segunda-feira, 30 de setembro de 2013

A Dor de Pensar

Hoje, dei comigo a pensar no título de um dos livros de Pedro Paixão, (que será feito deste escritor?), “A vida cansa.”
Não creio que, apesar das suas voltas e reviravoltas, seja a vida que verdadeiramente cansa. O que cansa é pensar!

Porque tenho eu de pensar? Porque é que os meus pensamentos se amontoam, se misturam, se despenham em cascata e correm à solta, em doido tropel, na minha cabeça?
Porque não se esvazia a minha mente, nem que seja só por minutos?
Pensar é doença! E, o que parece ser um triste e murcho cliché, disse-o Fernando Pessoa e afirmou-o, ainda mais claramente, o seu heterónimo, Alberto Caeiro, o Mestre.
Penso, porque a vida é preocupação e sobressalto? Penso, porque a vida é tormento? Penso, porque a vida é mar revolto, encapelado? Penso, porque outras vidas se entrecruzam com a minha vida e nela extravazam, ansiedades, desapontamentos, injustiças, mágoas? Penso, porque se morre mais de mágoa?

Quando as noites são densas e negras e a chuva se precipita, malévola, em lençóis gelados, sombrios e o vento geme e assobia em fúria, fecho as portadas, corro os reposteiros e deixo a noite tempestuosa rugir, sozinha, tumultuada, lá fora. No meu recanto morno, silencioso e resguardado, descanso o meu cansaço.

Como em casa, eu queria que a minha mente tivesse portadas que eu pudesse trancar, persianas que eu pudesse correr e impedir-me, assim, de pensar, de me preocupar, de não saber o que fazer. Portadas, persianas que trancassem o pensamento e que me  impedissem de ter medo de naufragar num mar incandescente de tristeza, de interrogações, de incerteza, de desvario.
E, com a cabeça vazia, na quietude branda do silêncio, ali ficaria quieta, pacificada e passiva. Passiva, sim!
Eu, que nunca fui passiva, gostaria tanto de ser, e que me deixassem ser, passiva, como os montes, as rochas, as árvores, que deixam as folhas velhas, castanhas, amarelas, vermelhas, tombarem no chão do tempo, para logo as sentirem renascer lindas, verdes e brilhantes.

Não peço para renascer, peço para acastanhar, amarelecer, com a tranquila, resignada elegância das folhas das árvores... E, também enrubescer, mesmo "entardecida", mas a suspirar de amor pelo chão do tempo, regaço macio, certo, eterno...

Liberta da dor de pensar, com a alma descansada, lavada, voltaria à inocência virginal, ao pasmo essencial a ao entusiasmo deslumbrado, como se visse e sentisse a vida como uma criança, ou um animal a deambular, livre, na floresta. Nem que fosse por minutos...
Como Caeiro, integrar-me-ia, então, no Universo, como rio a fluir, flor a desabrochar, pedra estática, ave chilreante, borboleta a espalhar cor...
E, teria, enfim o tempo e a pureza essenciais para olhar os lírios do campo, altos, esguios, aveludados, com a alegria, o assombro, o deslumbre da inocência primordial. Lírios que não fiam, não porfiam, não se perdem em queixumes, não se revoltam, nem ambicionam, mas que se expõem belos, esplendorosos, em toda a sua gloriosa beleza, para quem os saiba ver!

Se fechar os olhos, respirar fundo, talvez, por segundos, eu possa ser rio que passa sereno, flor delicada, a dançar na brisa, ave a voar livre, no espaço azul, infinito e, quando cansada, possa pousar na copa macia de uma árvore coroada de luz.
Ou, possa, talvez, ser o gato, sem dono, instintivo, “ que sente só o que sente.”, de Fernando Pessoa:

Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.

Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.


És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.


Talvez...

MC

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Uma singela homenagem ao Poeta António Ramos Rosa.

O Homem cansou-se e partiu.
O seu Espírito voa como folha leve, silenciosa e livre.
Ficam as palavras ritmadas, transparentes, belíssimas, embaladas nos seus vagares poéticos.
O Poeta, jardineiro incansável, eternizou-se no jardim, de mil cores, da Poesia!
Fica a saudade reverente e muda.

Descanse em Paz, Poeta!


Creio nas palavras

Creio nas palavras
transparentes
que pertencem ao vento
ao sal
à latitude pura

Aqui
no meu reduto
entre ramos de ar
entre a cintilante indolência da água
creio no que nos une
em ondas vagas
apaixonadamente lentas

Aqui
eu pertenço
ao centro da nudez
como uma gota de água
ao rés do solo
na sua imediata e nua felicidade

António Ramos Rosa


Poema de um funcionário cansado


A noite trocou-me os sonhos e as mãos

dispersou-me os amigos

tenho o coração confundido e a rua é estreita

estreita em cada passo

as casas engolem-nos

sumimo-nos

estou num quarto só num quarto só

com os sonhos trocados

com toda a vida às avessas a arder num quarto só

Sou um funcionário apagado

um funcionário triste

a minha alma não acompanha a minha mão

Débito e Crédito Débito e Crédito

a minha alma não dança com os números

tento escondê-la envergonhado

o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente

e debitou-me na minha conta de empregado

Sou um funcionário cansado dum dia exemplar

Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?

Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?

Soletro velhas palavras generosas

flor rapariga amigo menino

irmão beijo namorada

mãe estrela música

São as palavras cruzadas do meu sonho

palavras soterradas na prisão da minha vida

isto todas as noites do mundo numa só noite comprida

num quarto só.

 António Ramos Rosa, O Grito Claro, 1958


 Uma voz que continua viva e, neste poema, a dar voz a todos os funcionários cansados, cada vez mais sós, mais apagados, mais perdidos no negrume denso do seu cansaço.

MC

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Hoje, ontem... Luz e sombra.

O dia amanheceu radioso, quente e sereno. As árvores frondosas e vestidas de verde de mil matizes parecem coroadas por uma aura branca e dourada, como um halo de santo. No jardim, brilha a relva macia, ainda salpicada, aqui e ali, de pérolas líquidas de orvalho, ardem flores, num esbanjamento de cor, chilreiam pássaros, numa amálgama de pipilares dispersos e, longínquo, ouve-se o suave murmúrio do mar. 
É a voz e o feitiço de uma manhã, ainda esplendorosa, de Verão.

Na minha cabeça, misturam-se pensamentos e recordações, coisas que tenho de fazer durante o dia e lembranças do que já passou e que eu pensava já ter esquecido. Não encontrei ainda uma ordem lógica nesta mistura de assuntos de hoje e de memórias de ontem. Deve ser apenas um saltitante, distraído divagar...

Será a isto que chamam velhice? Misturar umas coisas com as outras? Umas mais próximas e urgentes, com outras perdidas na lonjura dos anos? Assim, como se uma porta se abrisse e, de repente, se abrisse outra e outra ainda? Porque será que, com o correr do tempo, a mente não se aquieta e o coração não se tranquiliza?

Não que eu seja velha! Não, velha não sou! Ainda! Mas, “entardecida”, serei. Antiga, não quero ser! Nunca!
Gosto de pensar a velhice com ruas infindáveis, que se prolonguem infinitamente e onde se abram portas incontáveis, num caminho de escuridão, que vou desbravando, e também de luz que me envolva e aqueça...
Basta uma palavra, uma risada, um fiapo de som de uma voz, uns acordes de uma melodia, um toque, uma textura, um sabor, um cheiro e, como uma rajada de vento norte, abre-se uma porta, e outra, e outra ainda, em recantos de sombra, onde se aninham recordações. Umas são luz, amor, oração. Outras são traição, mágoa, desengano. E, com elas, com as memórias, sempre, a saudade!
Esse, é o nosso fardo!

Todos carregamos connosco o passado, esse fardo cheio das nossas lembranças, das nossas perdas e das voltas e reviravoltas da vida e tanto maior e mais pesado, quantos mais anos tivérmos de o transportar. Cada um carrega o seu, até que surja a fatídica curva estreita, no caminho.

Se calhar, o que mais pesa, não é o fardo, em si, mas o que sofremos, o que trabalhamos, o que choramos, o que renunciamos, para o encher. Porque, pesadas são as lágrimas, as desilusões, os sonhos infatigavelmente adiados ou, já mortos.
Mas sei que as minhas alegrias, o amor que fui capaz de dar, o carinho que recebi, a bondade que me amparou, o que, de positivo, construí, tornam este fardo, que carrego, mais leve e delicado.

Contudo, no seu infinito jogo de luz e de sombra, a vida é uma dádiva preciosa, uma constante e surpreendente descoberta, um espantoso, comovente milagre!

 Assim sendo:

Give me my robe, put on my crown; I have Immortal longings in me”.
William Shakespeare

Não sei porque escrevi este texto, onde dei comigo debruçada sobre o Tempo esquivo, a realidade e, talvez, a ilusão, e onde evoco apegos e renúncias que julgava imobilizados no Passado.
Ou, talvez saiba: hoje é o dia dos meus anos.

Mas, apesar de tudo:

 É bom envelhecer!

Sentir cair o tempo,
magro fio de areia,
numa ampulheta inexistente!

Passam casais jovens
abraçados!...

As árvores
balançam novos ramos!...

E o fio de areia
a cair, a cair, a cair...

Saúl Dias, in "Essência"