quinta-feira, 21 de maio de 2015

Apego à vida.

A gente morre cheio de saudades da vida.
Mia Couto


Ali, agrilhoada à cama, ela.

Enfraquecida pela doença, mas aterradoramente lúcida.
Ela, ali, esqueleto vivo que a pela seca, amarela, quebradiça cobre, rosto exangue, olhar baço, um sorriso ténue, para quem a visita, num apego torrencial, à vida.
Um apego ávido, destemido, comovente, uma luta titânica, tumultuada, desigual, com uma inimiga feroz, implacável, matreira, que finge, maldosa, recuar, uns dias, umas horas, mas vence sempre: a morte.
A morte que ronda, medonha, ronda; a morte que espreita; a morte que espera; a morte que não tarda...

E ela ali, naquele apego sôfrego, à vida. Um apego brutal, teimoso, incansável, mais forte do que toda a degradação que a consome, que a devora, que a mata. Minuto a minuto. Quando parece que se entregou, que cedeu, que finalmente se rendeu, ela reage e ergue-se e sai do recanto de sombra, onde se exaura. E desesperadamente, luta. Corajosa, indómita! Osso e pele!

Ela sozinha a impedir o desatar dos nós e dos laços.
Ela sozinha, inquieta, amedrontada certamente, mas sempre guerreira, apesar do coração bater leve, tão leve, como coração de passarinho, no desconcerto do peito, mas ainda ao compasso de uma esperança vinda lá do fundo de si mesma, do fundo do sangue aguado, das entranhas doentes, da alma exausta.

E ela ali, já numa saudade infinita.


Para duas grandes Mulheres que, no meu serviço de voluntariado, atravessaram o meu caminho.
Com afecto e respeito.

quarta-feira, 20 de maio de 2015

O segundo acto

Daqui a 50 anos, em 2065, quase todos os opositores do analfabeto Acordo Ortográfico estarão mortos. Em contrapartida, as crianças que este ano, em 2015, começaram a ser ensinadas a escrever tortograficamente, terão 55 anos ou menos. Ou seja: mandarão no país e na língua oficial portuguesa.
 
A jogada repugnante dos acordistas imperialistas ignorantes e cada vez mais desacompanhados pelas ex-colónias que tentaram recolonizar ortograficamente terá ganho tanto por manha como por estultícia.

As vítimas e os alvos dos conspiradores do AO90 não somos nós: são as criancinhas que não sabem defender-se. Deseducando-as sistematicamente, conseguirão enganá-las facilmente. A ignorância é a inocência. Pensarão, a partir deste ano, que só existe aquela maneira de escrever a língua portuguesa.
Os adversários morrerão e predominará a inestética e estúpida ortografia de quem quis unir o "mundo lusófono" através de um Esperanto lusográfico que não tem uma única vontade colectiva ou raiz comum.

Como bilingue anglo-português, incito os jovens portugueses que falam bem inglês (quase todos) a falar português com a exactidão fonética, vinda do bom latim, da língua portuguesa. Eu digo "exacto" e "correcto" como digo "pacto" e "concreto". Digo "facto" como fact, tal como "pacto" como pact.
Falar como se escreve (ou escrevia) é um acto de rebeldia. Ler todas as letras é libertador. Compreender a raiz das palavras é conhecê-las e poder tratá-las por tu.

Às armas!

Miguel Esteves Cardoso  - ( In Público)


NOTA:

É verdade que a sintaxe é muito importante! Enquanto a sintaxe se mantiver correcta, expresso, correctamente, o meu pensamento, sim!
Mas, amo as palavras! Respeito-as! Selecciono-as, junto-as e com elas conto histórias, pinto paisagens, dou cor e luz, ou dou cinza e sombra, às minhas emoções, aos meus sentimentos!
As palavras, com o tempo, e por tanto as ler e escrever, tornaram-se imprescindíveis na minha vida!
Ver essas palavras que amo, esses delicados "objectos" dos meus afectos, com alterações "físicas", que as desfeiam e modificam, causa-me uma imensa tristeza e perturbação.
É como se tivessem sofrido operações de estética que tivessem corrido mal e tivessem ficado desfiguradas.

Vou continuar a escrever como sempre escrevi e muitos farão como eu. Mas, não está certo! Na linguagem escrita, é este o caso, não pode haver livre arbítrio! Mas ninguém me obriga a escrever "espetador", ata", etc...
Estou em total desacordo com o acordo! Mas, a bem da verdade, o meu desacordo não interessa nada!! Nem o meu, nem o de muitos de nós! Manda quem pode!! Não manda quem sabe!! Infelizmente!

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Os apátridas da língua que nos governam

À memória do Vasco Graça Moura

Não sei se são válidos ou não os argumentos jurídicos que discutem a data da aplicação efectiva do Acordo Ortográfico [AO], se nestes dias, ou em 2016. Isso não me interessa em particular, a não ser para registar a pressa suspeita em o aplicar contra tudo e contra todos. Mas uma coisa eu sei ao certo: é que o desprezo concreto do bem que ele pretende regular, a língua portuguesa, é evidente nessa mistura sinistra de inércia, indiferença e imposição burocrática com que se pretende obrigar os portugueses a escrever de uma forma cada vez mais abastardada.

Na sua intenção original, o Acordo pretendia ser um acto de política externa, uma forma de manter algum controlo sobre o português escrito pelo mundo todo, como forma de garantir uma réstia de influência portuguesa num conjunto de países que, cada vez mais, se afastam da centralidade portuguesa, em particular o Brasil. Se é um “acordo” é suposto que seja com alguém. No entanto, desse ponto de vista, o AO é um grande falhanço diplomático, visto que está neste momento em vigor apenas em Portugal, com promessas do Brasil e Cabo Verde, esquecimento em Moçambique, Guiné Bissau, S. Tomé e Timor-Leste, e recusa activa em Angola. Nalguns casos há protelamentos sucessivos, implementações adiadas e uma geral indiferença e má vontade.
Para além disso, nenhuma implementação do AO, vagamente parecida com a pressão burocrática que tem sido feita em Portugal, existe em nenhum país, a começar por aquele que parecia ser o seu principal beneficiado, o Brasil. Ratificado ele foi, aplicado, não.

Mas com o mal ou a sorte (mais a sorte que o mal) dos outros podemos nós bem, mas ele revela o absurdo do zelo português num AO falhado e que nos isolará ainda mais. Onde os estragos serão mais significativos é em Portugal, para os portugueses, e para a sua língua. É que o Acordo Ortográfico não é matéria científica de linguistas nem, do meu ponto de vista, deve ser discutido nessa base, porque se trata de um acto cultural que não é técnico, e como acto cultural em que o Estado participa, é um acto político e as suas consequências são identitárias. Não me parece aliás que colha o historicismo habitual, como o daqueles que lembram que farmácia já se escreveu “pharmácia”, porque as circunstâncias políticas e nacionais da actualidade estão muito longe de ser comparáveis com as dos Acordos anteriores.

É um problema da nossa identidade como portugueses que está em causa, na forma como nos reconhecemos na nossa língua, na sua vida, na sua história e na sua proximidade das fontes vivas de onde nasceu: o latim.
Não é irrelevante para o português e a sua pujança, a sua capacidade de manter laços com a sua origem no latim e assim comunicar com toda a riqueza do mundo romano e, por essa via, com o grego, ou seja, o mundo clássico onde nasceu a nossa cultura ocidental. Esta comunicação entre uma língua e a cultura que transporta é posta em causa quando a engenharia burocrática da língua a afasta da sua marca de origem, mesmo que essas marcas sejam “mudas” na fala, mas estão visíveis nas palavras. As palavras têm imagem e não apenas som, são vistas por nós e pela nossa cabeça, e essa imagem “antiga” puxa culturalmente para cima e não para baixo.

O AO é mais um passo no ataque generalizado que se faz hoje contra as humanidades, contra o saber clássico e dos clássicos, contra o melhor das nossas tradições. Não é por caso que ele colhe em políticos modernaços e ignorantes, neste e nos governos anteriores, que naturalmente são indiferentes a esse património que eles consideram caduco, ultrapassado e dispensável. Chegado aqui recordo-me sempre do “jovem” do Impulso Jovem aos saltos em cima do palco a dizer “ó meu isso não serve para nada”, sendo que o “isso” era a História. Esta é a gente do AO, e, como de costume, encontram sempre sábios professores ao seu lado, os mesmos que vêem as suas universidades a serem cortadas, em nome da “empregabilidade”, da investigação nas humanidades e em sectores como a física teórica e a matemática pura, teorias sem interesse para os negócios. “Ó meu, isso não interessa para nada!”.
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E é neste Portugal que uma geração de apátridas da língua, todos muito destros em declamar que a “a nossa pátria é a língua portuguesa”, minimizam a nossa identidade e a nossa liberdade, que vem dessa coisa fundamental que é escrever com a fluidez sonora do português, mas também com a complexidade da sua construção ortográfica.  
É como se estivéssemos condenados a escrever como se urrássemos em vez de falar."


José Pacheco Pereira
Historiador

Nota: O Acordo Ortográfico da nossa vergonha!