quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

IRA: Libertação e Disciplina

Quando a Ira e o Ódio se defrontam...

Ela sentiu a porta de casa abrir, para logo se fechar com violência. Sentiu, com um arrepio, que ele estava, outra vez, mal disposto, zangado. O cheiro pútrido da sua ira que, como um polvo, parecia estender os tentáculos por toda a casa, procurando-a, maligno, para a prender e oprimir, atingiu-a, ainda mesmo antes de a encontrar, como uma pedra de fogo.
Respirou fundo e tentou sossegar o coração que disparara e batia forte e incerto, provocando-lhe uma aflitiva falta de ar. Teve medo!
Mexeu a sopa e começou a cortar o tomate, em fatias finas, para a salada. Não se voltou quando ele entrou na cozinha, infectando, tudo em seu redor, com os miasmas pestilentos, contaminados, da sua ira maléfica, que ela tão bem conhecia!

Onde estavas? Telefonei duas vezes, não atendeste, onde estavas?
Calada, continuou de costas para ele, a cortar fatias finas de tomate, com as mãos a tremer, quase sufocada.
Olha para mim e responde!
Ela voltou-se devagar, como em câmara lenta, a faca esquecida na mão e olhou para ele. Encolheu-se!
Aterrorizada, viu diante de si, aquele homem alto, forte, com os olhos brilhantes, raiados de sangue, um olhar duro e frio, como de uma serpente, o rosto alterado e uma veia grossa, como uma corda, a latejar na testa. Aquele homem que era, desgraçadamente, seu marido.
Fui à mercearia, respondeu , num sussuro.
À mercearia? Assim, tão bem arranjada? O que foste fazer?

Sem esperar pela resposta, aproximou-se dela, de um salto e esbofeteou-a! Atingiu-lhe o nariz, o sobrolho esquerdo e o lábio. O sangue jorrou! De cabeça perdida, agarrou-a pelos cabelos e bateu-lhe outra vez. Na mão, ficou-lhe um punhado de cabelo loiro, deu-lhe um empurrão brutal e ela caiu desamparada. Gritou e urinou-se quando ele lhe deu um pontapé impiedoso, nos rins!
Ali ficou, deitada no chão, vulnerável, cheia de dores, esgotada. Como de costume, ele falou, falou, gritou, como um demónio, a contorcer-se, num inferno de fogo e de ira! E, como sempre foi irónico, foi sarcástico, foi insultuoso! Foi malévolo e foi cínico!

Mas, ela não o ouvia!

Caída no chão, num repentino flashback, reviveu doze anos de agonia e de calvário! Doze anos de casamento, amassados com lágrimas, sangue, medo!
Recordou todas e cada uma das pancadas, dos pontapés, dos empurrões; recordou, com mágoa, o sofrimento dos dois abortos que sofrera, das humilhações e do constante terror que lhe enegrecia os dias!
Estarreciam-na aquelas frequentes e súbitas explosões de uma ira terrível, violenta, incontrolável, por pequenas coisas e, às vezes, que ela soubesse, por nada, seguidas de uma calma doentia, de uma quietação estranha que sempre a assombrara e de intoleráveis carícias e rudes manifestações de afecto que, geralmente, acabavam em longas sessões de sexo que a enojavam, vilipendiavam e eram uma torturante violação para o seu pobre corpo espancado!
Mas, como ele dizia depois, com um risinho lúbrico e maligno, excitava-o, irresistivelmente, senti-la assim frágil, cansada, submetida a si, aos seus mais loucos desejos!
Nunca ninguém a ajudara, nem a família, que não acreditava, ou fingia não acreditar, nos inenarráveis ataques de ira, daquele bom homem, como eles diziam, nem a polícia a quem, uma vez, para nunca mais, ousara apresentar queixa.
O agente destacado para levantar o auto, exigira que ela relatasse tudo, com todos os detalhes e ouvira-a, indiferente, como quem faz um frete, mas, com um leve sorriso canalha e o olhinho lascivo que a despia. Enfureceu-se, envergonhou-se, arrependeu-se! No fim, com um olhar velhaco para o colega do lado, o agente disse-lhe que veriam o que se podia fazer.
Já em casa, sozinha, com medo de represálias e de lhe despertar, mais furiosamente, a ira, não dormira nessa noite e retirou a queixa no dia seguinte!

Estava tão farta, tão exausta, tão desesperada!

De repente, esquecidas as palavras, ele perdeu-se no silêncio frio da cozinha e aquietou-se. Ainda caída no chão, ouviu-o dizer, nessa quietação estranha, que nunca deixara de a assombrar:
Levanta-te, amor! São horas de jantar. Sabes que te amo. Olha para mim! Levanta-te!
Limpa o sangue do teu corpo! Isso não é nada!
Casámos há doze anos e vamos ficar juntos para sempre! Eu só quero proteger-te! Sabes, querida, detesto que me contraries e teimes em não fazer as coisas, como eu gosto! Tens de aprender a satisfazer os meus gostos, a obedecer às minhas ordens! É assim tanto e tão difícil o que te peço?

E, com um olhar carregado de sensualidade, continuou:

Estás cada vez mais bonita, perfeita e desejável! Ah! Como és desejável e como eu te desejo!
Mas quem és tu sem mim? Uma qualquer, para aí, na rua.! Não quero isso para ti, amor! Lembra-te, só quero o teu bem!
Anda, levanta-te! Limpa o sangue do teu corpo, vá! São horas de jantar. Serve a sopa!

Este homem é doido, pensou. Tanto tempo, sozinha, nas mãos de um louco!

Estava farta daquele rosto, agora tranquilo e doce, como o de um noivo, mas, ainda há pouco, medonho, congestionado, contorcido; tinha medo daqueles olhos brilhantes, raiados de sangue, irados, que pareciam expedir chispas de fogo; enojava-a aquela boca que se abria, agora, num arreganho, a imitar um sorriso e onde, não há muitos minutos, os dentes escorriam ira!

Encolhida no chão, sentiu-se suja, humilhada, corrompida pela ira, pela loucura maldosa, pela irracionalidade daquele monstro!
A seu lado, sob a saia, sentiu a faca.
Levanta-te, anda! Está a fazer-se tarde para o jantar!

Ela levantou-se, devagar, a faca na mão, escondida nas pregas da saia.

A expressão dos teus olhos mete medo! Que tens? Não me provoques! Tem juízo! Anda, serve a sopa! Depressa ! Tenho fome e apeteces-me, depois, amor! A minha sobremesa predilecta és tu, sabes?

Uma vaga imensa e negra, de ódio, há tanto tempo acumulado, inundou-a e quase a submergiu, cegando-a!
Como uma sonâmbula, dirigiu-se a ele.
E, de repente, o dique que continha o seu ódio, um ódio vivo, que fora crescendo, crescendo, fortalecendo-se e refinando-se, ao longo do tempo, como um vinho especial, raro no corpo e no travo, cuidadosamente envelhecido, esse dique que barrava a sua repulsa, a sua raiva, o seu nojo, rompeu-se fragorosamente e, com um grito, arrancado do mais profundo das suas entranhas, do mais íntimo do seu ser, ela enterrou-lhe a faca no ventre.!
Uma vez... duas vezes... três vezes...
Umas facadas mais fundas, outras mais superficiais mas, todas temperadas com o ódio acerado, com o infinito desespero e com o terror sufocante, vividos, durante doze anos de amargura!

Agora, era ele que estava caído no chão, um corpo torcido, grotesco, com a expressão de um imenso espanto, na cara, agora branca como a cal, os olhos frios de serpente, já meio-opacos e, por fim, quieto, enfim, calado!

Com o rosto cheio de sangue, o olho esquerdo tão inchado, que não abria, uma dor excruciante a tolher-lhe os rins, toda urinada, o corpo dorido das pancadas, do empurrão brutal e da queda, ela ali estava, de pé, a ouvir, não as ironias baratas, não os sacasmos torpes, não os insultos gratuitos mas, o estertor cavo, aflitivo, horrendo, da morte. Ali ficou, serena, imóvel, a vê-lo morrer devagar, numa agonia lenta, como um animal feroz, danado, finalmente, abatido, subjugado, submisso!
A seus pés!

E, ela, pela primeira vez, em tantos anos, livre, apaziguada, tranquila, senhora de si, senhora do seu destino!
Fosse, qual fosse o seu destino!!!

MC
( A Ira - Pecado mortal)

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

DA HUMILDADE


“ A noite abre as flores em silêncio e deixa que o dia receba os agradecimentos” (Tagore )


Se me pedissem para dar uma forma visual, para ilustrar a Humildade, eu pintaria um lírio branco do campo. Um lírio roxo, não! A cor roxa significa luto, tristeza e lembra a Quaresma, e o sofrimento de Cristo.
A Humildade não tem, necessáriamente, de ser triste. Pelo contrário! É uma virtude delicada, positiva e enriquecedora, embora seja, talvez, uma das mais difíceis de pôr em prática.!
Na verdade, há situações na nossa vida, tão geladas, tão cinzentas e tão injustas, que nos perdemos, mesmo sem querer, da branda Humildade!
Todos sabemos como, instintivamente, rejeitamos uma crítica dura e, muitas vezes, sem sentido, a um trabalho feito com infinito cuidado e empenhamento; sabemos como é devastador ver um projecto, arquitectado com extrema dedicação, cair estilhaçado aos nossos pés e ser sumariamente, recusado; sabemos como dói que as nossas palavras sejam desvirtuadas ou escarnecidas ; sabemos como é arrasador sentir o trabalho de uma vida, desprezado, desvalorizado, e posto em causa, simplesmente, porque quem o avalia, não está à altura de o fazer!

Daí, dizer-se que a Humildade é coisa de Santo, pois implica aceitação sem reservas e, saber dar, de coração aberto, a outra face!

Não sei se será exactamente assim mas, pensando bem, o ser humano já deve trazer consigo, quando nasce, uma certa dose de Humildade pois tem, inevitavelmente, de aceitar as perdas e o sofrimento, como algo natural, que faz parte da vida e encarar as dificuldades como desafios, alguns bem penosos, que se empenha em vencer, para não soçobrar, liminarmente, na sociedade a que pertence! Para não sucumbir a um irremediável, excruciante desespero!
E, a constante percepção da fragilidade da sua condição humana dificilmente o deixa esquecer que, na vastidão incomensurável do Universo, é apenas um grãozinho de pó que o vento, um dia, levará consigo...

Eu gosto daqueles pequenos gestos, tantas vezes repetidos, feitos lírios do campo, de que poucos se apercebem mas, que estão lá, esguios e brancos, com o brilho suave do cetim, a enfeitarem –nos a vida! A nossa e a dos outros!
Gosto da humildade intelectual, delicada como a flor de cetim que se agita e ondula, na brisa suave do entardecer e nos permite dizer “não sei” , quando não sabemos, “ não fui eu que fiz”, quando não fizemos e nos leva a valorizar o talento daqueles que não gostam de nós e a quem nós, pessoalmente, também não apreciamos!

Creio, no entanto, que a grande dificuldade, na prática desta virtude, será, talvez, saber encontrar a sua justa medida! Santo, certamente, sabe e percorre, sem grandes tropeços, o caminho espinhoso da Humildade!
Mas, para o comum dos mortais esse caminho não é fácil e, a qualquer momento, pode resvalar para o terreno infecto da subserviência ou, descambar para o terreno lodoso e fétido da arrogância!

Na verdade, não será, talvez, difícil, no cruel jogo de interesses da vida, que o ser humano, quase sem se dar conta, dispa a veste branca e acetinada do lírio do campo e vista, acocorado, ou, com uma vénia servil, o fato horrendo e negro da subserviência!
O subserviente não tem coluna vertebral, é um títere nojento que, perdendo a sua independência e individualidade, verga-se, submisso, ao jugo de outros que se consideram seres superiores, aceitando-os, ele também, como tal! E, na sua condescendência abjecta, o subserviente rebaixa-se! Despersonaliza-se! Rasteja!

Por outro lado, se o ser humano que se diz humilde, ultrapassar certos limites, e não resistir a impor a sua vontade, conspurca o vestido branco, de cetim, dessa virtude que eu quis flor do campo, lança-o fora e enverga, com vaidade e orgulho, o atavio vermelho e áspero da arrogância, que, de mãos dadas com o egoísmo, a prepotência e a ignorância, é própria daqueles que recusam o enriquecimento que o contacto com os outros lhes pode proporcionar, e fecham-se num círculo tão pequenino, estreito e medíocre, como eles próprios, recusando aprender com a riqueza e a diversidade deste mundo variado e deslumbrante, onde vivemos!
Há, por exemplo, palavras de pretensa solidariedade e pedidos de desculpa que, escondidos sob a capa diáfana da humildade, mais não são do que arreganhos de malícia, de acinte, de insulto!

Quando é esta virtude de cetim , fugidia, branca e frágil, que está em estudo, é importante também, que se reflicta sobre aqueles que nos governam e nos gerem, uma vez que dependemos, em larga medida, da sua capacidade ou, incapacidade governativa!
Perante essa responsabilidade tremenda, penso, que a virtude principal de um governante é, exactamente, a Humildade!
Os verdadeiros governantes são aqueles que, com grandeza de alma e conscientes da sua transitoriedade nos cargos e da sua pouca importância, neste vasto e multifacetado mundo, se preocupam em ouvir, em compreender, em aceitar e em corrijir, quando percebem que estão errados.
Porque, essencialmente, nunca esquecem que ninguém é perfeito, que ninguém possui a verdade absoluta!
E, quando, na sua Sabedoria e Humildade, aceitam voltar atrás, seja no que for, acreditam que não estão a ceder, nem a perder a face, nem se estão a diminuir, nessa aceitação!
Pelo contrário, agigantam-se e, mais importante ainda, sabem que se tornam mais fortes, mais confiáveis, mais respeitados!
Se um governante, ou um qualquer superior hierárquico, quando fala, diz eu, eu, eu e persiste, teimosamente, cegamente, em manter as suas opiniões, porque, no seu juízo toldado pela ignorância, ceder é cair, ele ou ela descredibiliza-se, esvazia-se, como um saco inútil, cheio de ar e jactância e rapidamente cai no ridículo e torna-se passado!

Porque: “ Ninguém é tão grande que não possa aprender nem tão pequeno que não possa ensinar.”

Nesta reflexão sobre a Humildade, a virtude de medida difícil, que eu quis, com a aparência de lírio do campo, ataviada de branco e de cetim, e sem pretender ser aduladora, não resisto a perguntar:
Não estaremos nós, neste Atelier da Escrita, nesta sala, neste momento, a dar um fantástico exemplo de Humildade, quando lemos os textos, incompletos e toscos, que vamos escrevendo, esforçadamente, perante todos os outros participantes e, muito especialmente, perante um escritor de talento, experiente e arguto?
E, não será, também, um gratificante acto de Humildade, esse escritor galardoado, lido por esse mundo fora, escolher debruçar-se sobre esses textos, incompletos e toscos, escutá-los atentamente, comentá-los, apontando falhas e particularidades com a superior intenção, quero crer, de, corrijindo-os, nos ajudar a abrir novas perspectivas, no tortuoso, solitário mas arrebatador, caminho da escrita?

Dei a forma de lírio à Humildade, porque vejo, nesta virtude, a beleza, a graça e a simplicidade dessa flor do campo, branca e acetinada que, forte na sua fragilidade, enfrenta e resiste às intempéries e ressurge linda, delicada e graciosa, cada Primavera!

MC
“Atai as mãos a vosso vão receio
Que, eu só, resistirei ao jugo alheio”






“Atai as mãos a vosso vão receio”



Nessa manhã serena de Outubro, a primeira de um ano lectivo já perdido no tempo, vi-o tranquilo e sorridente, na aula de apresentação.
Era mais um aluno, entre tantos e nada me fazia advinhar a satisfação que me daria depois, no decorrer desse ano, pela vivacidade da sua inteligência, pelo seu incansável interesse por tudo o que o rodeava, pela sua gentileza de pequeno cavalheiro, numa turma de rapazinhos irrequietos.
Escoaram-se os meses, o ano acabou e outro começou, numa sucessão infinita de fim e de princípio.

E, entre surpreendida e orgulhosa, fui-me apercebendo de como crescia e se preparava com afinco, para o brilhante futuro que se abriria perante ele.
Com o tempo, porém, uma incómoda sensação de distanciamento, como se, tendo tomado a direcção errada, se afastasse para muito longe, muito para além do meu alcance, começou, de mansinho, a apoderar-se do meu cérebro, dos meus sentidos, do meu coração, alertando-me, inquietando-me, como um sinal de aviso irritante, insidioso e contínuo.

Primeiro, uma leve modificação, mais pressentida do que observada, de tão subtil e ténue; depois, cada dia mais acentuadamente, as marcas de uma terrível mudança foram-se estampando no seu rosto pálido e vincado, nos olhos encovados, sem brilho, nos ombros curvados e magros, no seu aspecto, ora desolado e triste como um grito mudo de desesperado abandono e de pungente desalento, ora agressivo, arrogante e cínico.
Nunca andava sozinho, parecia fazer parte de um bando qualquer, sempre acompanhado de indivíduos desleixados, emagrecidos, com um aspecto terrível!
Foi-se afastando cada vez mais e rejeitou, como algo inútil, que se deita fora, o convívio terno e a preocupação, cheia de incertezas, dos pais, as amenas conversas comigo, essencialmente, sobre livros, e a companhia dos “velhos” amigos.

E, de súbito, atordoada, com a alma transida de aflição e de espanto, compreendi que, já pouco ou nada, restava do rapazinho que, um dia, me fora confiado e que, orgulhosa, eu via crescer ! Crescer demasiado rapidamente, talvez!.

Mas, se crescer é difícil, o crescimento sem estruturas sólidas que lhe sirvam de suporte, pode ser tremendamente perigoso.
É então, que o apelo do desconhecido, o desejo de experimentar sensações novas, a ânsia incontrolável de afirmação, se tornam demasiado fascinantes para se lhes resistir.
Tornou-se-lhe difícil e, mais tarde, mesmo impossível, deixar de perseguir, ainda que cada dia mais inseguro, inquieto e só, a tentadora miragem de mundos diferentes e excitantes, os paraísos dourados de completa felicidade, que o pó prometia, e sem dúvida, mais sedutores do que a realidade rotineira e morna do dia-a-dia de um jovem inconformado.

Não sabia, nem podia ainda saber, que a vida é assim mesmo: rotina mesclada de tudo, pequena manta de retalhos feita de estranhas calmarias, violentas tempestades, ocultas elevações místicas e doces arroubos de amor.
E, assim, nessa eterna simbiose de Bem e de Mal de que somos feitos, todos temos os nossos ideais de bondade, de perfeição e de grandeza; zonas de luz e de paz que nos conferem dignidade e nos aproximam de Deus.

Mas, todos temos também os nossos abismos, buracos negros, imundos, onde habitam os monstros sombrios dos nossos medos ancestrais, da nossa iniquidade.
E, quando muito jovens ainda, frágeis e vulneráveis, ousamos descer ao fundo do nosso terror e mergulhar no pântano viscoso e negro das nossas angústias e frustrações inconfessadas – como ele fez – corremos o risco de um completo desiquilíbrio , num resvalar lento, contínuo e imparável que fere, dilacera e acaba por matar!

Tantas vezes tentei falar-lhe e estender-lhe a mão mas, isolado, fechado num casulo tecido de medo, dúvidas e contradições, foi perdendo a capacidade de discernimento entre o real e o fantástico. Como um animal ferido e assustado, deixou-se ficar sem defesas, a tremer de frio, mas agressivo e arrogante, ainda assim, no deserto gelado de solidão e de desamparo que criara para si!

A família, incapaz de o enfrentar, contemporizou com ele e foram, insensatamente, minimizando a gravidade do seu estado, teimosamente agarrados, na sua ignorância, na sua impotência e, talvez também, na sua vergonha, à ideia de que tudo, um dia, voltaria a ser como dantes.
Presos nessa louca esperança, davam-lhe força quando, orgulhoso, repelia auxílio, ajudando-o, sem se darem conta, a mergulhar cada vez mais fundo!
Desorientados, desalentados, vencidos, desistiram dele e entregaram-no, sem fé, nas mãos de Deus!

E, silenciosa e impotente, fui assistindo, sem querer, à tua gradual aniquilação.
Tu viste, como se, realmente, não visses, a agonia e a morte passar a teu lado.
Cada vez mais fechado em ti, isolado e frio, não compreendeste que era impossível resistir, tu só, ao jugo maligno que, ferozmente, te submetia e deixaste-te ficar com as mãos, a alma e a vontade, atadas ao cavalo negro, indomável, a resfolgar fogo e morte, que te dominava, que te ía desmembrando e que, impiedosamente, acabou por te devorar!

E, não sei se este desconsolo que me gela e amarfanha, quando te recordo, como agora, é revolta, é remorso, é tristeza ou, é, simplesmente, saudade!
Ou, é tudo isso junto!

Esta é uma pequena evocação de ti, que nunca chegarás a ler. Uma evocação do que foste, do muito que prometias vir a ser, do nada que soubeste colher da vida!
Intocável e distante, descansas, enfim, para além da dor, para além da esperança, para além da vida!
Mas, perfeito, eternizado na minha memória, enquanto memória eu tiver, vive o rapazinho que foste e permanece, intacto, o projecto de uma vida, para sempre em projecto, porque, irremediavelmente, sem futuro!

A tua Professora

“ Que, eu só, resistirei ao jugo alheio.”

MC
( A Arrogância - Pecado mortal )

Uma página do meu diário


Dia 27 de Dezembro de 2008



Escrevo, hoje, aqui, em jeito de catártico desabafo!
Estou zangada, aborrecida, posso mesmo dizer, siderada! O João, aproveitando a boa vontade natalícia, apresentou-me, num mal disfarçado enlevo, a namorada. Chama-se Mafalda. É uma rapariguinha magra, sem graça, com uns olhos bogalhudos, uns cabelinhos loiros, escorridos e é filha de uma peixeira!
O meu filho diz que a senhora é empresária mas, se vende peixe num cubículo, a que chama peixaria, é peixeira, não será?
E, de facto, mesmo a condizer, na cara miúda da Mafalda sobressai uma boca grande, cheia de dentes, que me fez lembrar, de imediato, um arfante tamboril.
Não consigo conceber a ideia de o João, o meu filho, educado nos melhores colégios do País, na Suíça e com um MBA obtido nos Estados Unidos, que circula já nos meios da alta Finança, estar de namoro pegado, com a filha de uma peixeira!

O Carlos, meu marido, costuma dizer que estou a ficar uma snob esbanjadora! Não creio que seja verdade!
Vivemos numa zona elegante da cidade, numa casa antiga que mandámos restaurar e que decorei com a aparente simplicidade de peças únicas, bonitas e elegantes, que é meu timbre, cercada de um imenso jardim e com uma piscina que, sendo coberta, é também um encantador jardim de inverno.
Tenho um Saab, topo de gama que estou a pensar trocar por um Ashton Martin, embora prefira, ultimamente, sair com o motorista porque a dificuldade de estacionamento aborrece-me, enerva-me e cansa-me!

Sou uma mulher do meu tempo: vou ao ginásio, três vezes por semana onde o meu personal trainer, orienta os meus exercícios; faço meditação; joguei ténis muitos anos mas, agora, prefiro o golf; dou muitos jantares requintados; vou a muitos jantares, igualmente, elegantes; frequento exposições onde, regra geral, me apaixono por um ou dois quadros ou, uma ou duas esculturas, que tenho mesmo de comprar porque, sem elas, a casa, até aí confortável, passa a ficar muito árida; vou a concertos e a estreias de peças de teatro e de filmes premiados. Visito Londres, Nova Iorque, Roma e Paris , todos os anos, mais do que uma vez por ano, para estar sempre up-to-date, em termos de cultura e de moda. Os meus costureiros preferidos são, aliás, Valentino e Chanel, embora, uma ou outra linda, mas excêntrica peça de Jean Paul Gaultier, refresque o meu guarda- roupa e me faça sentir diferente!

Como qualquer mulher, adoro fazer compras!
Na verdade, não posso negar que sou uma compradora compulsiva de quase tudo, especialmente de livros! Sempre gostei muito de ler e, no meu estilo de vida, a cultura e o saber são muito importantes! Por isso, preocupo-me em me manter o mais actualizada possível. O que, admito, não é fácil! Mas, não quero ser apenas uma boneca de corda, bem vestida que esbanja sorrisos vazios e acena que sim, com a cabeça, como um cavalo amestrado!
No entanto, é claro que tenho muito cuidado com o que visto e, como a minha vida social é bastante intensa, tenho fatos, com os respectivos acessórios, para todas as ocasiões.

Dizem-me com admiração, (ou será inveja?), que o tempo não parece passar por mim e que mantenho a figura elegante dos vinte anos!
É claro que não é bem assim mas, na verdade, cuido-me: uso bons produtos de beleza, já fiz um lifting ao rosto, no Brasil, duas lipoaspirações horrorosas e, não resisti a um implante de silicone, para tornar o decote mais capitoso e atraente!

Confesso que tenho uma fraqueza que o Carlos detesta mas acompanha-me sempre: gosto imenso de ir ao casino! Adoro a excitação do jogo! O pano verde, as fichas, a voz do croupier, a roleta a girar, a girar, exercem sobre mim, uma forte, uma deliciosa atracção! Encanta-me sentir a adrenalina a subir, a subir, em doido tropel, na excitante antecipação do jogo, atingindo o auge, no momento mágico de apostar! E, não há nada, mas nada, que se compare à louca alegria de ganhar e, de num incontido alvoroço, voltar a jogar! Quando perco é uma frustração mas, há que tentar outra vez...

O Carlos diz que estou a ficar uma esbanjadora snob mas, se ele é o homem da minha vida, eu sou a mulher da vida dele!
Quando casámos, fui eu que lhe ensinei todas as manhas básicas da vida social, desde como coordenar as roupas com os acessórios, a como vestir-se, adequadamente, em cada ocasião. Fui eu que o ensinei a conhecer e a escolher bons vinhos, de acordo com os aperitivos ou com o prato a ser servido, a saber estar com elegância e, sobretudo, a saber como se movimentar, nos salões e nos corredores do poder, com o charme subtil e envolvente que só um verdadeiro cavalheiro tem! Fui eu que o ensinei a insinuar-se junto das altas personalidades do momento e lhe incuti a auto-estima e a auto-confiança necessárias, para se ser bem sucedido no mundo difícil e tenebroso dos negócios!

Fui eu que fiz , do rapaz inteligente e culto mas, apagado e tímido que ele era, o homem interessante e requintado que é hoje.! Fui eu que o ensinei, sou ainda eu que o aconselho, o ajudo e o oriento!

Comprei, hoje, aquele casaco de peles lindíssimo! Tentei resistir à tentação mas, aquela maciez fuída, doce, quase erótica, ao toque, o brilho suave, a desdobrar-se numa estonteante cascata, de mil reflexos e a beleza, quase escandalosa, da pele, não me saía da cabeça! Aquela preciosidade tinha de ser minha! Escandaloso, disse-me um Carlos atónito, foi também o preço...

O meu filho espanta-se com a minha energia e confunde-o a minha agenda tão carregada! Sei que, secretamente, tanto ele como o pai me admiram! Penso que, no fundo, eles sabem que cada jantar de estrondo que dou, cada recepção a que compareço, seja o que for que eu faça, no meio mundano que frequento, tem um sentido e uma razão de ser!
Tudo é pensado, tudo é medido, tudo é cuidado até ao mínimo pormenor!
Não nego que, com a minha sagacidade, com este ligeiro traço de manipuladora que faz parte do meu temperamento e com o meu "savoir faire", uso a estupidez dos outros para meu benefício e para os alcandorar lá no alto da escala social!
Se o Carlos é o que é hoje e o meu filho começa a ser o que será, no futuro, é porque sou eu que lanço os dados, sou eu que movo as pedras do jogo! A favor deles e a meu favor, é claro!

Ainda que me custe assumir-me como uma esbanjadora que nem sei se realmente sou, confesso que adoro sentir-me rodopiar na girândola colorida e inebriante a que chamam esbanjamento!
Adoro o dinheiro, não para o aferrolhar e esconder, como um amante ciumento, insaciável e avaro, não para ser uma sua subserviente miserável e rastejante, feliz só por o contar, recontar e o admirar! Eu adoro o dinheiro, sim, para comprar o que me apetece, sem olhar ao preço, para viajar quando e para onde eu quiser, para viver o torvelinho excitante do jogo, no casino, para transformar sonhos loucos em deliciosa realidade, para ajudar duas ou três instituições da minha simpatia e, sobretudo, para não ter de fazer contas...

Por isso, ninguém sabe, nem sequer, o meu marido, que um dos meus terrores é se um dia , nas voltas que a vida dá, me vejo transformada numa daquelas esbanjadoras trágicas, falidas, pindéricas que vão às festas com vestidos emprestados e recebem uma miséria para que se diga que estiveram lá!! Em nome do nome e da “importância” que tiveram um dia!

O que me descansa é que, se eu adoro não fazer contas, o Carlos nasceu para administrar o que obtém, nos altos cargos , que o tenho ajudado a conseguir!!
Mesmo assim e à cautela, esbanjo charme, esbanjo seriedade, esbanjo simpatia e esbanjo bom humor, nas embaixadas, nas grandes mansões, nos salões, nas viagens, no cabeleireiro, nas boutiques.
Porque quero que todos gostem de mim, que gostem tanto de mim que não possam prescindir da minha presença ! Mesmo que eu não goste da maior parte dessa gente e deteste as suas festas espaventosas, as suas conversas rasteiras e ridículas, as suas risadas estridentes, a sua vulgaridade!

Enoja-me ver pessoas cujos nomes sonantes, enchem as páginas das revistas e jornais, a portarem-se e a comerem, como labregos, nas recepções mais chics! Aliás, ainda não perdi a esperança de ver algumas dessas patéticas senhoras, estrelas de um jet-set pobre e risível, esconderem, à socapa, uns restitos de comida, em pirosos saquinhos de plástico!
Bem vistas as coisas, a minha vida não é, de todo, fácil! É mesmo muito enervante e cansativa mas, admito, tem sido muito gratificante!

É quase meia-noite. Tenho de me ir deitar e fazer o meu sono de beleza. Amanhã espera-me um dia muito agitado: ginásio, esteticista, cabeleireiro e um jantar de gala, na embaixada dos Estados Unidos!
E, ainda me falta comprar aqueles sapatos lindos, chiquérrimos que vi hoje e que vão ficar lindamente com o maravilhoso vestido Valentino com que, eu sei, vou arrasar, na embaixada!

E, o melhor de tudo: o Manuel João, elegante, com os seus cabelinhos grisalhos e a esbanjar charme, também lá vai estar! Telefonou-me hoje...

Voltando ao assunto maçador que me levou a escrever hoje aqui, a menina de olhos bogalhudos e com cara de tamboril, bem pode tirar o cavalinho da chuva! Vou pensar e hei-de encontrar um jeito de a afastar do João, do meu filho, que criei amorosamente, cuidadosamente e que, está decidido, não vai ser para os dentinhos afiados, daquela boca enorme, de peixe asmático!

A catarse está feita! Vou dormir!
Boa noite!

MC
( O Esbanjamento- Pecado mortal)