúzia de namorados, dormiu com todos eles mas, só porque ela te disse, num sussuro angélico: “ Só tu, antes e agora, meu amor!”, acreditas que é pura, como um recém-nascido, não é?
“ Vou-me embora! É melhor para ambos! Esquece-me! Deixa-me ir e segue com a tua vida!”
“ Tens assim tanta pressa de ir para os braços magricelas e desajeitados dela? E eu? Queres que, depois de todos os anos, todos os dias, todas as horas de amor que vivemos juntos, e que vejo agora lançados fora, como farrapos velhos, esteja serena, bem disposta e te deseje felicidades?”
Já sem a ouvir, cansado, meio-assustado com aquela veemência desesperada e com o coração pesado e submerso numa súbita tristeza, ele pagou a conta, junto à caixa, e saiu.

Ela continuou sentada à mesa, o coração aos tombos, o olhar vazio e as mãos a tremerem. Quando o empregado levantou os pratos, viu a caneta que lhe oferecera no dia 14 de Fevereiro, dois anos antes, e que ele usava sempre! Era uma Cartier, com as iniciais AC gravadas a ouro. As iniciais dela e dele: Ana Cristina / António César. Esse tinha sido, lembrava-se bem, um dia luminoso, prenhe de promessas e de amor!
Ele não levara de casa, nada que o fizesse lembrar-se dela! Nem a caneta!
Ficou muito tempo com aquela pequena jóia, comprada com tanto carinho, na mão.
Sentia-se pesada, carregada de recordações, de mágoa e de saudade. Era um carrego quase insuportável que estava condenada a arrastar consigo!
Aquele, fora apenas mais um almoço. Lamentável e escusado!
Compreendeu, no mais íntimo de si, que nunca seria capaz de, realmente, se despedir dele, nunca seria capaz de o “deixar ir”, como ele pedira! Iria guardá-lo, teimosamente, ciosamente, pateticamente, com ela, para sempre!
Esse pensamento doeu-lhe e...enfureceu-a!
Levantou-se para ir embora. Quando ía a sair, o empregado que os servira, veio a correr ter com ela, com a caneta na mão: “Esqueceu-se disto, minha senhora!” Ela olhou para ele e, sem um sorriso, perguntou-lhe: “ Como se chama?”
Aturdido, ele respondeu: “ João Miguel”
“ Fique com a caneta! Mande apagar essas iniciais e gravar as suas!
Boa tarde!”

MC

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Educação: Espanha vs Portugal!

Numa das minhas últimas estadas em Espanha, tomei conhecimento, pela imprensa, que o Governo Regional de Madrid pretende fazer aprovar uma nova lei para reforçar a autoridade dos Professores e dos Funcionários escolares.
A Presidente do Governo Regional de Madrid, Esperanza Aguirre explicou que o objectivo desta lei é ” ensinar os jovens a comportarem-se de forma civilizada” já que, como se sabe “ não se pode falar de liberdade sem regras”, sendo “ esta a melhor forma de prevenção contra o vandalismo”. E contra a marginalidade, digo eu!

De acordo com esta Lei da Autoridade do Professor,” todos os docentes e funcionários do ensino Básico e do Ensino Secundário terão a condição de Autoridade Pública”, como a polícia e os magistrados.
Deste modo, todas as agressões físicas ou verbais, que possam vir a sofrer, são consideradas crime público, não dependendo de queixa, com consequente agravamento das sanções penais a aplicar. Esta alteração intensifica, sob ponto de vista legal e social, a censura destes comportamentos.

Assim sendo, os Directores de cada escola enviaram aos pais e aos encarregados de educação, cujo envolvimento é considerado vital, os detalhes das normas, algumas das quais já vigoram mas, que serão reforçadas pela nova lei.
As Equipas Directivas terão uma acrescida responsabilidade na manutenção da ordem e da disciplina, nos Estabelecimentos de Ensino que dirigem, pelo que, os seus salários serão reforçados, tanto mais que,
esta medida tem, naturalmente, o apoio do governo de Zapatero.

Qualquer semelhança entre o carinho, o respeito e a preocupação das autoridades espanholas, para com os seus Professores, e o que se tem passado, nesse domínio, em Portugal, nestes últimos quatro anos, é pura ficção e a mais delirante fantasia!

Nota:Este texto não foi aceite, para publicação, pelo JN! Obviamente!!!!!

MC (23/09/2009)