domingo, 29 de novembro de 2009

Aniversário

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a.olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

Álvaro de Campos
Heterónimo de Fernando Pessoa

Gato que brincas na rua

Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.

Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.

Fernando Pessoa - Ortónomo

Tão cedo passa tudo quanto passa

Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.


* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * *
Ricardo Reis/ Ode
Heterónimo de Fernando Pessoa

Sim

Sim, sei bem
Que nunca serei alguém.
Sei de sobra
Que nunca terei uma obra.
Sei, enfim,
Que nunca saberei de mim.
Sim, mas agora,
Enquanto dura esta hora,
Este luar, estes ramos,
Esta paz em que estamos,
Deixem-me crer
O que nunca poderei ser


Ricardo Reis - Ode
Heterónimo de Fernando Pessoa

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Os animais e o circo

Nunca gostei de circo! Mesmo em criança, a cara pintada e as gargalhadas dos palhaços assustavam-me, as habilidades dos animais, selvagens ou não, entristeciam-me e o silvo do chicote e os gritos do domador revoltavam-me! Surpreendiam-me, aliás, os risos e os aplausos provincianos, das pessoas, à minha volta!
Os elefantes, os leões e os tigres sempre me pareceram desajustados e infelizes, naquele espaço reduzido, obrigados, nem sabia eu ainda, a poder de quanta tortura, a obedecer a ordens estúpidas e em completo desacordo com a sua natureza.
Não fui muitas vezes ao circo, mas lembro-me de ter pensado, maldosamente, como seria interessante se o feitiço se virasse contra o feiticeiro e o monumental elefante, num momento de pura rebeldia, pousasse, ainda que levemente, a patorra cilíndrica, obedientemente erguida, sobre a ousada menina, que de estendia, mesmo debaixo dela e o leão ou o tigre riscasse, numa súbita fúria e numa fracção de segundo, o sorriso alvar, da cara do domador!
Quem, amando e respeitando os animais, nunca teve um inconfessável pensamento, como este, a transbordar indignação, ao vê-los miseravelmente subjugados, para divertimento da populaça?
Sempre me ensinaram que os animais selvagens são seres nobres, livres, poderosos e imponentes, senhores absolutos de uma terra que é sua!
Assim, talvez porque nasci em África, sempre detestei vê-los, no circo, sujeitos a uma humilhante submissão, e espoliados da sua nobreza, e da sua dignidade!
Confrangia-me, igualmente, ver cães, pateticamente, vestidos com ridículos tutus e saloios arrebiques na cabeça, a dançarem mecanicamente, apenas apoiados nas patas traseiras!
Por tudo isto, aplaudi, com entusiasmo, a lei que aponta para o fim do uso dos animais, no circo, como fonte de entertenimento!
Embora ainda haja muito para fazer, em relação aos maus tratos e ao abandono dos animais, congratulo-me que, pelo menos nesta vertente, lhes seja, enfim, dada a protecção que lhes é devida e lhes seja reconhecido o respeito a que têm direito e os deixem viver, majestosos e tranquilos, no seu habitat natural!

MC

domingo, 15 de novembro de 2009

Sinead

A Sinead morreu!
A Sinead faz-me falta, Faz-me tanta falta!
Depois de ter estado comigo, mais de catorze anos, a Sinead morreu, no dia três, deste Novembro chuvoso e triste, e deixou-nos uma infinita saudade e um irremediável vazio!
Foi-me confiada, quando tinha seis meses, por uma amiga que não podia ter aquela cachorrinha linda mas, travessa e cheia de energia, no apartamento, onde vivia. Durante todo este tempo,connosco, ela foi uma dádiva de amor, de ternura e de alegria que nunca pude, nem poderei agradecer bastante!
A Sinead era uma Setter-irlandês, com uma pelagem ruivo-fogo, com reflexos de ouro, lindíssima! Tinha uns olhos escuros, expressivos e doces! Era uma cadelinha terna, delicada e generosa.
Gostava de correr, de brincar e adorava dormir, debaixo do pinheiro manso, no jardim.
Agora, já velhinha, não corria, passeava devagarinho, não brincava muito mas, abanava, contente e vigorosamente, a cauda, para dizer que nos amava e dormia, cada vez mais tempo, no seu cantinho preferido, no jardim.
A partir de uma certa idade, tornou-se muito frágil mas, com uma vontade, férrea, de viver, foi, corajosamente, ultrapassando todos os problemas de saúde, alguns bastante graves.
No dia três, já perdida, dei-lhe a última prova de amor e de respeito, que lhe podia dar: uma morte assistida, sem sofrimento, serena e digna, como lhe era devido! E, regada de lágrimas amargas!
Estive sempre com ela. Morreu nos meus braços, a minha filha, que ela adorava, e que tanto a acompanhou, a segurar-lhe, amorosamente, as mãozinhas felpudas.
A Sinead partiu e deixou-me, também, a eterna e aflitiva interrogação, inevitável perante a morte: será que lhe dei todo o amor e toda a atenção que ela merecia, ela que tanto nos deu, sem, em troca, nada pedir?
É que, se, seguramente, nunca se ama, nunca se cuida demais, a verdade é que, se calhar, nunca se ama e nunca se cuida, o suficiente! Não sei...
Como última homenagem, a Sinead foi cremada. Entregaram-me, dias depois, as cinzas dela, numa caixinha de madeira branca, com o nome gravado e, delicadamente, rematada com uma fitinha de cetim castanho.
A caixinha ainda está comigo! Um dia, as cinzas da Sinead vão repousar, para sempre, debaixo do pinheiro manso, onde ela gostava tanto de dormir umas sonecas e de preguiçar!
Mas, por estes dias, não! Por estes dias, ainda não...

MC