quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

RECEITA DE ANO NOVO

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.
Carlos Drummond de Andrade


Desejo, queridos Amigos, que o Novo Ano seja, para cada um de vós, um belíssimo presente a transbordar de grandes realizações pessoais e profissionais, embrulhado no papel sedoso e translúcido da Esperança, selado com Saúde, Coragem e Alegria e enviado, pelo Tempo, com sonhos de luz, sempre renovados.
Afinal, os que somos nós senão "o tecido de que são feitos os sonhos"?
Abraço grande.

MC

"Acordo ortográfico: donos da Língua" por Madalena Homem Cardoso, Público, 20.12.2013

Finalmente, os donos da Língua vão ser recebidos na Assembleia da República, hoje, às dez horas da manhã!
Imagino o senhor José, dono de uma mercearia numa ruela de um bairro popular de Lisboa, apenas com a antiga 3.ª classe, a acabar de escrever a última placa de cartão para a fruta... "Kiwi", já está. Nunca lhe ocorreria a necessidade de consultar um dicionário para escrever uma tabuleta para os caixotes acumulados à porta, emprestando o seu delicioso odor matinal à cidade.

Hoje, porém, recolheu tudo e afixou uma desculpa esfarrapada para fechar a loja. Nunca foi à Assembleia da República, mas o filho disse-lhe que viu no computador que vão discutir uma Petição para tirar Portugal desta coisa que pôs tantas pessoas a escrever mal, e que toda a gente pode entrar para ver o que é que os políticos vão fazer... O senhor José já está farto de ver aquele "direto" ao canto do televisor.

"Direto" não é correcto, não há direito...! É o "directo" que indica que se vai a "direito", e tudo vai torto se não percebem isto. E esse "acordo" não "está feito", não é um facto, é só um pacto infecto. "Directo" escrito "direto", de "jato", à brasileira, não tem jeito...
Disse-lhe o filho que viu no computador um filme que mostra como, no Brasil, não ligam ao "acordo", e agora andam a experimentar pôr "x" onde era "ch", pôr "k" onde era "qu", tirar os "h"... Eles que façam o que quiserem e chamem "Brasileiro" àquilo.

Como o "acordo" morreu no Brasil e cá é lixo tóxico, teve de ser incinerado. Disse-lhe o filho que vai haver uma manifestação, junto à Assembleia da República, enquanto lá dentro falarem da Petição e, depois, vai partir de lá, ao meio-dia e meia, uma marcha em direcção ao Terreiro do Paço. As pessoas vão lançar ao Tejo as cinzas dessa coisa, lá, na linda "sala de visitas" da Europa, e o senhor José não quer faltar.

Iremos finalmente regressar ao "Português que somos"? Iremos sim, mais tarde ou mais cedo, com maior ou menor dano, iremos sim.

Já aqui moramos há muitos séculos, no chão desta Língua Portuguesa que atravessou mares e se transformou, por cá e noutras paragens. Mas a que vive e respira connosco é nossa, e nós somos nela. Pensamos, logo existimos, em Português. Donos da Língua, donos de nós.


Versão de "O MOSTRENGO" (de Fernando Pessoa), dedicada ao "CONVERSOR" LINCE®:

O “conversor” Lince que eu não quis instalar

Varreu o ecrã, ergueu-se a voar;

À roda do texto veio três vezes,

Roubou três letras a chiar,
E disse: "Quem ousa desafiar

As minhas razões que nem eu entendo,
Meu lápis invisível infecundo?"

E ao leme da tecla eu disse, tremendo:

"Séculos de Língua Portuguesa no Mundo!"


"De quem são as letras de que troço?
De quem o linguajar que leio e ouço?"

Disse o “conversor” Lince, e arrotou três vezes,

Três vezes arrotou imundo e grosso.

"Quem vem escrever como não posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse

Instalado no medo, mas do nada oriundo?"
E ao leme da tecla tremendo, eu disse:

"Séculos de Língua Portuguesa no Mundo!"


Três vezes do teclado as mãos ergui,

Três vezes ao leme de mim escrevi,
E disse no fim de tremer três vezes:

"Tremo com fúria, sou mais do que eu:
O que este Povo escreve não é teu;

Mais que o raivoso Lince que me a alma pisa
Mutilando palavras furibundo,

Mandam as raizes que erguem a divisa,
Séculos de Língua Portuguesa no Mundo!"

 
(em descarada "parceria" póstuma "à revelia" com Fernando Pessoa)

 Madalena  Homem Cardoso, Público, 20.12.2013

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Natal

Litania do Natal

A noite fora longa, escura, fria.
Ai noites de Natal que dáveis luz,
Que sombra dessa luz nos alumia?
Vim a mim dum mau sono, e disse: «Meu Jesus.»
Sem bem saber, sequer, porque o dizia.
E o Anjo do Senhor: «Ave, Maria!»
Na cama em que jazia,
De joelhos me pus
E as mãos erguia.
Comigo repetia: «Meu Jesus.»
Que então me recordei do santo dia.
E o Anjo do Senhor: «Ave, Maria!»
Ai dias de Natal a transbordar de luz,
Onde a vossa alegria?
Todo o dia eu gemia: «Meu Jesus.»
E a tarde descaiu, lenta e sombria.
E o Anjo do Senhor: «Ave, Maria!»
De novo a noite, longa, escura, fria,
Sobre a terra caiu, como um capuz
Que a engolia.
Deitando-me de novo, eu disse: «Meu Jesus.»
E assim, mais uma vez, Jesus nascia.

José Régio

Neste dia agreste, frio e chuvoso, desejo a todos os meus queridos Amigos, que por aqui passam e me lêem,  um Natal muito quentinho, a transbordar de luz e de doçura!
Abraço grande.

MC

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Pequenas divagações sobre esplendorosa Poesia...

Lembra-te de mim quando a ausência de nós dois escurecer o teu dia... Quando um eco de saudade "retroar" em ti, lembra-te que te amei e lê o que escrevi para ti...

Apesar de, é bom sentir o coração em chamas. Apesar de, ainda aconchego este coração incendiado, no desconcerto do peito. Apesar de, guardo a tua lembrança, num recanto de sombra da minha memória. Apesar de, a claridade da manhã rompe o véu infinito da noite. A vida vale a pena ser vivida inteiramente, intensamente, apesar de...

Quando a manhã afaga o meu rosto, despenteia os meus cabelos, é a delicadeza de Deus a tocar a meu dia...

Tu és a ausência mais funda, eu sou a alma mais solitária, mais nua, mais fria... Tu, a ausência... Eu, a solidão...

Como todas as vidas, a minha vida tem sido vendaval desfeito e brisa branda; tem sido onda gigantesca e renda ondeada a desmaiar, lângida, na areia; tem sido jardim incandescente e terra árida, queimada; tem sido luz e tem sido sombra e, ainda hoje, não sei por onde vou, mas, sei, que não vou por aí, por onde queres que eu vá...

Na frecura leve, intocada de cada madrugada, eu renasço, eu estremeço, eu volto a ser inteira...

Os poetas entendem os idiomas das árvores; os poetas sabem de todas as canções do vento, que as folhas cantam só para eles; os poetas guardam, na alma, todos os perfumes do Sol, todas as carícias da chuva branda, mas é com as suas lágrimas, com o seu sangue e no tumulto das suas emoções, que eles escrevem a sua Poesia...
E, eu... eu sou o passarinho à toa que esvoaça, feliz, um pouquinho entontecido, na luz bendita, dos seus poemas...

Há caminhos que só a alma conhece, que só a alma trilha, sem tempo e sem distãncia...

Como foi possível, Florbela, não gostares do sol, tu que tinhas, arrecadada em ti, toda sua luz de ouro, toda a cintilação das estrelas, todo o brilho, toda a incandescência desse teu génio singular? Como foi possível deixares-te enredar no negrume triste da noite mais densa, quando tu, Florbela, foste, na vida, um luzeiro imenso, amotinado, ardente? Essa borboleta doida, estranha, que te inquietava, Florbela, era talvez esse teu coração a bater, em sobressalto, como haste quebradiça, no desacerto do teu peito...

Em todas as vidas, como em todas as conchas vadias, que as ondas rendadas levam, há um interior escondido que nos silencia e nos aquieta...

Os flamingos, no seu voo alto e livre, carregam consigo o Sol e bordam, com os seus fios de ouro, o tempo, esse tecido invisível, subtil, perfeito, que nos submete e aprisiona...
 
Coração que nunca endurece é coração de santo; temperamento que nunca pressiona é temperamento de anjo; toque que nunca magoa só o toque da Tua Mão...
Mas, Tu estás sempre tão distante... tão ausente...

Eu sou a árvore nua e ressequida e tu a chuva mansa que a renova e a faz florir...

É bom voltar ao lar, ao anoitecer, quando nesse lar bate aquele imenso coração que nos ama, nos acolhe, nos conforta, nos aquece...
 
MC

domingo, 8 de dezembro de 2013

Nelson Mandela - Uma vida pela Liberdade e pela Igualdade Racial!

Nelson Mandela foi um lutador, um resistente! Recorreu à violência, sim, contra a infâmia do apartheid! Pagou muito cara a sua rebeldia e temeridade: sofreu e esteve preso 27 anos.
Quando o libertaram e teve o poder nas mãos, perdoou, perdoou, inteiramente, de todo o coração, por humanidade e por uma arrasadora bondade, sem nunca ...ter querido ajustar contas com os seus opressores, por tantos anos de vida perdidos, na prisão.
Mandela soube ver, nos outros, os seus irmãos, filhos da mesma Nação, fosse, qual fosse, a cor da pele! E, não sendo fácil a negociar, era intrangisente e duro, sabia ceder e sabia fazer a outra parte ceder! Mandela soube, acima de tudo,  dar sinais de perdão e de confiança. O seu sorriso largo, aberto, a sua arma mais valiosa!

Mas na reconciliação e no fim pacífico do nefando apartheid, que eram dados como impossíveis,  não pode ser esquecido que Mandela teve, a seu lado, a mão forte, a liderança e a coragem política de De Klerk! Foram os dois, lado a lado, que negociaram e fizeram a grande viragem, na África do Sul, um feito primoroso, de grande magnitude, na política!
Há ainda muito para fazer e, creio, não se poder dizer que a África do Sul seja um paraíso de anti-racismo, mas os alicerces foram lançados bem fundo e têm vindo a consolidar-se.

 Contudo, quando Mandela entendeu que era tempo de deixar o cargo, mostrando, assim, que o país poderia seguir sozinho, pelo caminho da coexistência pacífica e o respeito entre brancos e negros, da tolerância e do progresso, soube sair serenamente, porque, na sua  grandeza, como Homem e como político, nunca se considerou imprescindível,  insubstituível!
Se, este Homem foi grande, corajoso e temerário na guerra contra o racismo, foi muito maior na bondade, na reconstrução da dignidade da África do Sul,  na Paz!

Mas, Mandela, para além da sua extraordinária humanidade, ou talvez por isso mesmo, não foi propriamente um santo, foi sempre um lutador, um rebelde, um inconformista e um inovador! É desta massa que são feitos os grandes Homens, os maiores Estadistas!
Nelson Mandela é um  extraordinário  Herói africano, que mudou o curso da História, mudou o seu país e mudou o Mundo! Para muito melhor!

Obrigada, Tata Madiba!
Descansa em Paz!
Que os homens, no teu País e no Mundo, saibam compreender e respeitar o teu pensamento, o teu espírito!

MC

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Conferência ou comício?


Devo, decididamente, estar a ficar muito “entardecida” e fora de moda, com tantas "coisas" que, se calhar, compreendo ao contrário...

 Vem este desabafo a propósito da celebrada conferência "Em defesa da Constituição", que resvalou, despudoradamente, para um comício anti-Cavaco, tendo o PR sido violentamente vaiado e insultado. Não tenho particular simpatia pelo PR, mas, mandam as boas regras de convivência, que, na discordância, imperem a sensatez, a educação e o civismo! A sabedoria, enfim!
O Dr. Mário Soares, que tantas, mas tantas contas tem a dar ao País, e promotor do referido evento, desferiu um violento ataque ao PR e ao Governo, tendo mesmo dito que estes "se devem demitir enquanto podem ainda ir, para suas casa, pelo seu pé. Caso contrário, serão responsáveis por uma onda de violência que também os atingirá." A eles e a todos nós, digo eu!
O Dr. Mário Soares não percebe ou não quer perceber que a queda simultânea e violenta do PR e do Governo, é impensável, pois levaria a uma paralisação do país, a um estado de insurreição e a um tremendo desastre, a todos os níveis e, sobretudo, sendo a nossa economia tão débil, em termos económicos!
Posto isto, candidamente, pergunto eu: ao associar a permanência de Cavaco e de Passos Coelho nos seus cargos, a uma onda de violência e desacato, que ele, qual profeta, parece prever e, talvez, desejar, não está o velho, truculento, ressabiado Soares, a incitar, descaradamente, ele mesmo, à tal onda de violência que, hipocritamente, diz querer evitar?
Espanta ou, talvez não, que Soares não compreenda isto.

Estarei a ficar “entardecida” e talvez este país não seja para pessoas com a minha formação, mas penso que as atitudes de Soares são reprováveis, de uma espantosa irresponsabilidade, indignas de um Ex-Presidente da República! Soares tem-se revelado um velho amargo, que diz muitas tolices, é exagerado, violento nas palavras e, parece estar a tornar-se num incitador, inconsequente, tonto, à desordem, no país!
Uma erupção de violência, agora, seria absolutamente desastrosa! Ou não?

MC

sábado, 23 de novembro de 2013

Circo vs Ciência

Penso, com muita pena minha, que devo estar a ficar velha e há "coisas" que, sinceramente, não aceito nem compreendo.
 Na passada Quarta-feira, dia 21  (e nos dias seguintes, diga-se a verdade!), mais de metade dos noticiários dos diversos canais de televisão, foi preenchido com os mais acalorados elogios à Selecção Portuguesa de Futebol, pelo seu apuramento, rumo ao Brasil.
À Selecção não! A Ronaldo! Falou-se da grandiosidade de Ronaldo, da "magia" dos pés de Ronaldo, do hattrick, que não sei o que é, de Ronaldo, fizeram-se canções a Ronaldo, endeusou-se Ronaldo, cantaram-se exultantes, incendiadas loas a Ronaldo, o sublime herói, o pequeno deus do dia!
Os outros jogadores, foram remetidos à insignificância de meros adereços, numa estória onde o protagonista foi um deus menor...
Enfim, um entediante circo de vaidades e de tolice, para gáudio de tantos!

No entanto, esses mesmos canais não perderam mais de quatro ou cinco(?) minutos a noticiar o fantástico êxito de uma equipa de Medicina Molecular, em Lisboa, liderada por Miguel Prudêncio, que está já a desenvolver uma Vacina contra a Malária, doença terrível, que mata entre 655 mil a 1,2 milhões de pessoas, por ano.
Vacina, para a qual têm sido feitas várias tentativas, em vários  países do mundo, para encontrar, uma solução para esta calamidade, solução que o mundo procura há longos anos.
Esta equipa de jovens cientistas Portugueses trouxe uma luz de Esperança para travar este flagelo! E, que orgulho deveríamos, como país, ter nestes jovens!
Aliás, o projecto mereceu e justificou um segundo financiamento da Fundação Bill &Melinda Gates, pequena gota de água, diga-se, perante as estonteantes fortunas que os jogadores auferem, nomeadamente, o pequeno deus das coisas sem importância nenhuma!

Devo estar, de facto, a envelhecer, mas não sou, nunca fui, politicamente correcta e, na minha modesta opinião, este não deixa de ser o retrato triste e pobrezinho de um povo pequenino e imbecilizado!

Se antes, diziam que este era o país do Futebol, do Fado e de Fátima, o que é agora??

MC

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Um parecer - Ricardo Araújo Pereira -

Em 2015, ano das próximas eleições legislativas, muitos velhotes já não estarão cá para votar. Tem-se observado que uma coisa que os idosos fazem muito é falecer. Ora, gente defunta não penaliza o governo nas urnas.

Caro sr. primeiro-ministro,

O conjunto de medidas que me enviou para apreciação parece-me extraordinário. Confiscar as pensões dos idosos é muito inteligente. Em 2015, ano das próximas eleições legislativas, muitos velhotes já não estarão cá para votar. Tem-se observado que uma coisa que os idosos fazem muito é falecer. É uma espécie de passatempo, competindo em popularidade com o dominó. E, se lhes cortarmos na pensão, essa tendência agrava-se bastante. Ora, gente defunta não penaliza o governo nas urnas. Essa tem sido uma vantagem da democracia bastante descurada por vários governos, mas não pelo seu. Por outro lado, mesmo que cheguem vivos às eleições, há uma probabilidade forte de os velhotes não se lembrarem de quem lhes cortou o dinheiro da reforma.

O grande problema das sociedades modernas são os velhos. Trabalham pouco e gastam demais. Entregam-se a um consumismo desenfreado, sobretudo no que toca a drogas. São compradas na farmácia, mas não deixam de ser drogas. A culpa é da medicina, que lhes prolonga a vida muito para além da data da reforma. Chegam a passar dois e três anos repimpados a desfrutar das suas pensões. A esperança de vida destrói a nossa esperança numa boa vida, uma vez que o dinheiro gasto em pensões poderia estar a se aplicado onde realmente interessa, como os swaps, as PPP e o BPN.

Se me permite, gostaria de acrescentar algumas ideias para ajudar a minimizar o efeito negativo dos velhos na sociedade portuguesa:

1. Aumento da idade da reforma para os 85 anos. Os contestatários do costume dirão que se trata de uma barbaridade, e que acrescentar 20 anos à idade da reforma é muito. Perguntem aos próprios velhos. Estão sempre a queixar-se de que a vida passa a correr e que vinte anos não são nada. É verdade: 20 anos não são nada. Respeitemos a opinião dos idosos, pois é neles que está a sabedoria.

2. Exportação de velhos. O velho português é típico e pitoresco. Bem promovido, pode ter grande aceitação lá fora, quer para fazer pequenos trabalhos, quer apenas para enfeitar um alpendre, ou um jardim.

3. Convencer a artista Joana Vasconcelos a assinar 2.500 velhos e pô-los em exposição no MoMA, em Nova Iorque.

Creio que são propostas valiosas para o melhoramento da sociedade portuguesa, mantendo o espírito humanista que tem norteado as suas políticas.

Cordialmente,

Nicolau Maquiavel
 
NOTA: Eu preferia, no caso de exportação, ser promovida como enfeite de um jardim, num país quente e colorido! O enfeite poderá não ser, já, propriamente belo, mas pitoresco e inusitado, lá isso
 seria!!

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

2 cães, 4 gatos e a loucura do Governo, Vasco Pulido Valente, Público, 01/11/2013


 
Como costumam dizer os vigaristas da nossa política, sou insuspeito nesta matéria: não gosto de gatos, nem de cães. Mas também não gosto que o Estado se intrometa na minha vida ou na vida dos portugueses. Descobri esta semana com espanto que a sra. ministra da Agricultura resolveu legiferar sobre o número de animais que um cidadão pode ter em casa. "Animais de companhia", bem entendido, a quem já foi dedicado um "Código do Animal de Companhia" e agora uma lei muito "trabalhada" durante sete anos (não exagero) pela Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária, a mesma - presumo - que há meses deixou vender carne de cavalo por carne de vaca. A loucura da administração pública está inteiramente à solta, perante a equanimidade e deleite deste liberalíssimo Governo.

O cidadão comum fica, como de costume, perplexo. Para começar, não sabe o que são, ou não são, "animais de companhia". Uma galinha, por exemplo, é um "animal de companhia"? E um peixe, um periquito e um canário? Se a Direcção-Geral de Veterinária se resolvesse dedicar à regulamentação do caruncho ou da pulga, do rato e do mosquito, que transmitem doenças, talvez se percebesse. Assim, não. Só lhe interessa o cão e o gato. Daqui em diante, a lei não autoriza mais do que dois cães por apartamento a cada residente em Portugal ou, em alternativa, quatro gatos. A minha inexperiência neste domínio não me permite justificar a preferência que os gatos receberam, tanto mais que o cheiro a gato é particularmente repugnante. Mas suponho que os técnicos se guiaram sobretudo pelo volume. Do elefante não autorizam mais do que uma pata, para os guardas-chuvas.

Embora excêntrico e risível, o episódio do "animal de companhia" merece comentário por duas razões. Em primeiro lugar, porque o Estado continua impenitente a invadir a privacidade do cidadão anónimo. Com dois propósitos principais: justificar a sua existência e criar a necessidade de mais funcionários (neste caso de inspectores das condições de vida do "animal de companhia", que os "companheiros" tratam mal). E, em segundo lugar, como em princípio uma política séria e relevante custa dinheiro e uma simples proibição aparentemente não custa, é mais fácil que o Governo aprove a proibição do que a política séria: a sra. Cristas com certeza que nem percebeu o que se passava nas catacumbas do seu ministério. E anda por aí Paulo Portas, com o seu ar mais solene, a pregar a reforma do Estado.

Vasco Pulido Valente, Público,  01/11/2013

Quem quererá, agora, falar com ele? Vasco Pulido Valente, Público, 25.10.2013


Para José Sócrates a classificação de quem o contraria é simples. O PSD é um conjunto de "pulhas" e de "filhos da mãe" (calculo que a expressão foi, por assim dizer, mais vernácula) e em geral "a Direita é hipócrita". Santana é um "bandalho". Teixeira dos Santos teve "uma atitude horrível connosco", ou seja, com ele. Schäuble, o ministro das Finanças da Alemanha, é um "estupor". E por aí fora. De resto, ele, Sócrates, quando falhou (e, na opinião dele, quase não falhou) não teve nunca a mais vaga responsabilidade ou culpa: a verdade está em que grupos de "pistoleiros", incluindo a Casa Civil do Presidente da República, tentaram sempre impedir que ele governasse e espalharam infames calúnias para "atacar" o seu impoluto "carácter". Apesar de primeiro-ministro, não passou de uma vítima.


Vale a pena repetir o que toda a gente já sabe? Vale, porque este "chefe" (como ele mesmo se descreve) e este acrisolado democrata (como ele se declara) saiu do assento etéreo onde subira, com um saco de ressentimento e ódio, que excede, e excede por muito, o de qualquer político desde que existe um regime representativo em Portugal. Ninguém, por exemplo, disse como ele que não queria voltar a "depender do favor do povo", a quem atribui uma larga parte das suas desventuras. Dar uma réstia de poder a semelhante criatura (visto que Deus não parece preparado para o ungir) seria inaugurar uma campanha de represálias contra Portugal em peso: contra a "aristocracia" do PS (que ele se gaba de ter "vencido"), contra a Direita, contra o velho Cavaco, hoje apático e diminuído, e principalmente contra o povo, que não votou por ele em 2009.

 
Ora Sócrates, protestando o seu desinteresse pela vida pública e as suas novas tendências para a filosofia, com a convicção de um adolescente analfabeto, só pensa em abrir o caminho para um memorável ajuste de contas. Uma entrevista justificatória na RTP, um programa de "opinião" também na RTP e, agora, o lançamento de um "livro", para inaugurar um estatuto de "intelectual", a que nem sequer faltou Mário Soares, Lula da Silva e uma assistência de "notáveis", seleccionados por convite. O supracitado "livro", absolutamente desnecessário, é de facto uma prova escolar (uma "tese" de mestrado), sem uma ideia original ou sombra de perspicácia, que assenta na larga citação e paráfrase de - vá lá, sejamos generosos - 30 livros, que se usam pelo Ocidente inteiro, e em algumas fantasias francesas (Sciences Po oblige). O extraordinário não é que Sócrates se leve a sério, o extraordinário é que o levem a sério. Mas claro que o "lançamento" não foi de um "livro".

Vasco Pulido Valente,  Público, 25.10.2013

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Presença Africana

Escondido, entre uns papeis antigos, encontrei, esta manhã, um postal, já envelhecido pelos anos, onde ardiam, magníficas, as acácias rubras de África.
E a incandescência vibrante daquelas árvores, a desfazerem-se, esplendorosas, em flor, inundou o meu dia sombrio, de luz, de cor, de encantamento...


África foi o meu berço, foi a minha escola, foi o meu primeiro amor! E eu, eu sou um pedacinho de África!

Eu sou a acácia rubra, provocante e atrevida; sou a raiz forte, funda, tentacular do embondeiro; eu sou o a terra ocre, suada, sangrada, sofrida; eu sou o sol infatigável, ardente, voluptuoso.

Eu sou a árvore nua, espectral,como mãos descarnadas erguidas, para o céu, numa prece nunca atendida; eu sou a vegetação luxuriante, num verde de mil matizes, onde o cacimbo escorre, límpido e manso, como lágrimas de reconciliação; eu sou o capim ressequido, descorado, frágil.

Eu sou o flamingo cor-de-rosa, toque de delicado romantismo, no mangal; eu sou o pássaro de mil cores, que corta  o espaço numa vibração de alegria e plenitude; eu sou o animal selvagem, senhor absoluto de uma terra, que é sua.

Eu sou o diamante, o minério, a cana-de-açúcar, o algodão, o café que se oferecem, fartos, num esbanjanmento de fidalguia abastada, eu sou o cantar monocórdico das cigarras; eu sou o pequeno pirilampo, delicado ponto de luz, perdido no escuro, profundo e denso, de uma terra adormecida.

Eu sou a baía  de água azul, langorosa e morna, como regaço de mãe; eu sou a areia branda, dourada e doce, como carícia de noivo; eu sou o mar, essa força genesíaca, grandiosa, lustral.

Eu sou a palmeira esguia, ondulante, lânguida, que o vento agita, lascivo e amoroso, com requintes de amante; eu sou o cheiro consolado da terra, depois da chuva, benção divina que fecunda e cria; eu sou a trovoada violenta, repentina, que atroa os ares e desperta, malévola, os velhos medos de infância.

Eu sou o frenesim sensual, inquietante, indomável, das batucadas que, súbitas, irrompem no ar, em frémitos de paixão e de luxúria.

Eu sou o poente breve, mas intenso, clarões fortes, sanguinolentos, como lagos de amor, de ciúme, de traição.
Eu sou uma centelha viva de África!

Em mim, na minha memória, nos meus sentidos, nas minhas veias, perdura, bela e intacta, essa África exuberante e misteriosa, como parte integrante de mim, como uma marca de fogo, indelével.


Presença Africana

 
E apesar de tudo,
Ainda sou a mesma!
Livre e esguia,
filha eterna de quanta rebeldia
me sagrou.
Mãe-África!
Mãe forte da floresta e do deserto,
ainda sou,
a Irmã-Mulher
de tudo o que em ti vibra
puro e incerto...
A dos coqueiros,
de cabeleiras verdes
e corpos arrojados
sobre o azul...
A do dendém
Nascendo dos braços das palmeiras...
A do sol bom, mordendo
o chão das Ingombotas...
A das acácias rubras,
Salpicando de sangue as avenidas,
longas e floridas...
Sim!, ainda sou a mesma.
A do amor transbordando
pelos carregadores do cais
suados e confusos,
pelos bairros imundos e dormentes
(Rua 11!... Rua 11!...)
pelos meninos
de barriga inchada e olhos fundos...
Sem dores nem alegrias,
de tronco nu
e corpo musculoso,
a raça escreve a prumo,
a força destes dias...
E eu revendo ainda, e sempre, nela,
aquela
Longa história inconsequente...
Minha terra...
Minha, eternamente...
Terra das acácias, dos dongos,
dos cólios baloiçando, mansamente...
Terra!
Ainda sou a mesma.
Ainda sou a que num canto novo
pura e livre,
me levanto,
ao aceno do teu povo!   
 
ALDA LARA
 
Benguela 1953

MC


 

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

O verdadeiro macho político JOÃO MIGUEL TAVARES Jornal Público, 22/10/2013

Omeu médico aconselhou-me a evitar as gorduras, o colesterol e José Sócrates, mas depois da entrevista ao Expresso e de todo este burburinho mediático em torno do lançamento do seu livro, sinto que é meu dever voltar a ele, por estritas razões patriótico-psicanalíticas. Juro que não quero estar aqui a repisar a história do seu papel como primeiro-ministro, nem a fazer comparações entre declarações de rendimentos e níveis de vida, nem sequer a relembrar o seu amor à liberdade de expressão. O que eu quero é uma outra coisa: reflectir um pouco sobre o indiscutível fascínio que José Sócrates continua a exercer sobre tanta gente, mesmo depois de ter sido derrotado nas condições em que foi e deixando o país no estado em que está. Isso é único na nossa democracia, e nesse sentido a entrevista que concedeu a Clara Ferreira Alves é reveladora como poucas.
E é reveladora porque José Sócrates, talvez por achar que tinha diante de si alguém capaz de finalmente reconhecer todo o seu brilhantismo, se esticou muito mais do que é costume, expondo com uma clareza inédita o seu perfil de macho alfa da política nacional. Tudo naquela entrevista era bom, começando pelas fotografias de playboy cinquentão e acabando na linguagem desbragada, que Marcelo Rebelo de Sousa classificou como "tom infeliz". A mim, pelo contrário, pareceu-me um tom felicíssimo, no sentido em que mostrou Sócrates sem os véus habituais e mais de acordo com o perfil do animal feroz.

Tratar o alemão Wolfgang Schäuble por "aquele estupor do ministro das Finanças", classificar uma posição do primeiro-ministro da Holanda como "calvinismo reles", afirmar de si próprio que "sempre fui a merda de um moderado", disparar uns "pulhas" para aqui e uns "bandalhos" para acolá, e despachar os seus opositores políticos como "os filhos da mãe da direita portuguesa", só está ao alcance de alguém para quem "a dureza encenada não é nenhuma dureza. Ou se tem ou não se tem." E Sócrates, claro, é um duro. Donde, o título da entrevista: "Eu sou o chefe democrático que a direita sempre quis ter."

É particularmente significativa a necessidade que sentiu de colocar ali o adjectivo "democrático", não fosse alguém enganar-se no regime. Numa entrevista completamente autocentrada, e construída sobre a imagem do líder decidido e inabalável ("nunca me fui abaixo"), aquilo que sobressai, como uma obsessão, é o action man que só caiu porque foi traído e só não salvou o país porque não o deixaram. Que Sócrates pense isso de si próprio, não chega a espantar - como canta Caetano, "Narciso acha feio o que não é espelho". O que espanta é ele continuar a ter uma vasta corte de fiéis, que certamente não o seguem por causa das suas ideias (quais são?), mas sim porque continuam fascinados com o seu estilo enérgico, desbocado e autoritário.


Por muitas vezes que Sócrates leia a Metafísica dos Costumes (dez vezes, diz ele), este é um costume que não tem nada de metafísico: numa pátria pouco dada à iniciativa individual e que olha para o Estado como um pater familias, o carismático Sócrates, que se acha naturalmente talhado para o exercício do poder, continua a ser o flautista de Hamelin para todos aqueles que não dispensam o macho alfa à frente da manada. Já dizia o sábio de Santa Comba: "Se soubesses o que custa mandar, gostarias de obedecer toda a vida". Tivessem ensinado esta frase a José Sócrates na Sciences Po, e ele certamente assinaria por baixo.

JOÃO MIGUEL TAVARES,  Jornal Público, 22/10/2013 

domingo, 20 de outubro de 2013

Vinicius de Moraes: uma vida, tantas vidas!

Porque ontem foi Sábado e se celebrou o centenário deVinícius de Moraes, aqui fica uma singela homenagem ao Poeta, no dia do seu aniversário!

Vinicius de Moraes: uma vida, tantas vidas!
Poeta grande, entre os grandes e, nesse sentido, estrela de primeira grandeza da Literatura Brasileira!
Vinícius, a mulher... a noite... a boémia... os bares... as canções...
Na Poesia, que Vinicius fez, “com as lágrimas do tempo e o cimento do seu dia”, ele celebra o profano, o sagrado, o mal e o bem e, sobretudo, a mulher, a sedução, o amor, o erotismo, a fidelidade, a traição. Exaltado, rebelde, lírico, fluído, escreve sobre a fragilidade  da vida, que tão depressa passa, a paixão arrasadora, mas breve, a despedida, o fim e a essência do eterno. Na sua obra, perpassa, forte, a sua indignação perante as injustiças sociais, a miséria, a exploração.

Onde anda você, Vinícius??
 
 
Soneto de Fidelidade

De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

Vinícius de Moraes

Soneto do amor total

Amo-te tanto, meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.


Amo-te afim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.
Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.


E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.
Vinícius de Moraes

O Operário em construção

Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.


De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.

Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão -
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.

E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:

Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.

E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.

Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
- "Convençam-no" do contrário -
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.

Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
- Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!

- Loucura! - gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
- Mentira! - disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.

Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.
Vinícius de Moraes

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Os putos que morrem de fome são tão bem educados

Os putos que morrem de fome são tão bem educados..
Não falam com a boca cheia.
Não desperdiçam o pão.
Não brincam com o miolo fazendo bolinhas.
Nem fazem montinhos na borda do prato.
Eles não têm caprichos.
Eles não dizem: "não gosto disto".
Eles não fazem caretas quando se lhes põe o prato à frente.


Os putos que morrem de fome são tão bem educados...
Não bulham para terem bombons,
Nem dão aos cães a gordura do fiambre.
Não sobem para o nosso colo,
Nem vão a lado nenhum,
pois têm o coração tão pesado e o corpo tão fraco...
que vivem de joelhos...
Tranquilizai-vos! Os putos que morrem de fome não vão gritar.


Estas criancinhas são tão bem educadas...
Choram sem barulho, não as ouvimos.
São tão pequenas que as não vemos.
Não vão gritar, não têm forças...
Só os seus olhos podem falar...


Os putos que morrem de fome são tão bem educados...
Cruzam os braços sobre o peito e ventre inchado,
E posam para o fotógrafo europeu,
Que fará uma boa reportagem.
Morrerão lentamente... sem barulho... sem incomodar...
Estas criancinhas são verdadeiramente bem educados.
Pe. Guies Gilbert

 
O meu comentário:
 
Os putos bem educados, que morrem de fome, olham o vazio, mudos, aquietados, na tremenda indiferença de quem nada tem.
Olhar perdido, mãos esquálidas, escuras, geladas, cheias de nada, repousam, cruzadas, num desalento, sobre  barrigas redondas, grávidas de fome.
Os putos bem educados, que morrem de fome, não pedem nada, nem comida, nem roupa, nem sequer compaixão... Esperam, silenciosos, sem incomodar, esperam!

Enquanto os putos bem educados esperam e definham, num doloroso abandono, escrevem-se comoventes poemas, tiram-se fotografias perturbadoras, fazem-se exaltadas reportagens, ganham-se prémios e projecção e, até eu, aqui, estou a escrever este comentário oco, inútil, com palavras velhas e revelhas, sem nada dentro!
Entretanto, os putos bem educados, famintos, esgotados, doentes, choram, baixinho, lágrimas pequeninas que ninguém vê, e gritam, gritos mudos, pungentes, que ninguém ouve, e se dissolvem no ar.
Os putos bem educados, coração pesado e corpo fraco, esperam a morte que, negra, imóvel, paciente, como um abutre medonho, também os espera, gulosa, espera...
 
MC

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Pequenos textos escritos na luz macia, coada das manhãs de Outono

Quero de volta, o coração em chamas, o estremecimento de alma, o corpo, em sobressalto, como haste quebradiça, e a incandescência daquele momento singular, que antecedeu o primeiro beijo...

Rasgam-nos a alma, malevolamente, rasgam-nos a alma!
Remendamos a alma rasgada, com o fio das nossas lágrimas e a agulha do nosso silêncio... E, assim, vamos costurando, ponto a ponto, o tempo da vida...

Não sei de que lado chegou o Outono, tão devagarinho veio... Mas, sei que, contigo, terei sempre quinze anos e, com a tua mão na minha, quero confiar-te segredos, cantar em surdina, correr contra o vento, até me perder na curva estreita, derradeira, do caminho...
Diz-me que vai ser assim. Diz-me...

Pobre não pode ser pessimista!
Pobre tem de acreditar, ainda que a Fé pareça desmoronar-se cada minuto; pobre tem de ancorar o coração, na Esperança, ainda que esperar pareça uma miragem longínqua; pobre precisa de arrancar Coragem do fundo da alma, ainda que não saiba se ainda tem alma; pobre tem de saber abafar, dentro de si, a insegurança, o medo aflitivo de que nada dê certo, nos tortuosos caminhos da vida!
Pobre não pode ser pessimista!
Pobre tem de aprender a ver um raio de luz, no negrume espesso que o acorrenta... Há sempre um ponto de luz, na escuridão mais densa... Só assim poderá sobreviver!
“Pessimismo é luxo de rico.”

Que seria de mim sem os pobres-diabos?
Sem os pobre-diabos, quem entenderia os pedaços negros, pantanosos dos meus desencontros comigo mesma, quem acalmaria os gritos mudos dos meus terrores, quem me acompanharia nas horas pungentes do meu cansaço, quem dulcificaria os momentos amargos da minha tristeza?
Sem os pobre-diabos, quem escutaria o abismo incendiado do meu silêncio?
Quem?


Ainda preso na minha memória, o nosso amor é sonho esbatido, é braseiro apagado, é pedra cinzenta, é infinita ausência...

Ali, no canto da praça, o menino poeta brinca a bordar o tempo com linhas de vento...

A joaninha pequenina vê-se, vaidosa, ao espelho, na pocinha de água límpida! No seu vestido vermelho pontilhado de negro, brilham preciosas pérolas de chuva mansa...

Ser Poeta é isto: carregar a água da Poesia, na peneira, e salpicar nossa vida de luz e de magia!

O Poeta carrega a água sagrada dos seus versos na peneira e abençoa os nossos dias; a mulher carrega braçados de flores e perfuma a nossa vida; e eu carrego um cesto de sonhos desfeitos, de inquietações, de perdas, de cansaço. Um cesto informe, sombrio...Um cesto pesado de nada.

Se a vida é viagem imprevisível, se a vida é um eterno recomeço, se a vida é mudança constante e surpreendente, como posso eu, amor, dizer que te amarei para sempre?

Um dia, como o flamingo esguio, poderoso, de asas largas, o meu espírito irá voar, purificado, liberto, intocável, no espaço infinito, silencioso, incandescente de luz, rumo à Eternidade. Será o último voo de um flamingo pequenino, cansado, frágil, chamado EU.

Nota: Estes pequenos textos são comentários meus, a alguns poemas, frases, imagens, na minha opinião, particularmente belos e marcantes, que encontro no FB.

MC

 

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

A Dor de Pensar

Hoje, dei comigo a pensar no título de um dos livros de Pedro Paixão, (que será feito deste escritor?), “A vida cansa.”
Não creio que, apesar das suas voltas e reviravoltas, seja a vida que verdadeiramente cansa. O que cansa é pensar!

Porque tenho eu de pensar? Porque é que os meus pensamentos se amontoam, se misturam, se despenham em cascata e correm à solta, em doido tropel, na minha cabeça?
Porque não se esvazia a minha mente, nem que seja só por minutos?
Pensar é doença! E, o que parece ser um triste e murcho cliché, disse-o Fernando Pessoa e afirmou-o, ainda mais claramente, o seu heterónimo, Alberto Caeiro, o Mestre.
Penso, porque a vida é preocupação e sobressalto? Penso, porque a vida é tormento? Penso, porque a vida é mar revolto, encapelado? Penso, porque outras vidas se entrecruzam com a minha vida e nela extravazam, ansiedades, desapontamentos, injustiças, mágoas? Penso, porque se morre mais de mágoa?

Quando as noites são densas e negras e a chuva se precipita, malévola, em lençóis gelados, sombrios e o vento geme e assobia em fúria, fecho as portadas, corro os reposteiros e deixo a noite tempestuosa rugir, sozinha, tumultuada, lá fora. No meu recanto morno, silencioso e resguardado, descanso o meu cansaço.

Como em casa, eu queria que a minha mente tivesse portadas que eu pudesse trancar, persianas que eu pudesse correr e impedir-me, assim, de pensar, de me preocupar, de não saber o que fazer. Portadas, persianas que trancassem o pensamento e que me  impedissem de ter medo de naufragar num mar incandescente de tristeza, de interrogações, de incerteza, de desvario.
E, com a cabeça vazia, na quietude branda do silêncio, ali ficaria quieta, pacificada e passiva. Passiva, sim!
Eu, que nunca fui passiva, gostaria tanto de ser, e que me deixassem ser, passiva, como os montes, as rochas, as árvores, que deixam as folhas velhas, castanhas, amarelas, vermelhas, tombarem no chão do tempo, para logo as sentirem renascer lindas, verdes e brilhantes.

Não peço para renascer, peço para acastanhar, amarelecer, com a tranquila, resignada elegância das folhas das árvores... E, também enrubescer, mesmo "entardecida", mas a suspirar de amor pelo chão do tempo, regaço macio, certo, eterno...

Liberta da dor de pensar, com a alma descansada, lavada, voltaria à inocência virginal, ao pasmo essencial a ao entusiasmo deslumbrado, como se visse e sentisse a vida como uma criança, ou um animal a deambular, livre, na floresta. Nem que fosse por minutos...
Como Caeiro, integrar-me-ia, então, no Universo, como rio a fluir, flor a desabrochar, pedra estática, ave chilreante, borboleta a espalhar cor...
E, teria, enfim o tempo e a pureza essenciais para olhar os lírios do campo, altos, esguios, aveludados, com a alegria, o assombro, o deslumbre da inocência primordial. Lírios que não fiam, não porfiam, não se perdem em queixumes, não se revoltam, nem ambicionam, mas que se expõem belos, esplendorosos, em toda a sua gloriosa beleza, para quem os saiba ver!

Se fechar os olhos, respirar fundo, talvez, por segundos, eu possa ser rio que passa sereno, flor delicada, a dançar na brisa, ave a voar livre, no espaço azul, infinito e, quando cansada, possa pousar na copa macia de uma árvore coroada de luz.
Ou, possa, talvez, ser o gato, sem dono, instintivo, “ que sente só o que sente.”, de Fernando Pessoa:

Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.

Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.


És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.


Talvez...

MC

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Uma singela homenagem ao Poeta António Ramos Rosa.

O Homem cansou-se e partiu.
O seu Espírito voa como folha leve, silenciosa e livre.
Ficam as palavras ritmadas, transparentes, belíssimas, embaladas nos seus vagares poéticos.
O Poeta, jardineiro incansável, eternizou-se no jardim, de mil cores, da Poesia!
Fica a saudade reverente e muda.

Descanse em Paz, Poeta!


Creio nas palavras

Creio nas palavras
transparentes
que pertencem ao vento
ao sal
à latitude pura

Aqui
no meu reduto
entre ramos de ar
entre a cintilante indolência da água
creio no que nos une
em ondas vagas
apaixonadamente lentas

Aqui
eu pertenço
ao centro da nudez
como uma gota de água
ao rés do solo
na sua imediata e nua felicidade

António Ramos Rosa


Poema de um funcionário cansado


A noite trocou-me os sonhos e as mãos

dispersou-me os amigos

tenho o coração confundido e a rua é estreita

estreita em cada passo

as casas engolem-nos

sumimo-nos

estou num quarto só num quarto só

com os sonhos trocados

com toda a vida às avessas a arder num quarto só

Sou um funcionário apagado

um funcionário triste

a minha alma não acompanha a minha mão

Débito e Crédito Débito e Crédito

a minha alma não dança com os números

tento escondê-la envergonhado

o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente

e debitou-me na minha conta de empregado

Sou um funcionário cansado dum dia exemplar

Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?

Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?

Soletro velhas palavras generosas

flor rapariga amigo menino

irmão beijo namorada

mãe estrela música

São as palavras cruzadas do meu sonho

palavras soterradas na prisão da minha vida

isto todas as noites do mundo numa só noite comprida

num quarto só.

 António Ramos Rosa, O Grito Claro, 1958


 Uma voz que continua viva e, neste poema, a dar voz a todos os funcionários cansados, cada vez mais sós, mais apagados, mais perdidos no negrume denso do seu cansaço.

MC

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Hoje, ontem... Luz e sombra.

O dia amanheceu radioso, quente e sereno. As árvores frondosas e vestidas de verde de mil matizes parecem coroadas por uma aura branca e dourada, como um halo de santo. No jardim, brilha a relva macia, ainda salpicada, aqui e ali, de pérolas líquidas de orvalho, ardem flores, num esbanjamento de cor, chilreiam pássaros, numa amálgama de pipilares dispersos e, longínquo, ouve-se o suave murmúrio do mar. 
É a voz e o feitiço de uma manhã, ainda esplendorosa, de Verão.

Na minha cabeça, misturam-se pensamentos e recordações, coisas que tenho de fazer durante o dia e lembranças do que já passou e que eu pensava já ter esquecido. Não encontrei ainda uma ordem lógica nesta mistura de assuntos de hoje e de memórias de ontem. Deve ser apenas um saltitante, distraído divagar...

Será a isto que chamam velhice? Misturar umas coisas com as outras? Umas mais próximas e urgentes, com outras perdidas na lonjura dos anos? Assim, como se uma porta se abrisse e, de repente, se abrisse outra e outra ainda? Porque será que, com o correr do tempo, a mente não se aquieta e o coração não se tranquiliza?

Não que eu seja velha! Não, velha não sou! Ainda! Mas, “entardecida”, serei. Antiga, não quero ser! Nunca!
Gosto de pensar a velhice com ruas infindáveis, que se prolonguem infinitamente e onde se abram portas incontáveis, num caminho de escuridão, que vou desbravando, e também de luz que me envolva e aqueça...
Basta uma palavra, uma risada, um fiapo de som de uma voz, uns acordes de uma melodia, um toque, uma textura, um sabor, um cheiro e, como uma rajada de vento norte, abre-se uma porta, e outra, e outra ainda, em recantos de sombra, onde se aninham recordações. Umas são luz, amor, oração. Outras são traição, mágoa, desengano. E, com elas, com as memórias, sempre, a saudade!
Esse, é o nosso fardo!

Todos carregamos connosco o passado, esse fardo cheio das nossas lembranças, das nossas perdas e das voltas e reviravoltas da vida e tanto maior e mais pesado, quantos mais anos tivérmos de o transportar. Cada um carrega o seu, até que surja a fatídica curva estreita, no caminho.

Se calhar, o que mais pesa, não é o fardo, em si, mas o que sofremos, o que trabalhamos, o que choramos, o que renunciamos, para o encher. Porque, pesadas são as lágrimas, as desilusões, os sonhos infatigavelmente adiados ou, já mortos.
Mas sei que as minhas alegrias, o amor que fui capaz de dar, o carinho que recebi, a bondade que me amparou, o que, de positivo, construí, tornam este fardo, que carrego, mais leve e delicado.

Contudo, no seu infinito jogo de luz e de sombra, a vida é uma dádiva preciosa, uma constante e surpreendente descoberta, um espantoso, comovente milagre!

 Assim sendo:

Give me my robe, put on my crown; I have Immortal longings in me”.
William Shakespeare

Não sei porque escrevi este texto, onde dei comigo debruçada sobre o Tempo esquivo, a realidade e, talvez, a ilusão, e onde evoco apegos e renúncias que julgava imobilizados no Passado.
Ou, talvez saiba: hoje é o dia dos meus anos.

Mas, apesar de tudo:

 É bom envelhecer!

Sentir cair o tempo,
magro fio de areia,
numa ampulheta inexistente!

Passam casais jovens
abraçados!...

As árvores
balançam novos ramos!...

E o fio de areia
a cair, a cair, a cair...

Saúl Dias, in "Essência"

domingo, 11 de agosto de 2013

Textos pequenos escritos em momentos longos...

Há mulheres que trazem em si a infinitude clara e límpida dos oceanos e, nessa imensidão, misteriosamente, sempre azul e transparente, as almas exorcizam-se,  purificam-se, renovam-se...

 Eu sou aquela que se debruça, atrevida, nos teus dias!
Eu sou aquela que assombra, insubmissa, a tua memória!
Talvez ainda não saibas, mas eu sou o teu amanhecer, a tua noite, o teu mar, o teu chão, o teu alumbramento, a tua saudade...
Eu sou ela!

 Sei o que fiz com as palavras que brotaram das minhas mãos e cresceram na folha branca, como as flores coloridas e singelas que enfeitam os prados, nas manhãs macias de Verão. Com elas, escrevi-te frases soltas, líricas, luminosas, e cartas magoadas, turvas, sobressaltadas, compus poemas, sem préstimo, sem rima e sem fulgor! Que nunca recebeste...
Sei o que fiz com as palavras que amassei nesta lonjura de ti!
Só não sei o que fazer com o negrume denso, vazio, atordoado, do teu infatigável silêncio...

Porque o caminho é duro, tortuoso e, por vezes, fustigado por violentas tempestades, os pés doem, a alma dói, as lágrimas esgotam-se. Porque o caminho é íngreme, pedregoso, e é preciso furar o nevoeiro que se vai adensando e espreitar o escuro, viver, muitas vezes, cansa, esgota...

 Umas palavras descobrem-se, outras, sim, inventam-se! Descobertas ou inventadas, todas as palavras têm um peso: umas têm o peso delicado de um raio de luz, outras o peso pungente da saudade, outras ainda têm o peso festivo da alegria e do encontro, outras o peso sublime da música, outras o peso exausto da solidão. Mas, as mais dolorosas são as que têm o peso esquivo mas insuportável das palavras nunca ditas...
Aquelas que nunca te disse e carrego na alma...

Como esqueci aquele amor “eterno”?
Aquele beijo desajeitado, mágico, vegetal?
Aquele olhar verde profundo, inocente, fixo na claridade líquida do meu olhar?
Mas, o amor, como a tempestade súbita, furiosa, passou...
A vida sossegou, certa e ritmada...
Como tocam os sinos, certos e ritmados, na torre da igreja.
E quem se lembra do primeiro amor?
E quem se lembra da magia do primeiro beijo?
E quem se lembra da pureza daquele primeiro olhar, que se cruza e se dilui na mesma luz?
E quem se lembra do fragor do temporal, quando o sol brilha resplandecente?
Hoje, não sei porquê, lembrei-me...
Talvez porque nunca tenha esquecido...

Quando as palavras se revolvem, se enleiam, se aninham, quebradiças, transparentes, líquidas e se perdem, sem rumo e mudas, num atordoamento sôfrego, é porque as palavras não bastam... Ou, talvez, sejam de mais...
Escuta, meu amor, escuta o abismo incendiado do meu silêncio.

 Cada chegada traz sempre consigo a angústia velada, furtiva da despedida.
Como a vida que nos é oferecida, já embrulhada na maciez do papel delicado e fino, de uma tristezinha mansa e insidiosa...

 Chegáste... tanto tempo demoráste. Tanto, que pensei ter-te perdido! Chegáste e, em ti, descansam, enfim, o meu coração alvoroçado, os meus anseios ardentes, os meus sonhos adiados.
Contigo, a minha vida é, de novo, chama viva, incêndio, reencontro e perdimento...
Em ti, descansa a infinitude dos meus dias...

Não, velha não! Entardecida, sim! Antiga, talvez... Mas, não sei se foi a vida que se demorou, se fui eu que me perdi na urdidura apertada e confusa dos caminhos... Talvez tenha sido eu que me demorei e a vida, como um rio que não pára nem recua, foi passando indiferente, calada, solene e eu, aturdida, arrebatada e sedenta, nem sequer tenho dado por ela a passar por mim...

Ainda que a Eternidade seja breve, meu amor, quero um abraço eterno... que seja infinito agora!,

MC