sexta-feira, 3 de agosto de 2012

"O quente aconchego da Mãe Negra"

Todos sabemos que a capa e do título de um livro são de suprema importância para captar a atenção dos leitores.
Assim sendo, quem pode resistir, especialmente aqueles que, como eu, trazem África no coração, a este belíssimo e sugestivo título, " O quente aconchego da Mãe Negra" , de Sérgio Veiga, tendo no canto esquerdo a "apetitosa" indicação: Prefácio de Mia Couto, outro grande Escritor africano?
Na capa, belíssima capa, uma mulher de costas, com o filho escarranchado na anca, parece olhar o infinito e, ao fundo, uma árvore, talvez um embondeiro e um leão altivo, sentado na terra batida, seca, vermelha, de que é rei!

Eu, decididamente, não resisti e comprei o livro!

E, acreditem que, por momentos, com o livro na mão, meio hipnotizada pela magia e pelo encantamento da capa e do título do livro de um autor que não conheço, senti-me regressar à África da minha infância e juventude e pareceu-me voltar a sentir a envolvência e o aconchego, macio e doce, da Ana, a minha ama negra que me embalou com ternura nos braços negros e roliços e me contava histórias que eu escutava com os olhos redondos de espanto, brilhantes de satisfação. Ana que eu gostaria de ter guardado comigo, só para mim, até ao fim dos meus dias, mas que, por um desígnio mais forte do que todo o querer do mundo, também perdi.
Dela, ficaram, para sempre, docemente aninhadas no meu coração, a ternura, a alegria, as canções de ninar e o encantamento das pequenas histórias, onde a realidade ingénua da sua vivência, o místico e o fantástico se entrelaçavam numa harmonia perfeita e estranha, como se a Ana contivesse, em si, toda a força, todo o mistério e todo o fascínio de África!

África do sol quente, dolente e voluptuoso; do capim, amarelo e ressequido e das árvores espectrais, erguidas para o céu, na época seca, como mãos descarnadas, implorantes, quase mortas . Mas, também África da vegetação luxuriante, plantas raras, únicas, de folhagem verde e macia, onde o cacimbo escorre, tranquilo e límpido como lágrimas de reconciliação .

África dos flamingos cor-de-rosa, toque de delicado romantismo nos mangais; dos pássaros de mil cores que cortam o espaço numa vibração de alegria e de plenitude; dos animais selvagens, senhores absolutos de uma terra que é sua, estampas de perfeição e imponência, que aí se criam e reproduzem, numa estonteante explosão de vida e de beleza.

África da espantosa riqueza do minério e das pedras preciosas; das extensas plantações de cana-de-açúcar, do algodão e do café que, em muitas zonas, se oferece espontâneo e farto, num esbanjamento de fidalguia abastada !

África das baías azuis, langorosas e doces como um regaço de mãe; das areias delicadas e douradas como carícias de criança; dos palmeirais esguios, lânguidos e ondulantes, que o vento agita mansamente, amorosamente, com requintes de amante !

África do cheiro consolado da terra depois da chuva . Chuvadas fortes, repentinas, benção do céu que fecunda e cria; das trovoadas violentas, assustadoras que atroam os ares e despertam, malévolas, os velhos medos de infância; dos poentes breves, mas intensos, clarões fortes, vermelhos, sanguinolentos como lagos incandescentes de amor, de ciúme e de traição

África do cantar monocórdico das cigarras; da alegria atrevida, provocante das acácias em flor; dos milhares de pirilampos, pequenos pontos de luz perdidos no escuro profundo de uma terra adormecida !

E, à sexta-feira à noite, no frenesim das batucadas que irrompem súbitas no ar, África estremece vibrante e ansiosa. Nas sanzalas, os corpos negros, elásticos, suados, agitam-se indomáveis, em frémitos de prazer e de paixão, à luz ardente das fogueiras, ao som agreste e exuberante dos batuques ! E, durante duas noites, a sanzala cuidada e pachorrenta, transfigura-se ao ritmo inquietante dos tambores, na sensualidade lasciva da dança, nas brigas violentas, em tremendas bebedeiras !

África do andar lento e requebrado das negras, corpos sinuosos, indolentes, envoltos em panos coloridos, artisticamente traçados, carregando com naturalidade e alegria os filhos que criam livremente, sem pressas e sem angústia, confiantes na força de uma Natureza tantas vezes caprichosa e nem sempre compassiva, mas que respeitam e amam !

Estive, pela última vez, na "minha" África há muitos anos, tantos, que não os quero contar, poucos dias antes de partir rumo a uma Europa bem mais sofisticada, fria e cinzenta .

Vejo ainda, com os olhos da alma, resplandecer essa África exuberante e misteriosa que amei apaixonadamente e que, para sempre, retenho na minha memória, nos meus sentidos, nas minhas veias, como parte integrante de mim, como uma marca de fogo, indelével ! E, essa terra vermelha, de contrastes vivos e bem marcados, que ainda vejo e guardo na minha alma, permanece bela e intacta, depurada de todo o Mal, pelo filtro mágico da distância e da nostalgia !

Contudo, não é sem espanto e mágoa que, em momentos como este, me vou dando conta do muito que já esqueci. Pedaços de vida que já não são meus, perdidos na névoa de um Passado, aqui e ali, já morto, porque, aqui e ali, já desvanecido pela erosão implacável do Tempo !
E, nas clareiras que os anos foram abrindo na minha memória, ergue-se, solitária e dorida, a Cruz negra da Saudade e florescem, cansadas, estranhas violetas, sem viço e sem perfume !

Esta é a África, onde nasci e cresci, a única que conheço, que recordo, que amo!
As minhas raízes ainda lá estão, na terra imensa, suada, sofrida: junto ao embondeiro gigantesco, sentinela imponente da savana africana; junto ao mar, enterradas na areia fina, translúcida e, talvez também, no coração terno, amoroso, da Ana.

E, a propósito da capa e do título de um livro, aqui estive a vasculhar no meu baú de escritos esquecidos, onde encontrei este texto, revelho e relido, a transbordar Saudade, que dedico a todos os que têm África no coração.

MC