quinta-feira, 22 de março de 2012

A água

Dia da Água

Se não cuidarmos da água HOJE, a água mais limpa de AMANHÃ, será a água das nossas lágrimas
.


A água se ensina pela sede;
A terra, por oceanos navegados;
O êxtase, pela aflição;
A paz, pelos combates narrados;
O amor, pela cinza da memória
E, pela neve, os pássaros.

Emily Dickinson

O PINGO DA CHUVA

É UM PINGO DE CHUVA
CAINDO NA PLANTA.

É UM CANTO TRINADO,
É O SABIÁ NA FOLHAGEM.

É UM RIO QUE PASSA,
ETERNAMENTE ALI ESTANDO.

É A ÁGUA MILAGREIRA
MATANDO A NOSSA SEDE.

É A SEDE DE ESPERANÇA,
QUE NUNCA SE CANSA.

É O CANSAÇO DA TARDE
ESPERANDO A BONANZA.

É A MADRUGADA CHEGANDO
TRAZENDO NOVO ENCANTO.

É A MESA NOVAMENTE POSTA
PARA IRMOS PARA O CAMPO.

É O CAMPO ESPERANDO
A CHEGADA DA PRIMAVERA.

É A SEMENTE GERMINANDO
CRIANDO UM NOVO ALENTO.

É A BUSCA DA PAZ
ACELERANDO O NOSSO AVANÇO.



CACHOEIRA

Tal como água
Fluo
Mato a sede
Apago o fogo
Inundo...

Mas também
Deságuo
Dissipo
Evaporo...

E broto novamente da terra.

Às vezes
Grande lagoa
Outras tantas
Pequeno ribeirão

Às vezes
Chuva fina
Outras tantas
Tempestade com trovão

Mas nunca água represada.

E assim sigo escoando,
feito cachoeira,
contornando os obstáculos rumo ao grande oceano...

Luciana Dimarzio


Canto dos Espíritos sobre as Águas


A alma do homem
É como a água:
Do céu vem,
Ao céu sobe,
E de novo tem
Que descer à terra,
Em mudança eterna.

Corre do alto
Rochedo a pino
O veio puro,
Então em belo
Pó de ondas de névoa
Desce à rocha lisa,
E acolhido de manso
Vai, tudo velando,
Em baixo murmúrio,
Lá para as profundas.

Erguem-se penhascos
De encontro à queda,
— Vai, 'spúmando em raiva,
Degrau em degrau
Para o abismo.

No leito baixo
Desliza ao longo do vale relvado,
E no lago manso
Pascem seu rosto
Os astros todos.

Vento é da vaga
O belo amante;
Vento mistura do fundo ao cimo
Ondas 'spumantes.

Alma do Homem,
És bem como a água!
Destino do homem,
És bem como o vento!

Johann Wolfgang von Goethe, in "Poemas"
Tradução de Paulo Quintela


Água que se ensina pela sede, que é pingo de chuva caindo na planta e semente germinando, que é cachoeira, rumo ao oceano.
Água que é como a Alma do Homem, do céu vem e ao céu sobe.
Água é Vida.


MC

quarta-feira, 21 de março de 2012

Dia Mundial da Poesia

Hoje, dia, 21 de Março, é o Dia Mundial da Poesia!
Mas, todos os dias deviam ser dias da Poesia. Todos os dias são dias da Poesia!

Como disse Eugénio de Andrade, "A Poesia ajuda-nos a suportar o peso do mundo".

Este propósito da Poesia é especialmente necessário, nestes tempos conturbados, que vivemos, num lugar que, já no início do século XX, impressionou Unamuno e o levou a comentar que Portugal era um país de Poetas e de suicidas, atendendo ao número de Poetas e Escritores, seus contemporâneos, que se suicidaram, Antero de Quental, Trindade Coelho, Soares dos Reis, Camilo Castelo Branco, Laranjeiro, etc.

A Poesia é Luz, Bálsamo, Voo, Sobressalto, Deslumbramento...


Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Fernando Pessoa


Ser Poeta

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Áquem e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!

Florbela Espanca



Motivo



Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.

Cecília Meireles

"O Poeta é um fingidor", mas "Ser Poeta é ser mais alto, ser maior do que os homens", " não é alegre nem triste" " E a canção é tudo".
Como disse José Martí, o Poeta é o alimento vivo da chama com que ilumina, suaviza, deslumbra, desperta...

MC

segunda-feira, 19 de março de 2012

A ti, Pai...

A ti, Pai, hoje e sempre, porque todos os dias são teus.

A ti, Pai, porque tantas vezes, como agora, é para ti que o meu pensamento voa, a minha alma se ajoelha, reverente, perante a tua e eu te agradeço e te bendigo!

A ti, Pai, porque foste, em cada um dos meus dias, a minha âncora, o meu porto de abrigo, a luz-guia dos meus passos! Antes, agora, sempre!

A ti, Pai, que não foste um santo, um filósofo ou um poeta, mas talvez tenhas sido tudo isso, sem ninguém saber. Nem mesmo tu!

A ti, Pai, porque este dia é teu e esta noite sonhei contigo e fomos juntos, lá para onde só a alma e a memória podem ir, onde somos livres, o céu é sempre azul, as flores não perdem o encanto, nem o perfume e tudo tem a cor cristalina do teu espírito!

A ti, Pai, porque nunca nos dissemos Adeus!

A ti, Pai, porque só se diz Adeus quando o Amor acaba e o fim é, então, inevitável, definitivo, irreparável!

A ti, Pai, porque só se diz Adeus, quando o laço visceral, feito de sangue e de afecto, permanece intacto e tu continuas comigo, pois, sobre o coração e o pensamento, ninguém, nada, nem mesmo a morte, tem qualquer poder!

A ti, Pai porque não se diz Adeus, quando sabemos que, em termos de Eternidade, vinte, trinta ou quarenta anos de separação, não são mais do que dois, três ou quatro segundos deste tempo que contamos!

A ti, Pai, porque não se diz Adeus, quando o rasto claro, límpido, brilhante da tua luz é ainda o caminho que percorro!

A ti, Pai, este poema de Jorge Reis-Sá, porque não sou Poeta e ele diz o que eu não sou capaz de dizer e porque não sei fazer um poema só para ti.

A ti, Pai, hoje e sempre, porque todos os dias são teus e a minha sombra és tu.

Pai, a Minha Sombra és Tu

Tua cadeira está vazia, um corpo ausente
não aquece a madeira que lhe dá forma

e não ouço o recado que me quiseste dar
nem a tua voz forte que grita meninos
na hora de acordar
ouço o teu abraço, no corredor em gaia
e os olhos molhados pela inusitada despedida

o sol foge
mas o crepúsculo desenha a sombra que
tenho colada aos pés
ou o espelho, coberto com a tua face

pai, digo-te
a minha sombra és tu


Jorge Reis-Sá, in "A Palavra no Cimo das Águas"

MC

quinta-feira, 15 de março de 2012

"The tyger"/ "The lamb"- William Blake

HE TYGER (from Songs Of Experience)


Tyger! Tyger! burning bright
In the forests of the night,
What immortal hand or eye
Could frame thy fearful symmetry?
In what distant deeps or skies
Burnt the fire of thine eyes?

On what wings dare he aspire?
What the hand dare sieze the fire?
And what shoulder, & what art.
Could twist the sinews of thy heart?
And when thy heart began to beat,
What dread hand? & what dread feet?

What the hammer? what the chain?
In what furnace was thy brain?
What the anvil? what dread grasp
Dare its deadly terrors clasp?
When the stars threw down their spears,
And watered heaven with their tears,

Did he smile his work to see?
Did he who made the Lamb make thee?
Tyger! Tyger! burning bright
In the forests of the night,
What immortal hand or eye
Dare frame thy fearful symmetry?

William Blake



The Lamb ( from Songs of Innocence)


Little Lamb who made thee
Dost thou know who made thee
Gave thee life & bid thee feed.
By the stream & o’er the mead;
Gave thee clothing of delight,
Softest clothing wooly bright;
Gave thee such a tender voice,
Making all the vales rejoice!
Little Lamb who made thee
Dost thou know who made thee

Little Lamb I’ll tell thee,
Little Lamb I’ll tell thee!
He is called by thy name,
For he calls himself a Lamb:
He is meek & he is mild,
He became a little child:
I a child & thou a lamb,
We are called by his name.
Little Lamb God bless thee.
Little Lamb God bless thee.


Symbols


The Tiger: Evil (or Satan)
The Lamb: Goodness (or God)
Distant Deeps: Hell
Skies: Heaven

Themes

The Existence of Evil


.......“The Tiger” presents a question that embodies the central theme: Who created the tiger? Was it the kind and loving God who made the lamb? Or was it Satan? Blake presents his question in Lines 3 and 4:

What immortal hand or eye
Could frame thy fearful symmetry?


Blake realizes, of course, that God made all the creatures on earth. However, to express his bewilderment that the God who created the gentle lamb also created the terrifying tiger, he includes Satan as a possible creator while raising his rhetorical questions, notably the one he asks in Lines 5 and 6:

In what distant deeps or skies
Burnt the fire of thy eyes?


Deeps appears to refer to hell and skies to heaven. In either case, there would be fire--the fire of hell or the fire of the stars.
.
......Of course, there can be no gainsaying that the tiger symbolizes evil, or the incarnation of evil, and that the lamb (Line 20) represents goodness, or Christ. Blake's inquiry is a variation on an old philosophical and theological question: Why does evil exist in a universe created and ruled by a benevolent God?
Blake provides no answer. His mission is to reflect reality in arresting images. A poet’s first purpose, after all, is to present the world and its denizens in language that stimulates the aesthetic sense; he is not to exhort or moralize. Nevertheless, the poem does stir the reader to deep thought. Here is the tiger, fierce and brutal in its quest for sustenance; there is the lamb, meek and gentle in its quest for survival. Is it possible that the same God who made the lamb also made the tiger? Or was the tiger the devil's work?

The Awe and Mystery of Creation and the Creator

The poem is more about the creator of the tiger than it is about the tiger intself. In contemplating the terrible ferocity and awesome symmetry of the tiger, the speaker is at a loss to explain how the same God who made the lamb could make the tiger.
Hence, this theme: humans are incapable of fully understanding the mind of God and the mystery of his handiwork.

Notes taken from GOOGLE

MC

quinta-feira, 8 de março de 2012

Mulher

Há, no coração de todas as mulheres, uma esquina de segredo, um cantinho de silêncio.


A mulher que passa

Meu Deus, eu quero a mulher que passa.
Seu dorso frio é um campo de lírios
Tem sete cores nos seus cabelos
Sete esperanças na boca fresca!

Oh! Como és linda, mulher que passas
Que me sacias e suplicias
Dentro das noites, dentro dos dias!

Teus sentimentos são poesia
Teus sofrimentos, melancolia.
Teus pêlos são relva boa
Fresca e macia.
Teus belos braços são cisnes mansos
Longe das vozes da ventania.

Meu Deus, eu quero a mulher que passa!

Como te adoro, mulher que passas
Que vens e passas, que me sacias
Dentro das noites, dentro dos dias!
Por que me faltas, se te procuro?
Por que me odeias quando te juro
Que te perdia se me encontravas
E me encontravas se te perdias?

Por que não voltas, mulher que passas?
Por que não enches a minha vida?
Por que não voltas, mulher querida
Sempre perdida, nunca encontrada?
Por que não voltas à minha vida
Para o que sofro não ser desgraça?

Meu Deus, eu quero a mulher que passa!
Eu quero-a agora, sem mais demora
A minha amada mulher que passa!

No santo nome do teu martírio
Do teu martírio que nunca cessa
Meu Deus, eu quero, quero depressa
A minha amada mulher que passa!

Que fica e passa, que pacifica
Que é tanto pura como devassa
Que bóia leve como cortiça
E tem raízes como a fumaça.

Vinicius de Moraes


Amélia dos olhos doces

Amélia dos Olhos Doces
quem é que te trouxe
grávida de esperança?
Um gosto de flor na boca.
Na pele e na roupa
perfumes de França.

Cabelos cor de viúva.
Cabelos de chuva.
Sapatos de tiras
e pões, quantas vezes
não queres e não amas
os homens que dormem
contigo na cama.

Amélia dos Olhos Doces
quem dera que fosses
apenas mulher.
Amélia dos Olhos Doces
se ao menos tivesses
direito a viver!

Amélia gaivota
amante ou poeta.
Rosa de café.
Amélia gaiata
do Bairro da Lata.
Do Cais do Sodré.

Tens um nome de navio.
Teu corpo é um rio
onde a sede corre.
Olhos Doces. Quem diria
que o amor nascia
onde Amélia morre?

Cabelos cor de viúva.
Cabelos de chuva.
Sapatos de tiras
e pões, quantas vezes
não queres e não amas
os homens que dormem
contigo na cama."

Joaquim Pessoa


Calçada de Carriche

Luísa sobe,
sobe a calçada,
sobe e não pode
que vai cansada.
Sobe, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe
sobe a calçada.

Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas,
não dá por nada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu da sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu-a deitada;
serviu-se dela,
não deu por nada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Na manhã débil,
sem alvorada,
salta da cama,
desembestada;
puxa da filha,
dá-lhe a mamada;
veste-se à pressa,
desengonçada;
anda, ciranda,
desaustinada;
range o soalho
a cada passada;
salta para a rua,
corre açodada,
galga o passeio,
desce a calçada,
desce a calçada,
chega à oficina
à hora marcada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga;
toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina,
volta à toada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga.
Regressa a casa
é já noite fechada.
Luísa arqueja
pela calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.


António Gedeão


MC

segunda-feira, 5 de março de 2012

O gato amarelo

O gato amarelo dorme, no muro do jardim, por onde trepam roseiras que se debruçam, curiosas, para o quintal da vizinha. Aqui e ali, já florescem, numa languidez de desmaio libidinoso, algumas rosas claras, esmaecidas. Muito perto, exibe-se, esplendorosa, a magnólia rosada, num turbilhão incandescente de flores macias e acetinadas. Um pouco adiante, o pequeno maciço de mimosas abre-se, numa explosão tumultuada de flores douradas a exalar um perfume atrevido, ligeiramente áspero e quente, a lembrar, neste Inverno brando, a ardência do campo, numa Primavera antecipada e luminosa. O gato dorme, numa quietude amodorrada e mansa. E o pêlo farto e macio, de um amarelo suave a lembrar o caramelo leve e doce da minha infância, arrecada, guloso, numa orgia de reflexos de ouro, a luz do sol da manhã , que o aquece e lhe embala os sonhos.
De felino belo, independente, livre.

O gato amarelo não é meu, nem é de ninguém. Mas é minha, a bata amarela que visto quando, por momentos, me atrevo a tentar aquecer e adormentar a dor, o medo, a solidão do outro, dos outros. Com um sorriso, com uma palavra, com o silêncio... Mais, com o silêncio.
Em vão. Eu sei...

Há uns dias, no hospital, ajudei uma velhinha mirrada, a pele crespa, seca e amarelada como um papel gasto e enrugado,a sentar-se na cama. Não foi tarefa fácil, devido aos tubos, para onde escorriam fluídos viscosos e escuros, vazados para sacos já meio-cheios, pousados no chão. Cheirava vagamente a sangue apodrecido, a decadência e a uma amargura sombria, depressiva, quase palpável.
Quando me tentei desprender dela, agarrou-se mais a mim e disse-me muito baixinho: “Cheira tão bem, minha filha! Eu cheiro mal. Cheiro a doença e a estes líquidos negros, purulentos, que saem de mim. Não sei de onde vem tanta desgraça, tanta doença. Porquê tanto tempo...?”
Olhar ensombrado.
Coração aceso, no desacerto do peito.
Com o corpo esquálido, quebradiço e frágil, nos braços, compreendi que, o que a fazia prender-se a mim, não era a frescura doce e envolvente do meu perfume, mas a minha aproximação, o toque morno e macio de humanidade suavizando, por momentos, a sua velhice doente, solitária e fria.
Coração inquieto, no desconcerto dos dias.

Com duas gotas do meu perfume, já o disse, sinto-me sumptuosa! Hoje não. Hoje senti-me cansada; senti-me grata; tive medo.
Senti-me cansada da miséria humana, senti-me cansada da tenebrosa solidão que, como um abutre negro, espera pacientemente o desatar dos nós da vida; senti-me cansada da sordidez da indiferença que, como um cavalo doido, à solta, num galope desenfreado, destrói , implacável, afectos e compaixão, senti-me cansada do cansaço, do nojo, da ingratidão, do aborrecimento que vejo, que sinto...;
Senti-me grata pelo amor, pelas mãos, pelos sorrisos, pelas palavras e também pelas patinhas felpudas que me abraçam e me aquecem e afagam a alma;
Tive medo da imprevisibilidade da vida.

O gato amarelo de pêlo farto e macio, de um amarelo suave a lembrar o caramelo leve e doce da minha infância, já não dorme e não sonha no muro do jardim, enfeitado de roseiras que trepam, atrevidas e curiosas, e onde já florescem algumas rosas, que desmaiam voluptuosas, lascivas, na cascata refulgente do sol da manhã.
Imagino o gato, mancha amarela a brilhar na claridade dourada, num outro jardim qualquer, com cheiro a erva fresca, rasteira, humedecida, a brincar sozinho, mas “como se fosse na cama”, uma brincadeira muito sua, ou a lamber, deliciado e vagarosamente, num consolo muito seu, uma patinha amarela ou, talvez sentado ao sol, a observar, sobranceiro e livre, o que o rodeia com os seus olhos grandes, luminosos, de um verde translúcido, com frinchas amarelas...
Belos, esquivos, impenetráveis...


NOTA: Há na doença, uma violência febril marcada de delírios, suores e de soluços de dor; há uma violência feroz na agonia lenta, silenciosa e aflita, da resignação, tão calada e plangente, que parece coisa de santo, ou um alumbramento por Deus, mas que, eu acredito, ser mais desesperança, desistência, entrega desesperada, sem remédio, apesar do agarramento instintivo, apaixonado, à vida; há na velhice solitária, uma violência angustiada, feita de revolta amordaçada, de depressão melancólica, temperada com o amargor de lágrimas amassadas no negrume gelado dos dias...

MC