quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Páginas soltas do meu Diário

6 de Novembro de 2011 – Domingo

O dia amanheceu dourado e morno. Saí e comprei um perfume - Chanel Nº5. Gosto muito de perfumes, mas este é, talvez, o meu preferido. Com duas ou três gotinhas, sinto-me sumptuosa. Sempre!

À tarde, encontrei-me com Dulce Maria Cardoso no “Retorno” e com ela revivi a saga triste dos retornados das colónias ultramarinas. Com ela, revivi a aflição da antecipação da perda, a amargura da perda, a rejeição angustiada da perda e, por fim, vencidos, a aceitação de uma perda amarga, com um recomeço, com ferramentas gastas, feito de medo, de frustração, de cansaço!


7 de Novembro de 2011- 2ªfeira

Dei um passeio delicioso com a Chininha, a Sofia e a Íris, à beira-mar. O sol cobriu-nos de ouro e de luz! A vida, assim, fica-me tão bem...
Fica-me bem sentir a alegria delas a meu lado! Sabe-me a bolo e a flores frescas do orvalho da manhã, adaptar o ritmo dos meus passos ao compasso das passadas saltitantes delas!

À tarde, vesti a bata amarela, com dois bolsos pregados, onde guardo sorrisos, palavras, afagos e pequenas mentiras, daquelas que não fazem mal. Que talvez dêem algum consolo, que talvez transmitam alguma réstea de Esperança, sei lá...


8 de Novembro de 2011 – 3ªfeira

O tempo arrefeceu.
Guardei, definitivamente, com uma tristeza vaga, as roupas leves, coloridas, bonitas de Verão.
Comprei um casaco quente e uma blusa a condizer. Tentei-me com um baton novo. Pintar os lábios com um baton de cor diferente é como estrear um vestido. A alegre expectativa é quase a mesma... Esta sou eu: vaidosa...

Estou na cozinha, com as minhas patudas aos pés... Enquanto a carne assa no forno, eu escrevo e elas dormem consoladamente... Uma delas, a Íris, soltou um suspiro fundo. Embora durma mesmo aqui a meu lado, andará, nos seus sonhos de cachorrinha feliz, a correr alegremente pelo jardim...


9 de Novembro de 2011 – 4ªfeira

Esta noite sonhei contigo. Mas já não eras tu! Dei-me conta que és, agora, apenas uma ténue recordação. Ou nem isso... Talvez, ainda, um fiapo de memória que o tempo, implacável, quase desvaneceu! Melhor assim...

Fiz um bolo de laranja. Amargo e doce! Agridoce!

Comecei a ver, pela “Claraboia” de um prédio com seis inquilinos, o mundo que Saramago criou e que, generosamente, partilha agora comigo. Começa assim, com esta belíssima frase de Raúl Brandão:

“Em todas as almas, como em todas as casas, além da fachada, há um interior escondido.”

Para lá da fachado do livro, onde se destaca a clarabóia, descubro um Saramago jovem e uma escrita rica, ainda pontuada, fluída, poética! Uma narrativa já poderosa, o retrato perfeito de uma época, povoada por personagens sólidas, delineadas por um profundo conhecedor da natureza humana! Embora só com trinta anos.


10 de Novembro de 2011 – 5ªfeira

Vi uma mulher gorda e uma rapariga atrozmente feia, de tão antipática e macambúzia. Vi um um homem, com um aspecto miserável, vasculhar cuidadosamente, quase amorosamente, o lixo. No supermercado, ouvi uma adolescente usar uma linguagem grosseira e insultuosa para com a mãe que a ouviu meio receosa e lhe comprou o que ela queria. Apeteceu-me abanar a mãe submissa e partir a cara à rapariga! A falta de educação, de respeito e a passividade doentia de quem é ofendido, despertam em mim, impulsos agressivos. Sou assim: impulsiva...

Debrucei-me sobre a cama de um doente e, com a mão dele presa na minha, tirei do meu bolso uma atamancada mentira que já não deu consolo, já não transmitiu Esperança! Uma mentira patética, inútil!

Com a alma ajoelhada, agradeci à vida, a sua imensa generosidade para comigo! Porque não sou macambúzia, tenho mais do que preciso, ainda posso ser eu a estender as mãos e o coração aos outros e, sobretudo, porque tenho umas filhas lindas, maravilhosas, perfeitas! Que são o meu enlevo, o meu orgulho, a minha alegria mais profunda!


11 de Novembro de 2011 – 6ªfeira

É dia de S. Martinho e cometi o pecado da Gula. Comi uns rojões fantásticos e castanhas assadas. Bebi vinho novo e circundei-me de rosas com cheiro a Família, a conforto, a serenidade! E pensei que o pecado não tem em si, só aquele travo excitante de transgressão! É também muito gostoso!

Continuo a desvendar, pela modesta Clarabóia, do prédio com seis inquilinos, os enredos que Saramago teceu!
O encantamento da descoberta, só empalidece porque um livro, escrito na década de 1950, é lançado, despudoradamente, obedecendo ao novo Acordo Ortográfico! Não foi assim que foi escrito! Na minha opinião é uma falta de respeito para com o Autor! Mas, quem sou eu...?


12 de Novembro de 2011 – Sábado

Fui às compras de manhã.

À tarde vi um carro atropelar, mortalmente, um cão e seguir sempre, como se nada tivesse acontecido.
Conforme pude, tirei-o da estrada e deitei-o na valeta, numa cama fria, feita de ervas daninhas, com um homem, de meia-idade, bem vestido e aprumado, a ver a cena e que, sem mexer um dedo para ajudar, se limitava a repetir: “ Está morto. Não vê que está morto?”
E, percebi que, tanto como o ódio, também a indiferença gera violência! Porque, nesse momento, uma raiva imensa quase me sufocou e, se tivesse podido, teria agredido, violentamente, aquele homem insensível e o motorista assassino! Sem um tremor de consciência...


13 de Novembro de 2011 – Domingo

Dia chuvoso, triste e cinzento. Acordei muito cedo para a mais maravilhosa das surpresas: A pequenina Inês, na cama comigo! Depois de um acordar algo estremunhado e do asssombro, a explosão de alegria! E numa girândola de luz, de ternura e de delicioso sobressalto, foi a festa!

À noite, vi a estupenda entrevista com Dulce Maria Cardoso e a homenagem a quem, no rebuliço precipitado de uma revolução de cravos, se viu espoliado, sem misericórdia e dramaticamente, de tudo o que construira, a homenagem a quem, perante a indiferença deste Continente pequenino e cinzento, tudo perdeu, mas teve coragem e da fraqueza soube fazer a força, para recomeçar! Do nada!

MC

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

O Fado

“Portugal é um país que canta o oceano”

Li esta belíssima frase hoje. Disse-a uma americana para definir o Fado! E, talvez, esta seja a mais bonita e completa definição do nosso Fado, agora Património Imaterial da Humanidade!

A dolência do trinar das guitarras, a saudade, a ausência e o sentimento triste da perda que o Fado canta, talvez venha das grandes e perigosas viagens por mares nunca dantes navegados, embaladas pelo Sonho e fustigadas por tormentas desabridas, pelo medo tremendo, temperado por uma incontrolável atracção pelo Desconhecido!
O Fado talvez tenha nascido dessa distância marítima, do querer ser grande e dar novos mundos ao mundo, e também, do anseio de voltar a casa, o coração morto de saudade, mas quantas vezes, ficar esse desejo esmagado, perdido, nas profundezas do oceano infinito.
Talvez tenha nascido da amargura e da desolação de um retorno impossível, pois, regressando, já ninguém encontrar na casa abandonada, em ruínas. Tendo as gentes terminado as suas viagens, talvez antes de tempo. Tendo o Tempo, implacável, devastado tudo!
Talvez , a canção deste povo marinheiro, sedento de aventura, por esses mares além, venha daí!

O Fado canta a vida e o que é a vida senão uma viagem, umas vezes, bonançosa, outras vezes, acidentada, feita de encontros inesperados, de despedidas constantes, de desencontros doloridos?
E, imersos na saudade, no vazio da ausência, na lonjura da distância, vamos fazendo a nossa viagem, vamos cumprindo o nosso fado, mesmo sem nunca o oceano atravessar.
Talvez seja porque, afinal, haja na vida muito deste verso bem fadista: “Tudo isto é triste, tudo isto existe, tudo isto é FADO”!

MC

sábado, 5 de novembro de 2011

O dia da criação

Macho e fêmea os criou.
Gênese, 1, 27



I

Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas, como o mar
Os bondes andam em cima dos trilhos
E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na cruz para nos salvar.



Hoje é sábado, amanhã é domingo
Não há nada como o tempo para passar
Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo
Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo mal.


Hoje é sábado, amanhã é domingo
Amanhã não gosta de ver ninguém bem
Hoje é que é o dia do presente

O dia é sábado.



Impossível fugir a essa dura realidade
Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios
Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas
Todos os maridos estão funcionando regularmente
Todas as mulheres estão atentas

Porque hoje é sábado.


II


Neste momento há um casamento
Porque hoje é sábado
Hoje há um divórcio e um violamento
Porque hoje é sábado
Há um rico que se mata
Porque hoje é sábado
Há um incesto e uma regata
Porque hoje é sábado
Há um espetáculo de gala
Porque hoje é sábado
Há uma mulher que apanha e cala
Porque hoje é sábado
Há um renovar-se de esperanças
Porque hoje é sábado
Há uma profunda discordância
Porque hoje é sábado
Há um sedutor que tomba morto
Porque hoje é sábado
Há um grande espírito-de-porco
Porque hoje é sábado
Há uma mulher que vira homem
Porque hoje é sábado
Há criançinhas que não comem
Porque hoje é sábado
Há um piquenique de políticos
Porque hoje é sábado
Há um grande acréscimo de sífilis
Porque hoje é sábado
Há um ariano e uma mulata
Porque hoje é sábado
Há uma tensão inusitada
Porque hoje é sábado
Há adolescências seminuas
Porque hoje é sábado
Há um vampiro pelas ruas
Porque hoje é sábado
Há um grande aumento no consumo
Porque hoje é sábado
Há um noivo louco de ciúmes
Porque hoje é sábado
Há um garden-party na cadeia
Porque hoje é sábado
Há uma impassível lua cheia
Porque hoje é sábado
Há damas de todas as classes
Porque hoje é sábado
Umas difíceis, outras fáceis
Porque hoje é sábado
Há um beber e um dar sem conta
Porque hoje é sábado
Há uma infeliz que vai de tonta
Porque hoje é sábado
Há um padre passeando à paisana
Porque hoje é sábado
Há um frenesi de dar banana
Porque hoje é sábado
Há a sensação angustiante
Porque hoje é sábado
De uma mulher dentro de um homem
Porque hoje é sábado
Há uma comemoração fantástica
Porque hoje é sábado
Da primeira cirurgia plástica
Porque hoje é sábado
E dando os trâmites por findos
Porque hoje é sábado
Há a perspectiva do domingo

Porque hoje é sábado


III


Por todas essas razões deverias ter sido riscado do Livro das Origens,
ó Sexto Dia da Criação.
De fato, depois da Ouverture do Fiat e da divisão de luzes e trevas
E depois, da separação das águas, e depois, da fecundação da terra
E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra
Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado.
Na verdade, o homem não era necessário
Nem tu, mulher, ser vegetal, dona do abismo, que queres como
as plantas, imovelmente e nunca saciada
Tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão.
Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos dias
Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa
Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos
Seríamos talvez pólos infinitamente pequenos de partículas cósmicas
em queda invisível na
terra.
Não viveríamos da degola dos animais e da asfixia dos peixes
Não seríamos paridos em dor nem suaríamos o pão nosso de cada dia
Não sofreríamos males de amor nem desejaríamos a mulher do próximo
Não teríamos escola, serviço militar, casamento civil, imposto sobre a renda
e missa de
sétimo dia.
Seria a indizível beleza e harmonia do plano verde das terras e das
águas em núpcias
A paz e o poder maior das plantas e dos astros em colóquio
A pureza maior do instinto dos peixes, das aves e dos animais em [cópula.
Ao revés, precisamos ser lógicos, freqüentemente dogmáticos
Precisamos encarar o problema das colocações morais e estéticas
Ser sociais, cultivar hábitos, rir sem vontade e até praticar amor sem vontade
Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no Sexto Dia e [sim no Sétimo
E para não ficar com as vastas mãos abanando
Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança
Possivelmente, isto é, muito provavelmente

Porque era sábado.

Vinícius de Moraes

MC

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

A Ira

"A violência é o único refúgio dos fracos e dos incompetentes"
Isaac Asimov




Ela ouviu a porta abrir, para logo se fechar com violência. Sentiu, com um arrepio, que ele estava, outra vez, mal disposto, zangado. O cheiro pútrido da sua ira que, como um polvo, parecia estender os tentáculos por toda a casa, procurando-a, maligno, para a prender e oprimir, atingiu-a, ainda mesmo antes de a encontrar, como uma pedra de fogo.

....

Teve medo!
Mexeu a sopa e começou a cortar o tomate, em fatias finas, para a salada. Não se voltou quando ele entrou na cozinha, infectando, tudo em seu redor, com os miasmas pestilentos, contaminados, da sua ira maléfica, que ela tão bem conhecia!

...

Ela voltou-se devagar, como em câmara lenta, a faca esquecida na mão e olhou para ele. Encolheu-se!
Aterrorizada, viu diante de si, aquele homem alto, forte, com os olhos brilhantes, raiados de sangue, um olhar duro e frio, como de uma serpente, o rosto alterado e uma veia grossa, como uma corda, a latejar na testa. Aquele homem que era o seu marido.

...

Sem esperar pela resposta, aproximou-se dela, de um salto e esbofeteou-a! Atingiu-lhe o nariz, o sobrolho esquerdo e o lábio. O sangue jorrou! De cabeça perdida, agarrou-a pelos cabelos e bateu-lhe outra vez. Na mão, ficou-lhe um punhado de cabelo loiro, deu-lhe um empurrão brutal e ela caiu desamparada. Gritou e urinou-se quando ele lhe deu um pontapé impiedoso, nos rins!
Ali ficou, deitada no chão, vulnerável, cheia de dores, esgotada. Como de costume, ele falou, falou, gritou, como um demónio, a contorcer-se, num inferno de ódio e de ira! E, como sempre foi irónico, foi sarcástico, foi insultuoso! Foi malévolo e foi cínico!

...

Caída no chão, num repentino flashback, reviveu doze anos de agonia e de calvário!

...

Estarreciam-na aquelas frequentes e súbitas explosões de uma ira terrível, violenta, incontrolável, por pequenas coisas e, às vezes, que ela soubesse, por nada, seguidas de uma calma doentia, de uma quietação estranha que sempre a assombrara e de intoleráveis carícias e rudes manifestações de afecto que, geralmente, acabavam em longas sessões de sexo que a enojavam, vilipendiavam e eram uma torturante violação para o seu pobre corpo espancado!
Mas, como ele dizia depois, com um risinho lúbrico e maligno, excitava-o, irresistivelmente, senti-la assim frágil, cansada, submetida a si, aos seus mais loucos desejos!
Nunca ninguém a ajudara, ... nem a polícia a quem, uma vez, para nunca mais, ousara apresentar queixa.
O agente destacado para levantar o auto, exigira que ela relatasse tudo, com todos os detalhes e ouvira-a, com um sorriso canalha e o olhinho lascivo que a despia. Enfureceu-se, envergonhou-se, arrependeu-se!
No fim, com um olhar velhaco para o colega do lado, o agente disse-lhe que veriam o que se podia fazer.
Já em casa, sozinha, com medo de represálias e de lhe despertar, mais furiosamente, a ira, não dormira nessa noite e retirou a queixa no dia seguinte!

...

De repente, esquecidas as palavras, ele perdeu-se no silêncio frio da cozinha e aquietou-se. Ainda caída no chão, ouviu-o dizer, nessa quietação estranha, que nunca deixara de a assombrar:
-Levanta-te, amor! São horas de jantar. Sabes que te amo. Olha para mim! Levanta-te!
Limpa o sangue do teu corpo! Isso não é nada!

...

E, com um olhar carregado de sensualidade, continuou:

Estás cada vez mais bonita, perfeita e desejável! Ah! Como és linda, macia e como eu te desejo!

...

Anda, levanta-te! Limpa o sangue do teu corpo, vá! São horas de jantar. Serve a sopa!

...

Estava farta daquele rosto, agora tranquilo e doce, como o de um noivo, mas, ainda há pouco, medonho, congestionado, contorcido numa violência diabólica; tinha medo daqueles olhos brilhantes, fixos, raiados de sangue, que pareciam expedir chispas de fogo; enojava-a aquela boca que se abria, agora, num arreganho, a imitar um sorriso e onde, não há muitos minutos, os dentes escorriam ira!

Encolhida no chão, sentiu-se suja, humilhada, corrompida pela raiva, pela loucura maldosa, pela irracionalidade daquele monstro!
A seu lado, sob a saia, sentiu a faca.
Levanta-te, anda! Está a fazer-se tarde para o jantar!

Ela levantou-se, devagar, a faca na mão, escondida nas pregas da saia.

Que tens? Não me provoques! Tem juízo! Anda, serve a sopa! Depressa ! Tenho fome e apeteces-me, depois, amor! A minha sobremesa predilecta és tu, sabes?

Uma vaga imensa e negra, de ódio, há tanto tempo acumulado, inundou-a e quase a submergiu, cegando-a!

Como uma sonâmbula, dirigiu-se a ele.

E, de repente, o dique que continha o seu ódio, um ódio vivo, que fora crescendo, crescendo, fortalecendo-se e refinando-se, ao longo do tempo, como um vinho especial, raro no corpo e no travo, cuidadosamente envelhecido, esse dique que barrava a sua repulsa, a sua raiva, o seu nojo, rompeu-se fragorosamente e, com um grito, arrancado do mais profundo das suas entranhas, do mais íntimo do seu ser, ela enterrou-lhe a faca no ventre.!

Uma vez... duas vezes... três vezes...
...


Nota: Este texto foi escrito em 2009, para ilustrar a IRA, no Curso de Escrita Criativa, " As sete Virtudes e os sete Pecados Mortais", coordenado pelo Dr. Mário Claudio.

MC

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

"Vozes" - Ana Luísa Amaral

No dia onze, deste Outubro dourado e macio, vivi um fim de tarde de delicioso encantamento, com a poesia de Ana Luísa Amaral, na apresentação do seu novo livro "Vozes".
No Planetário, na rua das Estrelas, choveram estrelas de ouro, de luz e de cor, em forma de poemas!
E, soaram "Vozes"! Poéticas, sublimes, poderosas, vibrantes! De beleza e de emoção...



INÊS E PEDRO: QUARENTA ANOS DEPOIS

É tarde. Inês é velha.
Os joanetes de Pedro não o deixam caçar
e passa o dia todo em solene toada:
«Mulher que eu tanto amei, o javali é duro!
Já não há javalis decentes na coutada
e tu perdeste aquela forma ardente de temperar
os grelhados!»


Mas isto Inês nem ouve:
não só o aparelho está mal sintonizado,
mas também vasto é o sono
e o tricot de palavras do marido
escorrega-lhe, dolente, dos joelhos
que outrora eram delícias,
mas que agora
uma artrose tornou tão reticentes.

Inês é velha, hélas,
e Pedro tem caibras no tornozelo esquerdo.
E aquela fantasia peregrina
que o assaltava, em novo
(quando a chama era alta e o calor
ondeava no seu peito),
de ver Inês em esquife,
de ver as suas mãos beijadas por patifes
que a haviam tão vilmente apunhalado:
fantasia somente,
fulgor que ele bem sabe ser doença
de imaginação.

O seu desejo agora
era um bom bife
de javali macio
(e ausente desse horror de derreter
neurónios).

Mais sábia e precavida (sem três dentes
da frente),
Inês come, em sossego,
uma papa de aveia.

ANA LUÍSA AMARAL

in "Vozes", D. Quixote



A VERDADE HISTÓRICA



A minha filha partiu uma tigela

na cozinha.

E eu que me apetecia escrever

sobre o evento,

tive que pôr de lado inspiração e lápis,

pegar numa vassoura e varrer

a cozinha.


A cozinha varrida de tigela

ficou diferente da cozinha

de tigela intacta:

local propício a escavação e estudo,

curto mapa arqueológico

num futuro remoto.


Uma tigela de louça branca

com flores,

restos de cereais tratados

em embalagem estanque

espalhados pelo chão.


Não eram grãos de trigo de Pompeia,

mas eram respeitosos cereais

de qualquer forma.

E a tigela, mesmo não sendo da dinastia Ming,

mas das Caldas,

daqui a cinco ou dez mil anos

devia ter estatuto admirativo.


Mas a hecatombe

deu-se.

E escorregada de pequeninas mãos,

ficou esquecida de famas e proveitos,

varrida de vassouras e memorias.


Por mísero e cruel balde de lixo

azul

em plástico moderno

(indestrutível)



ANA LUÍSA AMARAL,

"Minha Senhora de Quê", Quetzal Editores, Lisboa, 1999



RITMOS


E descascar ervilhas ao ritmo de um verso:

a prosódia da mão, a ervilha dançando

em redondilha.

Misturar ritmos em teia apertada: um vira

bem marcado pelo jazz, pas

de deux: eu, ervilha e mais ninguém



De vez em quando o salto: disco sound

o vazio pós-moderno e sem sentido

Ah! hedónica ervilha tão sozinha

debaixo do fogão!



As irmãs recuperadas ainda em anos 20

o prazer da partilha: cebola, azeite

blues desconcertantes, metamorfose em

refogados rítmicos



(Debaixo do fogão

só o silêncio frio)



ANA LUÍSA AMARAL,

"Minha Senhora de Quê", Quetzal Editores, Lisboa, 1999




TESTAMENTO



Vou partir de avião

e o medo das alturas misturado comigo

faz-me tomar calmantes

e ter sonhos confusos


Se eu morrer

quero que a minha filha não se esqueça de mim

que alguém lhe cante mesmo com voz desafinada

e que lhe ofereçam fantasia

mais que um horário certo

ou uma cama bem feita


Dêem-lhe amor e ver

dentro das coisas

sonhar com sóis azuis e céus brilhantes

em vez de lhe ensinarem contas de somar

e a descascar batatas


Preparem a minha filha

para a vida

se eu morrer de avião

e ficar despegada do meu corpo

e for átomo livre lá no céu


Que se lembre de mim

a minha filha

e mais tarde que diga à sua filha

que eu voei lá no céu

e fui contentamento deslumbrado

ao ver na sua casa as contas de somar erradas

e as batatas no saco esquecidas

e íntegras



ANA LUÍSA AMARAL,


"Minha Senhora de Quê", Quetzal Editores, Lisboa, 1999




MINHA SENHORA DE QUÊ



dona de quê

se na paisagem onde se projectam

pequenas asas deslumbrantes folhas

nem eu me projectei


se os versos apressados

me nascem sempre urgentes:

trabalhos de permeio refeições

doendo a consciência inusitada


dona de mim nem sou

se sintaxes trocadas

o mais das vezes nem minha intenção

se sentidos diversos ocultados

nem do oculto nascem

(poética do Hades quem mdera!)


Dona de nada senhora nem

de mim: imitações de medo

os meus infernos


ANA LUÍSA AMARAL,

"Minha Senhora de Quê", Quetzal Editores, Lisboa, 1999



DESCULPA-ME A TERNURA



Enternece-me pensar que estás aí,

não força de trabalho desigual

nem vida à pressa,

mas minha amiga.


Talvez as palavras que te digo

me transpareçam classe,

talvez nem te devesse dizer nada.

Porque és a mão que ampara o meu silêncio,

a minha filha, o meu cansaço

— à custa do teu cansaço, da tua filha,

do teu silêncio.



Não há homens-a-dias neste mundo,

mas tantas como tu,

a segurar nas mãos e no sorriso

algumas como eu.


Entraste há pouco a perguntar

se eu tinha febre

— a louça por lavar nas tuas mãos,

aspirando o cansaço dos meus ombros,

nos teus ombros o cansaço de mim

e o cansaço de ti.


Desculpa os meus silêncios,

o falar-me contigo como com mais ninguém,

desculpa o tom sem pressa

— e o meu dinheiro que não chega a nada,

comprando o teu trabalho

(o teu sorriso)



ANA LUÍSA AMARAL,


"Às Vezes o Paraíso", (2ª edição), Quetzal Editores, Lisboa

MC

domingo, 9 de outubro de 2011

Pascal e eu...

"Le coeur a ses raisons que la raison ne connait pas!"


Encontrei-me com Pascal, não ao virar de uma esquina, mas ao voltar a página de um livro, onde li a frase que me alvoroçou, na adolescência. Com um sorriso enigmático, Pascal perguntou-me o que pensava deste seu pensamento e desapareceu.
Fiquei perplexa porque, francamente, nunca pensei muito nas razões do coração!

Contudo, creio que, se alguém se apaixona tão loucamente que o coração desconhece e descura a razão, esse alguém pode ser levado a ultrapassar limites, a desdenhar princípios e a rejeitar valores. Viverá, num desassossego, o assombro de uma paixão dominadora, impetuosa, cega que poderá, no entanto, justificar uma vida. Viverá uma paixão ardente, talvez doentia, terna mas colérica, pura mas libidinosa, lírica, mas trágica. Súbita e arrasadora! E, por tudo isso, perigosa!

Uma paixão, assim, é destrutiva. Destruíu António e Cleópatra, enlouqueceu Mariana de Alcoforado, levou Anna Karenina ao suicídio e transformou Otelo, um homem íntegro e justo, num assassino enraivecido, sem misericórdia.
A paixão é poderosa, mas cruel, contraditória. Ignora a razão e perde-se em tenebrosos labirintos de emoções irresistíveis, fortes, soltas, desgrenhadas. Mortais!
Qual fogueira alta e fulgurante, assim como arde esplendorosa e magnífica, também rapidamente se apaga e se desvanece, deixando um rasto de imensa tristeza, dolorosa frustração e inconsolável desapontamento, num amontoado de “ pó, cinzas e nada”.

Mas, extinta uma paixão, outras paixões nascem, igualmente fogosas, imprudentes, brilhantes! Pois, se é verdade, que a estrela que se esconde no nosso coração e nos guia, nunca empalidece, nem mesmo quando o corpo evidencia já sinais de decadência, também não é menos verdade, que este companheiro precioso que nos mantém vivos, nunca envelhece e conserva, ao longo da vida, o mesmo ímpeto, a mesma ousadia, a mesma irreverência, a mesma paixão da juventude. E, é esse ardor, essa rejeição do razoável, essa necessidade inesgotável de viver num estado permanente e caótico de paixão, que pode ser e talvez seja, perigoso! Não sei...

Foi Florbela Espanca, a nossa poetisa da mágoa amorosa e tresloucada, que escreveu:

“ Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: aqui... além...”

“Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!”

Acredito que o amor não tem explicação e não tem, propriamente, razão de ser! Acontece! Somos atraídos para o outro porque... sim! Inexplicavelmente! De repente, no voltar de uma cabeça, as almas a reconhecem-se, sei lá de onde, dois olhares a cruzam-se e dissolvem-se na mesma luz, dois sorrisos de dentes brancos, como pedrinhas de sal, fundem-se no espanto ansioso de um reencontro há muito esperado e o coração dispara! E bate muito, bate forte, cheio de alegria e de esperança! Num encantamento mágico, puro, como se fosse um coração de criança!
Se essa atracção, forte e irresistível, perdura e se transforma num sentimento profundo, feito de ternura, de entrega e de verdade, será amor! E, é esse amor verdadeiro, intenso, único, que talvez nunca morra. Mesmo no caso de uma separação. Imposta pela morte ou... pela vida! Pelas imposições tortuosas, difíceis da vida! Porque um amor assim contém, em si, a centelha da eternidade! Adormece na tristeza da solidão e ali fica a um canto, aparentemente morto, fogueira apagada, desfeita em cinza. Aparentemente esquecido e frio! Porém, bem lá bem no fundo do mar estagnado de cinzas, permanece um braseiro, numa dormência silenciosa e quieta, mas vivo, constante, que a brisa mais suave de uma manhã de primavera, ou a rajada mais forte e inesperada de uma noite de vento, reacende e a chama escondida, mas latente, cresce exultante, brilha e resplandece de novo. Viva, infatigável, renascida , urgente. E nesse reacendimento, que a razão talvez não explique, está uma parte de nós, faúlha de luz que nos completa, pedaço de alma que nos liga à infinitude do Universo. Sei lá...

Creio, porém, que não estamos todos destinados a viver a exaltação tumultuosa de uma paixão avassaladora, como Tristão e Isolda! Também não é qualquer um de nós que terá coragem para carregar a pesada cruz de um amor fundo, verdadeiro, braseiro vivo e eterno, mas forçado a trilhar caminhos paralelos, como Abelardo e Heloísa!

Os nossos amores são, no geral, como nós: humanos! Acomodados, comezinhos, friáveis, sem chama...

Ainda bem que Pascal desapareceu, repousa sossegado e não lê o que acabei de escrever sobre um dos seus mais conhecidos pensamentos...

MC

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Amanheceste em mim pelo poente

Hoje é o aniversário do meu querido Amigo Zé Custódio, um Poeta que admiro!
Com muita Amizade e um abraço de parabéns, aqui ficam dois belíssimos poemas seus.



Amanheceste em mim pelo poente
Um fim de tarde azul e sorridente
Rosa e jasmim sem tempo era novembro
O caminho sorria-me por dentro
Rumei com os teus passos no meu peito
Amor e riso de silêncio feito.

Maio chegou cresceu fez-se gigante
A flor desabrochou e foi ternura
Roxos lírios belos girassóis
Infinitos os sonhos terna amante
Abriram mares de luz em terra pura.

Da vida gesto abraço beijo mosto
Aurora boreal e dom de agosto.

Colhemos horizontes céus fagueiros
O mar veio oferecer-nos loira areia
Sempre que os nossos olhos se tocaram
Tendo por fundo apenas o luar
A vida e o futuro a conquistar.

E as searas sorriram sóis e luas

Sentimentos jardins loiras espigas
Infinitos efémeros nuvens nuas
Ligando estrelas girassóis e lírios.
Vesperal é o canto do amor
Amanhecido em nós feito flor.

José Custódio Almeida da Silva
In "Amanheceste em mim pelo poente"


Amar o verbo amar é demasia
Basta amar quanto baste
A vida, o mar e a maresia
As estrelas, o céu e a imensidão
Amar o Homem na sua exactidão
Nos gestos menores
Do dia-a-dia
Na sua breve alegria fugidia
No seu longo penar
De lenta agonia

Amar o verbo amar é demasia.

José Custódio Almeida da Silva
In "Amanheceste em mim pelo poente"

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Clarice Lispector e eu

“Sou composta por urgências: minhas alegrias são intensas; minhas tristezas, absolutas. Me entupo de ausências, me esvazio de excessos. Eu não caibo no estreito, eu só vivo nos extremos"

Clarice Lispector



Contaram-me que nasci com morte aparente. Foram muito longos os minutos de reanimação e de angústia, até que eu respirasse, sôfrega, a vida!
Contaram-me que, depois de tanto tempo, quando aquele corpinho cinzento e flácido, irrompeu num choro ainda tímido e meio engasgado e ter adquirido uma cor rosada, natural, minha Mãe, lavada em lágrimas, disse que eu devia ter uma missão especial para cumprir.
Logo no primeiro instante, lutei desesperadamente contra a morte e agarrei-me, com coragem e força, à vida! E, comecei por ganhar!

Se tinha uma missão especial, para cumprir, não sei, não dei por nada...

Como Clarice Lispector, sou composta por urgências. Todos somos!

Não sei se todas as minhas alegrias são intensas. Mas vivo-as todas com o entusiasmo e o encantamento, de uma criança a brincar, deliciada, na terra e a sujar-se, despreocupada e feliz, no jardim!
As minhas tristezas, sim, são sempre intensas, profundas. Por isso doem! Tanto!
Excessos? Não me lembro de excessos mas, às vezes, sei que sou excessiva. Sobretudo no desapontamento, na mágoa! Contudo, se tive excessos, o tempo desvaneceu-os! O tempo levou-os! Como desvanece tudo! Como leva tudo!
Raquel de Queiroz escreveu uma frase que li há muito tempo e que nunca esqueci: “As estrelas são grãos de luz e nós, seres mortais, grãos de poeira que um dia o vento, levará consigo.” O vento e o tempo, quando for tempo...

Como Clarice, também não caibo na estreiteza do preconceito, da crueldade avulsa, da maldadezinha canalha, da intolerância criminosa, da maledicência matreira, que destrói reputações e vidas.

A vida vai-se contando pelo que se ganha e pelo que se perde.
Como Clarice, olho para trás e também eu vejo abrir-se, diante de mim, um vasto campo de ausências. Dolorosas! Algumas, tão profundamente sentidas, que nunca lhes disse adeus. Apesar da ausência, nunca as admiti como ausências! Ainda espero que regressem! Um dia...
Por isso, há despedidas que não fiz. Porque não se diz adeus quando o laço visceral feito de sangue e de amor, permanece intacto! Porque não se diz adeus quando o rasto da sua luz ainda é o caminho que percorro.

Um caminho a subir, aqui e ali difícil, sinuoso, íngreme e às vezes, tempestivo. Tropecei, escorreguei, esfolei o coração, como, quando criança travessa esfoleava os joelhos, e vi esfacelarem-se no chão alguns dos meus sonhos, algumas das minhas crenças, algumas das minhas esperanças e ilusões.

Houve dias sombrios, de vendaval à solta, de chuva violenta. Mas, mesmo incerta e temerosa, segui sempre em frente! Não há luz, sem que haja sombra! É a noite da vida! A noite, a escuridão que também somos. Que eu sou!
Mas a vida tem sido boa, generosa e muitos, tantos, têm sido os dias inundados de sol, de riso, do calorzinho aquietante e doce dos beijos, dos abraços macios, das palavras ternas! É o dia da vida! É o dia, a luz que somos. Que eu sou!
E, talvez devido à generosidade, à bondade, à imensa doçura que recheiam a minha vida, mesmo nos pedaços mais tortuosos e mais escuros do meu percurso, encontrei sempre uma árvore forte e frondosa para me amparar, vi florescerem rosas e o ar rescendeu, sempre, a pão, a tomilho e a alecrim!

Aprendi, aprendemos todos que a Felicidade não é permanente! A Felicidade está nas pequenas coisas. Pode estar, simplesmente, nuns minutos, numa hora, num dia, plenamente, radiosamente, vividos; pode estar no arroubo de um amor, julgado perdido; no instante fugaz mas perfeito de dois olhares que se cruzam e se dissolvem na mesma luz; na esfuziante alegria de um reencontro, há muito tempo adiado; numa notícia boa, ansiosamente esperada; num abraço apertado, tão desejado!

Nunca cedi facilmente! Lutei para viver, desde o primeiro instante e vivo apaixonadamente cada um dos meus dias. Amo desmesuradamente, as duas mais belas e mais preciosas dádivas que me foram concedidas: as minhas filhas! E agradeço tudo o que me foi dado construir! Mas, não posso dizer, como Clarice, que só vivi, só vivo nos extremos. Ou talvez tenha sido, mesmo, nos extremos que tenho vivido, sei lá...

Não sei se escrevi tudo isto porque a Clarice Lispector se atravessou, outra vez e de repente, no meu caminho, ou se escrevinhei estas linhas porque, simplesmente, hoje é o dia dos meus anos...

MC

domingo, 28 de agosto de 2011

Uma paixão revisitada...

Se uma brisa suave, se agitar à tua volta, tactear a tua pele e despentear o teu cabelo, não te assustes. É a minha saudade a beijar a tua alma e a acariciar o teu corpo...



Ele

...

Tinha-a visto hoje! Pela segunda vez, em onze anos, tinha-a visto, esta manhã! Ela saía da carrinha Volvo que conduzia, bonita, elegante, flexível, como a recordava! Mais mulher, talvez! Mas, também mais atraente!
Ela não o vira. Melhor assim! O coração dele disparara, num turbilhão de doidas emoções, como se uma rajada de vento o tivesse atingido brutalmente e as mãos, trémulas e suadas, atrapalharam-se, como se, de repente, não soubessem o que fazer com o volante!

Nunca a tinha esquecido, a imagem dela tinha permanecido gravada, no mais íntimo de si e essa secreta permanência dela, junto dele, dera-lhe sempre um certo conforto!
Tinha viajado muito mas, para onde quer que as suas atribulações o tivessem arrastado, ela estivera lá, no mais profundo de si e, por isso, nunca se sentira, totalmente sozinho. Porque, ... “ se a imagem do ser amado continuar viva no nosso coração, o mundo inteiro é a nossa casa.”

É estranho, pensou mas, nunca tinham sido namorados! Mas, tinham-se amado! Ele amara-a! Muito!
Ela era uma menina azougada, cheia de carácter e de energia e ele tivera de crescer muito depressa e aprender, antes de tempo, que a vida é feita de penosas cedências e de dolorosas opções! E, ele cedera! E optara! Talvez, aparentemente, pelo mais fácil, pelo mais agradável, pelo mais conveniente! Pelo que, mais tarde, o pudesse realizar plenamente, e fazer feliz, como homem, seguramente, não!

...

Recostou-se, mais fundamente, no sofá e recordou o momento em que o amigo de sempre lhe telefonou a dizer que ela tinha acabado de ter um acidente.
O dia ensolarado e luminoso tornou-se, então, subitamente sombrio, o coração bateu desorientado, como se tocasse a rebate, as pernas tremeram, de repente velhas e fracas e, em minutos, estava ao lado dela!

...

Viu-a sã e salva, o cabelo encharcado, ainda a tremer, como um gatinho assustado e perdido no jardim, em dia de chuva violenta e, lembrava-se bem, sorriu feliz! O dia, então, clareou, o sol cobriu de ouro, tudo em redor, e o peso na alma dissolveu-se, como um pedaço de gelo, em água quente.
Abraçou-a e respirou fundo! De alívio!

...

Entretanto, a vida dele tinha ficado num caos: o relacionamento dos pais quase em ruptura e as empresas de família, em queda vertiginosa, devido à cabeça doida do pai, com mulheres e jogo! A aflição e o desgosto da mãe era mais do que podia suportar!
Interrompeu o curso que nunca mais terminou, e deitou mãos a uma das empresas, com a ajuda do pai da, agora, sua mulher que, entretanto, decidira que ele seria seu marido, custasse o que custasse e a quem ele se submeteu, para poder suportar a casa, ajudar a mãe e permitir que as duas irmãs mais novas continuassem a estudar! Sem dificuldades!
Como se nada tivesse acontecido e a vida, sem um balanço, sem um tropeço, continuasse serena e deslizante, como um belo passeio, à beira- mar, em tarde amena, de verão!

...

O noivado e os preparativos para o casamento, passaram por ele, como um sonho, de que ele parecia não fazer parte!
Quando, enfim, acordou daquele sonho estranho e inquieto, daquele amontoado de cenas confusas, daquele pesadelo delirante, estava casado!

Vendi-me, fui um fraco e, no fundo, todos os que diziam que me amavam, quiseram que me vendesse, em seu próprio benefício, pensou com amargura!

Ele casou no Verão. No início desse ano ... mandou-lhe entregar, no escritório, duas dúzias de rosas chá! Sem cartão! Não era preciso! Ela sabia...!
Um mês depois, no dia dos Namorados, um dia que, afinal, não era deles, mandou-lhe, também e ainda assim, um precioso ramo de rosas, agora, vermelhas! Sem cartão! Não era preciso! Ela sabia...!

Ele nunca lhe falou das rosas. Ela nunca lhas agradeceu! Não era preciso! Eles sabiam...!

...

Um dia, pouco antes do casamento, encontraram-se numa estação de serviço, na auto-estrada.
Era uma estação prosaica, feia e triste. Um local de passagem, vazio, sem significado, mas que, a partir desse dia, passou a detestar!
Ali, afundado no sofá, lembrou-se, com angústia, da sensação de desamparo e de perda, quando a viu, do tornado violento de paixão e de mágoa que se apossou dele e fez desaparecer tudo, num louco rodopio, numa rajada de vento que a deixou, só a ela, à sua frente!

...

E abraçou-a! Apertou-a nos braços e aspirou, pela última vez, o perfume da pele dela! Com o coração desfeito, com a vida em farrapos, perdido num túnel frio, escuro, sem retorno e sem saída!
Separaram-se e, hoje, em onze anos, era a segunda vez que a via! Tentou respirar fundo, para aliviar a opressão que parecia esmagar-lhe o peito!
E, compreendeu, que o seu amor por ela, continuava vivo e infatigável, sempre renascido, como um braseiro que se reacende, vibrante, com uma rajada de vento!
Esfregou os olhos e, numa urgência, quis, plasmado em si, o aroma suave dela, dos cabelos revoltos dela, quis, desesperadamente, sentir o toque macio de pele dela, na sua, de mergulhar o olhar dele, turbulento e impaciente, no oceano azul, puro e sereno dos olhos dela!
Então, como a árvore que, sempre que chove, chora, também ele, porque a vira tão perto e a soube tão longe, como a árvore, fustigada pela chuva, chorou!

MC

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Alexandre O`Neill

No dia 21 de Agosto, há vinte cinco anos, morreu Alexandre O`Neill, um nome grande da nossa Poesia. E não só!
O`Neill escreveu Poesia, Prosa, fez traduções, Antologias de outros poetas e, não conseguindo viver só da sua arte, alargou a sua acção à publicidade.
É da sua autoria o famoso lema publicitário, "Há mar e mar, há ir e voltar.", por exemplo.

Com uns dias de atraso, é certo, aqui lhe deixo uma pequena homenagem, com este belíssimo poema de amor:

Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.

Alexandre O`Neill

MC

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

O tempo e a vida

Vinícius de Moraes escreveu:

"Com as lágrimas do tempo e a cal do meu dia eu fiz o cimento da minha poesia."

Eu, humildemente, escrevo:

Com a poeira do tempo, que passa infatigável, a cal branca e áspera dos meus dias, o cimento amassado com o meu riso e as minhas lágrimas, com a minha alegria e o meu cansaço, eu vou edificando a minha vida. Num prado de luz e de sombra, onde florescem rosas e nascem cardos. Onde o vento sopra ora brando, numa carícia, ora tumultuoso, num desatino.


MC

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Para a Xica com amor...

Embora, na minha vida, seja apenas uma doce e indelével referência, a Xica, uma pequena e graciosa macaca, é, também, um dos mais belos e comoventes motivos da tela, onde vou registando, com tinta de luz ou de sombra, cada um dos meus dias!
Contudo, a tela a que a Xica realmente pertenceu e onde deixou gravada a marca da sua infinita dedicação, em pinceladas de amor, alegria e doçura, é outra, há muito tempo, impiedosamente, interrompida!

São outros, os animais queridos que fizeram e fazem parte da minha vida e, quando eu tiver cumprido a minha missão, e depositar, aos pés de Deus, a tela que, na urdidura dos dias, laboriosamente pintei, muitos serão os motivos coloridos, luminosos e macios que todos eles, ali terão deixado gravados, num esplendor de encanto, de dedicação e de ternura!
E, eles contribuirão, com a beleza pura do seu recorte, para a redenção de todos os pedaços negros, pantanosos, medonhos, dos meus desencontros comigo mesma, dos gritos mudos dos meus terrores, dos momentos amargos do meu desespero, das horas pungentes do meu cansaço!


Nasci em África. Uma África, então pacífica, bordada de mar, enfeitada de cores alegres e cintilantes, envolta em sol, rescendente de cheiros doces e fortes, num arrebatamento de pura beleza e de imensidão!
Nesse tempo, faziam-se, ao fim de semana, longos e deliciosos piqueniques, mato adentro, alegres pretextos para convívios de familiares e de amigos.
Num desses piqueniques, na Anha, ainda eu não era nascida, a minha Mãe viu e nunca mais perdeu de vista, o que ela pensou ser um macaco, ainda pequeno, solitário, meio escondido, fugidio, mas curioso e a seguir, interessado mas, à distância, a divertida reunião.
A certa altura, uns olhos grandes, escuros e redondos como contas, cruzaram-se com os olhos claros da minha Mãe. Olharam-se, mediram-se, entenderam-se e começou, então, um silencioso jogo de sedução e conquista.
Vencido o receio, uma mãozinha esguia, escura e felpuda, perdeu-se, confiante, numa outra, branca e fina que a acolheu ternamente. Ao cair da tarde, no regresso a casa, a pequena macaca, (afinal era uma menina ), que, decerto, se perdera do bando, já tinha um lar, uma família e um nome: Xica!

...

Uns dois anos mais tarde, nasci eu e lembro-me de, anos mais tarde, já crescida e a esbracejar aflita, num mar alteroso de tristeza e de saudade, ver fotografias, aquelas fotografias antigas, a preto e branco, com uma pequena margem branca, recortada, onde a minha Mãe sorria e a Xica, os olhos grandes, escuros e redondos, como contas e a boca rasgada num pretenso "sorriso" de dentes brancos, se sentava no seu ombro esquerdo e lhe abraçava o pescoço alto e fino, com a mãozinha esguia, escura e felpuda; noutras, as duas, de mãos dadas, olhavam, divertidas, uma para a outra, numa afectuosa cumplicidade; em algumas, já eu aparecia, risonha, ao colo de minha Mãe, enquanto, a Xica, no chão, agarrada à sua saia, olhava atenta e enternecida, quero crer, mas não tenho a certeza, para o bebé loiro e risonho que eu era.
Lembro-me, especialmente, de uma fotografia onde a Xica e a criança que fui, se sentavam, lado a lado, numa esteira. Convencida que era a menina mais bonita da minha rua, eu fixava, em pose, o fotógrafo que era, certamente, o meu pai, enquanto a Xica, com a mãozinha esguia, escura e felpuda pousada, no meu braço, se inclinava, para mim, como se me estivesse a contar um segredo divertido ou, se preparasse para me dar um beijo.
Mas, a fotografia de que eu sempre mais gostei, era aquela onde eu me aninhava, pequenina, nos braços macios de minha Mãe que sorria, com a Xica, empoleirada no seu ombro, a abraçar-lhe o pescoço alto e fino, ao mesmo tempo que, com o seu peculiar e rasgado "sorriso" de dentes brancos, transbordante de alegria, olhava, muito vaidosa, para o fotógrafo, com os olhos grandes, escuros e redondos como contas, a brilharem como estrelas!
Ainda que inconscientemente, sempre pressenti que, naquela fotografia, tinha ficado, para sempre registado, um desses raros e mágicos momentos, de suprema Felicidade que a vida, às vezes, generosamente, nos concede!

...

Quando eu tinha dois anos, a minha Mãe adoeceu gravemente e viajámos, à pressa, para o Continente, na vã esperança de a salvar...
...

A Xica e a Pequenina, a cadela enorme que, de pequenina só tinha o nome, lá ficaram,em África, entregues aos cuidados dos meus tios.
A Pequenina deixou de comer uns dias, sentiu, profundamente, a falta dos donos mas, recuperou. O instinto primário de conservação da vida foi mais forte do que o desamparo da ausência, do que a agonia da saudade!

A Xica, a macaquinha meio-selvagem, encontrada sozinha no mato, não!
Deixou-se ficar, teimosamente, sentada num recanto do jardim, com os olhos grandes, escuros e redondos como contas, à espera de minha Mãe.
Nunca mais comeu, nunca mais quis brincar, recusou, furiosa, sentar-se no ombro da minha tia e nunca mais saiu do recanto onde seria mais provável ver chegar, enfim, a luz que lhe iluminava a vida. Foi ficando cada dia mais débil, os olhos, sem expressão, cada vez maiores e mais redondos, criando entre ela e o mundo que não era o seu mundo, uma distância intransponível!
Uma manhã, dias depois, os meus tios encontraram a Xica estendida, imóvel, as mãozinhas esguias, escuras e felpudas, abertas num pungente abandono, o olhar vazio, transfixo. Tinha morrido!
A minha Mãe, que faleceu meses depois, nunca soube que a Xica, a macaquita indefesa que resgatara do mato, resgatando-a, assim, da fome, da solidão e do perigo, tinha desistido de viver, mergulhada na tristeza da sua falta, esgotada pela angustiante expectativa de a voltar a ver e abraçar!

...

... A Xica desistiu e deixou-se morrer, presa numa dolorosa teia de amargura e afundada no desespero de uma infinita saudade!
A Xica amou a minha Mãe, numa entrega total, sem limites!

Às vezes, nas minhas noites de insónia, como esta, imagino-as juntas, num jardim imenso, luminoso e perfumado: a minha Mãe sorrindo e a Xica, os olhos grandes, escuros e redondos como contas, para sempre feliz, sentada no seu ombro esquerdo, enquanto a abraça, amorosamente, coma mãozinha esguia, escura e felpuda, como na velha fotografia , a preto e branco, com uma pequena margem branca, recortada, mas onde, incompleta, ainda permanecem vazios, os braços de minha Mãe!


Nota: Sendo mães extremosas, só é possível tirar a cria a uma macaca, matando-a! Imagino hoje, como a minha Mãe deve ter sentido então, o desespero da mãe da Xica e dela própria, quando, desgraçadamente, se perderam uma da outra!
Mas, só assim, a Xica pôde ser uma benção de dedicação, de ternura e de alegria na nossa família, especialmente, para com a senhora de olhos claros, a quem dedicou, amorosamente, inteiramente, a sua vida!

terça-feira, 5 de julho de 2011

Até logo, Mãe!

...

O Gustavo devia estar mesmo a chegar.

Não lhe apetecia ir ver a mãe. Queria sair, respirar fundo o ar frio da rua e receber, alegremente e de de braços abertos, o Novo Ano!.
Hesitou à porta. Aquele quadro de sombria quietude e profundo silêncio, incomodava-a e deprimia-a. Contudo, um súbito tremor de consciência, levou-a a entrar devagarinho, no quarto, a seda do vestido a roçagar mansamente.

A mãe, pequeno vulto mal perceptível, sob as roupas da cama, olhou-a fixamente, os olhos grandes e escuros, brilhantes de febre ou, talvez, de lágrimas.
Ana sentiu uma forte opressão no peito, como se uma presença poderosa dominasse, invisível e destruidora, tudo no quarto e acentuasse, malévola, o cheiro insidioso e fétido de decadência e de uma incipiente podridão.
Meio-agoniada, levou, num gesto brusco, a mão perfumada ao nariz e a jarra esguia, pousada na mesinha de cabeceira, virou-se, a rosa vermelha que a senhora Irene lá pusera nessa manhã, caiu, algumas pétalas soltaram-se e a água ainda a gotejar, ía tornando maior a pocinha cristalina que se formara no chão.
Ana assustou-se, estremeceu e, num arrepio, recuou.

“ Até logo, Mãe!”

E, sem tocar ou beijar o rosto branco e esquálido, ligeiramente virado para ela, Ana saiu do quarto, quase a correr, porque a angustiava aquela obscuridade pesada, o cheiro, estranho e enjoativo a dissolução e, sobretudo, porque não podia suportar a fixidez daqueles olhos grandes, escuros, misteriosos que lhe atravessavam a alma, como uma súplica, como uma despedida ou... como uma acusação!

E, porque já estava de saída, Ana não viu o movimento ténue, muito ténue da mão descarnada da mãe, como que a querer tocá-la ou prender-lhe o vestido, nem viu os seus lábios tentarem, ansiosos, dizer o nome dela, nem viu as duas lágrimas grandes, grossas, como punhos, que escorreram daqueles olhos grandes e escuros e se perderam na almofada, num desolado abandono !
Ana também não a viu abrir a boca, no desesperado espasmo da falta de ar, nem ouviu o seu leve estertor, tão leve, como um adejar de pássaro aflito, nem viu o pânico estampado no rosto desfigurado da mãe ao enfrentar, na mais profunda solidão, o supremo mistério da morte!

...

NOTA: Excerto de um conto, onde pontifica a tragédia do egoísmo .

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Que parem os relógios, cale o telefone, ...

Diz-se que as pessoas nascidas sob o signo do Sol são bonitas, talentosas, estuantes de encanto e de alegria. São pessoas vibrantes, amadas por multidões e que brilham intensamente, com luz própria, como a Estrela que os rege! A sua passagem por este mundo é, porém, fugaz! Talvez porque os caminhos tortuosos, poeirentos, sombrios que nos são dados percorrer não suportem a sua intensa vibração e a sua luminosidade! Esplendorosa!

A sua partida é, geralmente, súbita, inesperada e deixa, naqueles que os rodeiam, os amam e os admiram, um desolado vazio, um doloroso espanto, uma saudade aturdida, que o rasto cristalino da sua luz ameniza e consola.

Resplandecem, certamente, noutras paragens.

Lembro, naturalmente aqui, o Angélico que nos deixou ontem, o Carlos Paião, o Francisco Adam, o Feher, mas também todos os jovens bonitos e promissores cujos sonhos a morte interrompeu estupidamente, impiedosamente!

Algumas destas estrelas fugazes tornam-se mitos. Estou a lembrar-me de James Dean, por exemplo.



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BLUES FÚNEBRES

Que parem os relógios, cale o telefone,

jogue-se ao cão um osso e ele não ladre mais,

que emudeça o piano e o tambor sancione

a vinda do caixão com seu cortejo atrás.

Que os aviões, gemendo acima em alvoroço,

Escrevam contra o céu o anúncio: ele morreu.

Que as pombas guardem luto – um laço no pescoço –

e os guardas usem finas luvas cor-de-breu.

...

...

...

...

É hora de apagar estrelas – são molestas –

Guardar a lua, desmontar o sol brilhante,

De despejar o mar, jogar fora as florestas,

Pois nada mais há de dar certo doravante.


W. H. Auden (1907-1973) em Poesia Alheia, 124 Poemas Traduzidos, tradução e organização de Nelson Archer, Editora Imago, 1998.


+ + + +

LISURA

Entras na morte,

como se entra em casa,

desvestindo a carne,

pondo teus chinelos

e pijama velho.

Entras na morte,

como alguém que parte

para uma viagem:

não se sabe o norte

mas começa agora.

Entras na morte,

sem escuros,

sem punhais ocultos

sob o teu orgulho.

Entras na morte,

limpo

de cuidados breves;

como alguém que dorme

na varanda enorme,

entras na morte.

Carlos Nejar , em Obra Poética, Nova Fronteira, 1980.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

" O ano da morte de Ricardo Reis" - José Saramago

Gosto da comparação do livro, "O Ano da Morte de Ricardo Reis" de José Saramago, a um labirinto cerrado, tortuoso, mas fascinante, repleto de citações, referências históricas, aqui uma ode de Ricardo Reis, ali um poema de Fernando Pessoa, onde adorei perder-me para me reencontrar, literariamente mais rica, mas também pequenina e reverente perante a genialidade e a imaginação poderosa de um grande Escritor! Com a leitura deste livro, confesso que me "reconciliei", definitivamente, com José Saramago! E, fiquei a gostar, ainda mais, de Ricardo Reis.
Este é um texto magistralmente estruturado, profundamente denso, poético, irónico, labirintico, que tem de ser lido cuidadosamente, e tão ardilosamente assimilado, como foi ardilosamente entretecido, e que começa com um verso dos Lusíadas “ Aqui o mar começa e a terra principia” e termina com a frase "Aqui onde o mar se acabou e a terra espera."


“Mas será que é possível escapar deste complicado labirinto que é esta obra? Será possível encontrar a saída da labinrítica cidade de Lisboa (“descendo pela Rua do Norte chegou ao Camões, era como se estivesse dentro de um labirinto que o conduzisse sempre ao mesmo lugar”), encontrar sentido nas mulheres (“um enigma, um quebra-cabeças, um labirinto, uma charada”), no homem (“o homem, claro está, é o labirinto de si mesmo.”) e até do mundo (caracterizado pelo anúncio do Freire Gravador: “este anúncio é um labirinto, um novelo, uma teia.”)?”


A teia que constitui este livro começa a urdir-se, quando Ricardo Reis chega a Lisboa, vindo do Brasil, no barco Highland Brigade, uma alusão, talvez, à barca de Caronte, presumindo que ele já não está no mundo dos vivos, no ano em que Fernando Pessoa morreu e cujo túmulo ele faz questão de visitar.
Se pensarmos que Ricardo Reis nunca existiu, compreendemos a dificuldade do Autor na constução do romance, que pretende verosímil, integrando a sua acção na realidade histórica da época, um mundo a debater-se num tremendo conflito que prenuncia uma nova guerra, tempos de ditadura, de ditadores e de intensa convulsão!
É aqui, na urdidura da vida de Ricardo Reis, nesse ano da sua morte, que brilham, a grande altura, o génio de José Saramago e o seu gigantesco poder imaginativo.
Muito interessantes as conversas entre Ricardo Reis e Fernando Pessoa morto, que o visita, enquanto, como diz, lhe é possível, enquanto não se distancia e parte para sempre.

É difícil desembaraçar essa teia intricada, mas deixo aqui aberto um caminho laboriosamente percorrido por Regina Helena Dvorzak, uma das trilhas mais sinuosas desse labirinto e que se refere a um dos aspectos mais complexos da obra: O TEMPO.

Ricardo Reis inicia sua jornada em Lisboa esquecendo-se de devolver o livro à biblioteca do navio, depois disso, suas lembranças são poucas, seu afastamento do mundo quase completo, tudo é um labirinto, seu tempo de vida encerrou-se com a morte de Fernando Pessoa. Seu percurso no romance é a aventura de um morto em busca de si mesmo, um mesmo que não existe mais.
Ao tomar consciência de que também não existe mais, Ricardo Reis vai embora com Fernando Pessoa, levando “The god of the labyrinth”, mesmo sabendo que não poderá ler para, como ele mesmo diz, deixar o mundo aliviado de um enigma. Que enigma? Quem sabe a vida, quem sabe a morte.

O tempo, que ficara suspenso no Hotel Bragança, retoma seu curso na consciência da morte:

“Meia hora passou assim, ouviram-se as pancadas de um relógio no andar de cima, É estranho, pensou Ricardo Reis, não me lembrava deste relógio, ou esqueci-me dele depois de o ter ouvido pela primeira vez.” (RR, p. 427)

Os tempos se agregam, seja o tempo de inverno, frio, que remete ao passado longínquo e às lembranças que praticamente inexistem; seja o tempo do relógio que lembra a personagem que já é hora de ir; seja o tempo interior desta mesma personagem, um tempo de espera ou de preparação para sua retirada final.

Tempos em que vivemos, tempos que são um só, aquele tempo que, parafraseando Borges, é a substância de que somos todos feitos.


“A multiplicidade da personagem Ricardo Reis é lembrada durante toda a narrativa, seus duplos participam de sua despedida final até à sua integração definitiva em Fernando Pessoa, o único que realmente é parte dele ou de quem ele é parte.
O narrador comenta o mal estar de Ricardo Reis ao sair do cemitério em visita ao túmulo de Fernando Pessoa. Talvez o choque de se deparar com seu próprio fim tenha resultado neste mal estar:
Enquanto ia subindo a rua, devagar, sentiu dissipar-se a náusea, apenas lhe ficava uma vaga dor de cabeça, talvez um vago na cabeça, como uma falta, um pedaço de cérebro a menos, a parte que me coube.” (RR, p. 37)”


Não quero, não posso dar por terminada esta deambulação por um livro de que gostei particularmente, e onde perpassa uma Lídia, prosaica criada no hotel, que o Poeta escolheu para se instalar, e mais tarde sua amante, sem transcrever esta ode magnífica de Ricardo Reis, o heterónimo mais clássico, de Fernando Pessoa:


Vem Sentar-te Comigo, Lídia, à Beira do Rio

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassosegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podiamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento —
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim — à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço.

Ricardo Reis, in "Odes"
Heterónimo de Fernando Pessoa


Ricardo Reis é o Poeta da Razão e de quem Pessoa disse:

“ Pus em Ricardo Reis a minha disciplina vestida da música que lhe é própria.
Reis escreve melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado.”


Nota: Homenagem singela a José Saramago, que faz um um ano após a sua morte.

MC

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Aniversário do Poeta

Homenagem ao Poeta Fernando Pessoa, no dia do seu aniversário!

"Tão cedo passa tudo quanto passa!
....
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada."


A vida é breve, fugaz, o seu ciclo inevitável e tudo passa tão cedo. Mas, às vezes, na turbulência dos dias e na insónia agitada das noites, viver cansa...

Aniversário


No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a.olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui - ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas - doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos. . .

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

Álvaro de Campos


Pouco me importa

Pouco me importa
Pouco me importa o quê?
Não sei: pouco me importa.

Alberto Caeiro



Prefiro Rosas

Prefiro rosas, meu amor, à pátria,
E antes magnólias amo
Que a glória e a virtude.

Logo que a vida me não canse, deixo
Que a vida por mim passe
Logo que eu fique o mesmo.

Que importa àquele a quem já nada importa
Que um perca e outro vença,
Se a aurora raia sempre,

Se cada ano com a primavera
As folhas aparecem
E com o outono cessam?

E o resto, as outras coisas que os humanos
Acrescentam à vida,
Que me aumentam na alma?

Nada, salvo o desejo de indiferença
E a confiança mole
Na hora fugitiva.

Ricardo Reis


Sabes quem sou? Eu não sei. (12-4-1934)

Sabes quem sou? Eu não sei.
Outrora, onde o nada foi,
Fui o vassalo e o rei.
É dupla a dor que me dói.
Duas dores eu passei.

Fui tudo que pode haver.
Ninguém me quis esmolar;
E entre o pensar e o ser
Senti a vida passar
Como um rio sem correr.

O (des)conhecimento do EU

Fernando Pessoa - Ortónimo

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Dia de Portugal

PRECE

Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
O mar universal e a saudade.

Mas a chama, que a vida em nós criou,
Se ainda há vida ainda não é finda.
O frio morto em cinzas a ocultou:
A mão do vento pode erguê-la ainda.

Dá o sopro, a aragem – ou desgraça ou ânsia –,
Com que a chama do esforço se remoça,
E outra vez conquistemos a Distância –
Do mar ou outra, mas que seja nossa!



NEVOEIRO

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer –
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo - fátuo encerra.

Ninguém sabe que coisa quer,
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...


É a Hora!


Valete, Frates




«O poema aponta para um tom geral de disforia, de tristeza e melancolia, marcado por palavras e expressões de negatividade, caracterizando uma situação de crise a vários níveis: político “Nem rei nem lei, nem paz nem guerra” (repare-se na sucessão do advérbio de negação – nem); crise de identidade, também “este fulgor baço da terra/ que é Portugal a entristecer/ brilho sem luz e sem arder/ como o que o fogo-fátuo encerra” (note-se o vocabulário e imagística disfórica: fulgor baço – Portugal a entristecer – brilho sem luz e sem arder – novo oximoro reforçado pela proposição, marca de ausência, sem); crise de valores morais, da alma “Ninguém sabe que coisa quer,/ ninguém conhece que alma tem,/ nem o que é mal, nem o que é bem” (de novo as palavras que marcam a negação – os pronomes indefinidos ninguém, o advérbio nem).

A situação é, em síntese, de incerteza, de indefinição: “Tudo é incerto e derradeiro./ Tudo é disperso, nada é inteiro./ Ó Portugal, hoje és nevoeiro...”. Mas porque – e isto é afirmado no verso central da 2ª estrofe em discurso parentético – algo ficou, consubstanciado na “ânsia distante” que “perto chora” -, e justamente porque Portugal hoje é nevoeiro, “É (também) a Hora!” (teremos que ter em conta que, segundo a lenda sebastianista, o Rei redentor regressaria numa manhã de nevoeiro). A Hora, maiusculada, mas de quê? Pessoa não o diz, mas todo o livro o significa: a Hora de partir, de novamente conquistarmos a “Distância/ do mar ou outra, mas que seja nossa!” (...), de assumirmos o sonho, cumprindo o nosso destino de sagrados por Deus e portadores do seu gládio, do seu sinal – assim a Obra nascerá de novo, como em Mar Português.

Assim sendo, temos que ler Mensagem justamente como a epopeia da era que há-de vir, a do sonho feito realização, a da loucura, divina, porque assumida conscientemente, e interrompida, de D. Sebastião, de D. Fernando, do Infante e dos outros heróis expectantes evocados por Pessoa.» [Bibl.]

A epígrafe final “Valete, Frates” (Adeus, Irmãos) era usual como símbolo de fraternidade em organizações esotéricas; ao usá-la, Pessoa remete-nos para o carácter esotérico/ místico da obra.

Fernando Pessoa - Mensagem

MC

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Dia da Criança

"Nunca ninguém conseguirá ir ao fundo de um riso de criança"
Victor Hugo

Neste Dia da Criança, aqui ficam as palavras de uma deliciosa canção popular infantil que, creio, tem origem no Brasil, " a Barata diz que tem..."

A escritora Luísa Ducla Soares, escreveu o bonito poema, "Mariana diz que tem...", aqui também transcrito, seguindo essa estrutura.


A Barata diz que tem...


A Barata diz que tem sete saias de filó
É mentira da barata, ela tem é uma só
Ah ra ra, iá ro ró, ela tem é uma só !

A Barata diz que tem um sapato de veludo
É mentira da barata, o pé dela é peludo
Ah ra ra, Iu ru ru, o pé dela é peludo !

A Barata diz que dorme numa colcha de cetim
É mentira da barata, ela dorme é no capim
Ah ra ra, rim rim rim, ela dorme é no capim!

A Barata diz que usa perfume de margarida
É mentira da barata, ela usa inseticida
Ah ra ra, ia ro ró, ela usa inseticida!

A Barata diz que tem um anel de formatura
É mentira da barata, ela tem é casca dura
Ah ra ra , iu ru ru, ela tem é casca dura!

A Barata diz que tem o cabelo cacheado
É mentira da barata, ela tem coco raspado
Ah ra ra, ia ro ró, ela tem coco raspado!

A Barata diz que usa um produto da Avon
É mentira da barata, ela usa detefon
Ah ra ra, ia ro ró, ela usa detefon!

A Barata diz que mora numa casa enfeitadinha
É mentira da barata, ela mora é na cozinha
Ah ra ra, ia ro ró, ela mora é na cozinha!

A Barata diz que tem hidromassagem na banheira
É mentira da barata, toma banho de goteira
Ah ra ra, ia ro ró, toma banho de goteira!

A Barata diz que foi num lugar muito maneiro
É mentira da barata, ela foi é no banheiro
Ah ra ra, ia ro ró, ela foi é no banheiro!

A Barata diz que tem uma coroa de rainha
É mentira da barata, ela só tem anteninha
Ah ra ra, ia ro ró, ela só tem anteninha!

A Barata diz que foi trabalhar num escritório
É mentira da barata, ela foi no mictório
Ah ra ra, ia ro ró, ela foi no mictório!

A Barata diz que tem uma capa de bolinha
É mentira da barata, a capa é da joaninha
Ah ra ra, ia ro ró, a capa é da joaninha!

A Barata diz que tem um sapato de fivela
É mentira da barata, o sapato é da mãe dela
Ah rá rá, oh ró ró, o sapato é da mãe dela!


Mariana diz que tem...

Mariana diz que tem
sapatinhos de cristal.
Mas só vejo nos seus pés
as botas de cabedal.

Mariana diz que tem
um cavalo p´ra correr.
Mas só vi no seu jardim
sete ratos a roer.

Mariana diz que tem
chocolates na algibeira.
Mas só lá tem um pão duro
dos que lhe deram na feira.

Mariana diz que tem
estrelinhas a brilhar.
São os seus olhos que brilham
quando se põe a sonhar.

Luísa Ducla Soares - Antologia Poética, Verso a Verso

Vila Nova de Gaia


"Imaginando o oceano, as crianças brincam numa poça de água"
Carlos Novais

domingo, 29 de maio de 2011

Um poema ao Sul, um poema mais ao Norte

Hoje, apeteceu-me bincar aos poetas. Assim sendo, aí fica o meu "Diário mais ao Norte", um arremedo do poema de Adília Lopes, " Diário lisboeta", publicado no Público, a semana passada.
Espero que a Poeta Adília Lopes, mulher inteligente, de mente aberta e com um coração imenso, não se zangue comigo!


Diário lisboeta

1 de Abril de 2011, 6ª feira
Vi um cão abandonado.
2 de Abril de 2011, sábado
Vi dois papagaios verdes no alto de um choupo.
3 de Abril de 2011, domingo
Vi uma rosa cor-de-rosa no quintal do 14.
4 de Abril de 2011, 2ª feira
Arrumei o casacão no guarda-fato.
6 de Abril de 2011, 4ª feira
A Bé gostava de ter um macaquinho.
9 de Abril de 2011, sábado
Quero escrever frases, tagarelar e dançar.
Gosto de solinho. Ver o barómetro.
10 de Abril de 2011, domingo
Descomplicar.
A Leonor tem roupa à janela

Adília Lopes

Diário mais ao Norte

2o de Maio de 2011, 6ªfeira
Resgatei, da rua, um cão abandonado.
A Íris, a minha collie melre, fez um ano.
21 de Maio de 2011, sábado
Vi o pôr-do-sol, o céu em chamas e caminhei na praia.
À noite, o mar enfeitou-se de prata. A lua estava cheia.
22 de Maio de 2011, domingo
Colhi duas rosas vermelhas e vi um sapo, no jardim.
Fiz um bolo de chocolate e comi cerejas.
23 de Maio de 2011, 2ªfeira
A Nani deitou fora as canadianas e calçou sapatos de salto alto.
Vesti o vestido branco. Já me esqueci da roupa de inverno.
25 de Maio de 2011, 4ªfeira
O Gui gostava de ter um cãozinho.A mãe não deixa.
Mas, vai ter. Um, talvez, dois. Um dia. Na casa dele.
28 de Maio de 2011, Sábado
Quero ler o jornal, ir às compras e passear.
Adoro o sol. Está calor. Amanhã também.
29 de Maio de 2011, domingo
Descansar. Preguiçar, preguiçosamente, ao sol.
A Xana nunca tem roupa à janela.
Só um mar colorido de gerânios em flor.

MC

domingo, 15 de maio de 2011

Pedaços de mágoa e de espanto de uma menina gorda, que a anorexia devorou...

Estou confusa! Isto parece um velório! Isto é um velório! Há muitas rosas brancas, círios, uma Cruz enorme e uma urna a transbordar de seda e de tule!
Cheira a velas, a flores e a lágrimas.
Não sei porque estou aqui, neste velório.
Comigo, estão muitos colegas meus e muitos professores.
...

Ninguém fala comigo. Parece que ninguém me vê! Que estranho...
....
O que estará a fazer aqui, o meu irmão? Meu Deus, como chora!
...
Deve ter sido alguém da Escola que morreu! Por isso, estou aqui!
...

Ali, ao canto está o Miguel, o rapaz por quem me apaixonei, com o encantamento do primeiro amor e a insegurança dos meus dezasseis anos!
...
Um dia, quando uns colegas nossos, nos viram juntos, disseram-lhe, a rir, que eu era perfeita, para ser sua namorada! A sua gargalhada escarninha, o olhar meio enjoado, meio piedoso que me lançou e o “Não!”, que lhe escapou, quase gritado, dos lábios, envergonharam-me e magoaram-me profundamente!

Eu era, na verdade e para meu infinito desgosto, muito diferente das outras raparigas, bonitas, soltas, esguias.
...

O meu tio, irmão do meu pai, gostava de, às escondidas, me apalpar as mamas e as nádegas! Dias depois do claro repúdio do Miguel, o meu tio apanhou-me sozinha e amarfanhou-me contra a parede da sala com o corpo e, enquanto com uma mão me tapava a boca, com a outra mão, suada e viscosa, abriu-me o vestido e apalpou-me as mamas, as pernas , explorou todo o meu corpo enquanto dizia, com a voz enrouquecida, vermelho e com os olhos brilhantes de excitação: Que rica xixa!
Um barulho qualquer obrigou-o a soltar-me e eu fugi, a rebentar de raiva , de mágoa , horrorizada comigo própria!

Nunca, como nesse dia, me detestei tanto! Senti um nojo imenso pelo meu tio e também pelo monte de carne, que eu era! Que sou!

Nessa noite, despi-me e olhei-me, criticamente, ao espelho.
...

Vi, com horror, a minha cara muito redonda, com bochechas balofas e luzidias, ,s meus braços fortes, muito roliços e as minhas ancas e pernas muito volumosas, flácidas, feias! Não tinha sequer cintura mas, um rolo carnudo, enrolava-se, à minha volta, como se fosse um cinto e começava a ter uma barriguinha que tremelicava de gordura! As minhas mamas, meio caídas, pareciam sacos mal ajeitados. Só ao meu tio, debochado e sujo, as minhas carnes, gordas e flácidas, podiam dar algum prazer!


Decidi, nesse momento, sozinha, no meu quarto, fazer uma dieta a sério!

Comecei a cortar na comida! O mais que podia!
...
Fazia muito exercício físico, às vezes, quase até à exaustão! Agora, já não posso...
...

Em meses, tinha perdido algum peso, continuo a perder peso mas, nunca deixei de me sentir pesada, inchada, enorme! Continuava, continuo gorda.
...
Tornei-me hábil e manhosa!

Tomava, ainda tomo, medicamentos para não engordar, que me davam forças e energia mas, como não me ajudavam a emagrecer tanto quanto desejava, recorria, como recorro ainda, aos laxantes.

Agrada-me este controlo que tenho sobre mim e sabe-me bem a abstinência a que me forço! Gosto de me sentir limpa e vazia por dentro!

E, sobretudo, respiro aliviada porque, se antes fugia apavorada do meu tio, agora é ele que me evita e nem para mim olha! Apesar de ainda estar gorda, farta de xixa.

...
Estudava muito e tinha notas muito altas! Queria ser a melhor, em tudo! Ultimamente, já não consigo! Estou muito cansada!
...

Dizem-me que estou a perder peso em excesso e que já tenho os ossos quase à mostra e as veias salientes. Mas, eu continuo a ver-me pesada, enorme! Porque estou pesada e enorme! Por isso e para esconder os refêgos de gordura, que se vão amontoando, em mim, uso roupa larga!

Vejo-me ao espelho e sei que não tenho graciosidade nenhuma, nem encanto, nem leveza!
...
Nos meus sonhos mais róseos, eu vejo-me linda, leve, deslizante, quase etérea, como uma sílfide! E, é assim, que eu irei ser! Um dia...!

Quando atingi os trinta quilos, internaram-me, no hospital!
Foi a maneira mais suave que os meus pais encontraram para me dizerem que não gostam de mim e estão fartos de me aturarem! Ninguém, aliás, gosta de uma rapariga volumosa, balofa e feia!
Dizem-me que tenho a pele seca e fina. Não é bem assim e eu esfrego-a muito bem, com sabonete, para que nem uma ponta de gordura me possa conspurcar!
Já não tenho menstruação há uns meses e os meus braços, pernas e costas estão cobertos de uma penugem, que, dizem, se chama lanugo, que eu escondo com a roupa larga que tenho de usar!
Parece que o meu cabelo está mais fino e muito menos farto mas, não é a pele, nem o cabelo, nem o lanugo, nem a amenorreia, que me preocupam!
...

Os meus pais discutem muito, dizem que por minha causa.

...

No hospital, tenho conhecido muitos jovens e alguns horrorizam-me porque persistem, teimosamente, numa dieta de que já não necessitam pois, são pele e osso, com os olhos enormes, nem sei se vazios ou, meio alucinados, os braços e as pernas cheios de manchas arroxeadas, e fazem-me lembrar aqueles meninos, completamente desnutridos, da Somália mas, sem as barrigas enormes, grávidas de nada, grávidas de falta de tudo!
Há uma rapariga, que me faz muita impressão, porque até cospe a saliva! Para não se sentir conspurcada!

Como se sentiriam eles se fossem, como eu, roliços e fartos de xixa, como diria o meu tio?

A vida no hospital, não é fácil! Querem que “façamos as pazes” com a comida! Não quero! Custou-me muito chegar aos trinta quilos e ainda tenho peso para perder! Não!

...

Nem o meu tio, nem homem algum irá jamais esfregar-se de gozo na minha carne!
....
Apesar de, mesmo assim, ainda estar volumosa! A minha dieta não terminou!

Continuo no velório!
...

Tenho de saber quem é esta “ela” de quem todos falam! E por quem tantos choram!
É tudo tão dolorosamente estranho...Sinto-me tão sozinha...
...

Neste momento, entram os meus pais. Meu Deus, como estão diferentes, parecem ter
envelhecido muitos anos, os rostos exaustos, devastados!

...

Que angustiante é isto tudo! Parece que estou a viver a irrealidade paralisante de um tremendo pesadelo, do qual, por mais que me debata, não consigo acordar!

Indiferente às minhas carícias e à meiguice das minhas palavras, a minha mãe aproxima-se da urna e um rio de lágrimas desaba sobre quem ali descansa!
Por quem chorará, assim, tão aflitivamente, a minha mãe? O meu pai não chora, não se aproxima da urna, nem da minha mãe, que mal se segura de pé! Não fala com ninguém! Parece de pedra! Ali está, ao canto, tão cansado, tão desligado, tão ausente!

...

Aproximo-me da urna envernizada e olho, atentamente, para quem ali repousa. Vejo um pequeno volume, envolto em sedas e tules brancos, quase afogado em rosas brancas que se vão desfolhando com o calor e vejo um rosto emaciado, magro, a pele esticada sobre os ossos, as mãos esqueléticas, os dedos entrelaçados.
O rosto não me é estranho... Na verdade, é vagamente parecido com o meu... Mas, eu tenho a cara redonda com bochechas balofas e luzidias!
Sobre o rosto imóvel, de cera, ainda escorrem as lágrimas da minha mãe e parece que é a morta que chora!

De repente, lembro-me...
...

A Andreia deu-me, a meu pedido, uns comprimidos, daqueles que nos fazem sentir melhor. Tomei-os e adormeci!

...

Depois, senti-me cair... Pareceu-me ouvir vozes, muito ao longe, e o som, lindo, ciciado, do Bolero de Ravel que adoro e que ouço, incansavelmente!
Lembro-me de, nesse momento, me sentir muito bem! Relaxada, calma, liberta! Depois, mais nada...!

Surpreendida, compreendi, enfim!
Sou eu que, branca, imóvel e finalmente tranquila, descanso ali! A minha luta, sem quartel, contra o excesso de peso, contra a comida, contra a xixa acumulada do gozo excitado do meu tio, terminou!
Nunca mais, a manápula de um homem conspurcará o meu corpo!

Porque, serenamente, morri, esta madrugada!

Como diria Sartre, “ les jeux sont faits” ! Sinto uma imensa e fantástica indiferença descer sobre mim e afastar-me, irremediavelmente, de todos e de tudo!
Mas, estranhamente, não me importo!
Aprisionada, perdida, nos tentáculos poderosos, dessa gélida indiferença , esqueço os meus afectos, as minhas alegrias, os meus dramas e os meus medos! Numa absoluta solidão!

Para sempre...!

MC

sábado, 14 de maio de 2011

Crepúsculo

Não gosto do crepúsculo! Entristece-me. Temo-o.

Não sei porquê ou, talvez inconscientemente, saiba, associo o crepúsculo, essa hora dos “mágicos cansaços”, dos poetas e dos artistas, à memória mais remota que tenho da minha mãe, doente, num quarto despojado, quase nu, hoje sei que era um sanatório, sentada numa cama estreita, junto a uma janela, com os braços estendidos para mim, e imagino-lhe os olhos chorosos, numa ansiedade aflita. Não me lembro das feições do rosto, mas recordo-me, (será que me recordo mesmo?), de uma voz, severa e dura, dizer: "Não esteja com isso, não a chame, sabe que não pode tocar-lhe. Só pode vê-la. De longe..."

E, lembro-me de mim, pequenina, à porta, aos gritos e a chorar, também eu com os braços estendidos para ela, aprisionada entre os braços fortes de uma mulher, ansiosa por fugir e refugiar-me no peito macio e aconchegante, mas onde a doença galopante e facilmente transmissível, fervilhava, malévola.

Esta foi a última vez que vi a minha mãe. Uma cena crepuscular , toda feita de choro, da tristeza, sem remédio, da separação e de uma raiva imensa, que jamais esqueci.


Aqui ficam dois poemas da poetisa do amor, da saudade, do crepúsculo e dos mágicos cansaços dessa hora ambígua e carregada de melancolia.


Se tu viesses ver-me

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços…

Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca… o eco dos teus passos…
O teu riso de fonte… os teus abraços…
Os teus beijos… a tua mão na minha…

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca…
Quando os olhos se me cerram de desejo…
E os meus braços se estendem para ti…

Florbela Espanca - Charneca em Flor


Crepúsculo


Teus olhos, borboletas de oiro, ardentes
Batendo as asas leves, irisadas,
Poisam nos meus, suaves e cansadas
Como em dois lírios roxos e dolentes...

E os lírios fecham... Meu Amor, não sentes?
Minha boca tem rosas desmaiadas,
E as minhas pobres mãos são maceradas
Como vagas saudades de doentes...

O Silêncio abre as mãos... entorna rosas...
Andam no ar carícias vaporosas
Como pálidas sedas, arrastando...

E a tua boca rubra ao pé da minha
É na suavidade da tardinha
Um coração ardente palpitando...

Florbela Espanca, in "Livro de Sóror Saudade"

MC

terça-feira, 10 de maio de 2011

Peso Pesado - A menina gorda

Vi o programa “Peso Pesado” , na SIC, na noite da estreia e, para mim, foi o suficiente!

Este programa é, na minha opinião, chocante e grotesco. Espanta-me haver candidatos para este tipo de espectáculos e confrange-me ver aquelas pessoas, tão jovens algumas delas, expor, publicamente, a sua doença, os seus traumas, os seus dolorosos complexos, sujeitando-se à manipulação despudorada das suas emoções e à malévola exposição dos rolos imensos e flácidos de gordura que lhes deformam o corpo e lhes sufocam a alma num sofrimento atroz.

Foi arrepiante vê-los gordos, exaustos, rastejar na lama, tentar andar ligeiros, sem estarem preparados para esse esforço, um hercúleo esforço!
Vimo-los chorar quando falaram da sua obesidade, vimo-los agigantarem-se, aflitos, ofegantes, para vencer dificuldades, para eles, enormes, só com o objectivo de não serem expulsos de um programa de categoria muito duvidosa!

E, desgraçadamente, vimos dois concorrentes , em pânico, um deles, atrozmente obeso, serem maltratados por um “comando” que os fez deitar no chão, que lhes berrou como doido, que lhes atitou com baldes de água, que, em resumo, os humilhou, os exauriu e destratou, a troco de continuarem no jogo!

Foram tremendamente abusados mas, creio que, na sua simplicidade, no seu terror, nem se aperceberam do abuso de que estavam a ser vítimas!
Foi simplesmente vergonhoso, de uma baixeza e e uma maldade, sem nome e sem tamanho!
Tudo, mas tudo, tem um limite! Ali, naquela estreia, excederam-se todos os limites!


E não se diga, à laia de justificação, que todos sabiam para o que vinham! Não sabiam com certeza! Aqueles dois, por exemplo, decerto não sabiam o que iriam sofrer às mãos de um “comando” de trazer por casa, mas violento e abusador! E um canal de televisão que se preza, com o nível e as credenciais da SIC não devia enveredar por aí...

Ver a patologia da obesidade mórbida transformada em espectáculo é qualquer coisa de medonho, de revoltante que não devia sequer ser permitido!

Mas, enfim, o programa está no ar e vê quem quer!

A propósito de pesos pesados e para amenizar a aspereza do texto, aqui fica este poema imortalizado por João Villaret:


A menina gorda

Esta menina gorda, gorda, gorda,
Tem um pequenino coração sentimental.
Seu rosto é redondo, redondo, redondo;
Toda ela é redonda, redonda, redonda,
E os olhinhos estão lá no fundo a brilhar.

É menina e moça. Terá quinze anos?
Umas velhas amigas de sua mamãe
Dizem sempre que a encontram, num êxtase longo:
“Como esta menina está gorda, bonita!”
“Como esta menina está gorda, bonita!”
E ela ri de prazer. Seu rosto redondo
Esconde os olhinhos no fundo, a brilhar.

Às vezes no quarto,
Diante do espelho;
Ao ver-se tão gorda, tão gorda, tão gorda,
Ela pensa nas velhas amigas de sua mamãe
E também num rapaz
Que a olha sorrindo,
Quando toda manhã ela vai para a escola:
“– Ele gosta de mim… Ele gosta de mim.
Eu sou gorda, bonita…”
E os dedos gordinhos pegando nas tranças
Têm carícias ingénuas
Diante do espelho.

Rui Ribeiro Couto


MC

terça-feira, 3 de maio de 2011

Justice has been done

‎Osama Bin Laden foi um criminoso hediondo, responsável pela morte, sem sentido, de milhares de pessoas inocentes e pela incomensurável dor de tantos!
A sua morte é uma vitória para os Estdos Unidos e para o mundo e demonstrou que este tipo de crimes não podem ficar impunes, demore o tempo que demorar a vingá-los.
Foram precisos dez anos de busca incessante, de trabalho árduo, de avanços e recuos na perseguição deste monstro, para que o povo Americano pudesse expurgar o dia mais trágico e o atentado mais nefando da sua História!

Mas, se o líder enraivecido de uma ideologia terrorista está morto, a raiva e o ódio não estão! O mundo, especialmente o ocidente, sabe que tem de continuar vigilante, porque o terror internacional, o fanatismo, o radicalismo, e a crueldade mais feroz não acabaram!
Assustador foi o comentário curto e seco do Kremlin, à morte de Bin Laden: “ A vingança é inevitável para todos os terroristas.”
E, porque sabemos que a ameaça de uma devastadora retaliação não pode ser ignorada, todos os países de boa-fé, têm, imperativamente, de continuar a conjugar esforços, talvez redobrados, para combater o flagelo do extremismo global!
Como diz Nietzsche, o que revolta no sofrimento não é o sofrimento, em si, mas a sua falta de sentido! E, o terrorismo, causando tanta dor e tanta destruição, não tem sentido!

Mas, agora, é tempo de regozijo e, como Obama, orgulhosamente, disse a uma Nação emocionada: Justice has been done!

"So Americans understand the costs of war.Yet as a country,we will never tolerate our security being threatened, nor stand idly by when our people have been killed.We will be relentless in defence of our citizens and our friends and allies....We will be true to the values that make us who we are. And on nights like this one, we can say to those families who have lost loved ones to Al-Qaeda's terror:Justice has been done."

(From Obama`s speech)

MC

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Hoje...

Ontem, como sempre, senti-me uma mãe feliz e abençoada! E, também, agradecida às minhas duas filhas, preciosas âncoras da minha vida, pelo amor, pela alegria, pela partilha do pensamento, dos risos e das lágrimas!

Uma mãe sente-se mãe, todos os dias, todas as horas, todos os minutos...

Mas,hoje, especialmente hoje, sinto-me uma menina pequenina e frágil que queria poder aconchegar-se, também ela, no colo morno e doce da mãe e adormecer, serena, na suavidade cristalina da velha canção de ninar!

Sou uma mulher madura que ainda brinca no baloiço.
Sou uma menina de salto alto, que ri e cora.
Sou uma mulher que decide, mas que também balança.
Sou uma menina cansada que, às vezes, grita e chora!

MC

(Hoje deu-me para isto! Podia ser pior...)

domingo, 1 de maio de 2011

Mãe

Com estes três lindíssimos poemas, aqui fica a minha homenagem a todas as Mães do mundo e a todos os filhos que as amaram e as amam e foram e são abençoados com o infinito, puro e destemido amor delas!

Os filhos são, para as mães, a âncora das suas vidas.
"Freda"- Sófocles


MC


Mãe

No mais fundo de ti
Eu sei que te traí, mãe.

Tudo porque já não sou
O menino adormecido
No fundo dos teus olhos.

Tudo porque ignoras
Que há leitos onde o frio não se demora
E noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
São duras, mãe,
E o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
Que apertava junto ao coração
No retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
Talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
Esqueceste que as minhas pernas cresceram,
Que todo o meu corpo cresceu,
E até o meu coração
Ficou enorme, mãe!

Olha - queres ouvir-me? -
Às vezes ainda sou o menino
Que adormeceu nos teus olhos;

Ainda aperto contra o coração
Rosas tão brancas
Como as que tens na moldura;

Ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
No meio do laranjal...

Mas - tu sabes - a noite é enorme,
E todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
Dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.

Eugénio de Andrade


Palavras para a Minha Mãe

mãe, tenho pena. esperei sempre que entendesses
as palavras que nunca disse e os gestos que nunca fiz.
sei hoje que apenas esperei, mãe, e esperar não é suficiente.

pelas palavras que nunca disse, pelos gestos que me pediste
tanto e eu nunca fui capaz de fazer, quero pedir-te
desculpa, mãe, e sei que pedir desculpa não é suficiente.

às vezes, quero dizer-te tantas coisas que não consigo,
a fotografia em que estou ao teu colo é a fotografia
mais bonita que tenho, gosto de quando estás feliz.

lê isto: mãe, amo-te.

eu sei e tu sabes que poderei sempre fingir que não
escrevi estas palavras, sim, mãe, hei-de fingir que
não escrevi estas palavras, e tu hás-de fingir que não
as leste, somos assim, mãe, mas eu sei e tu sabes.

José Luís Peixoto, in "A Casa, a Escuridão"


Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Tenho medo da vida, minha mãe.
Canta a doce cantiga que cantavas
Quando eu corria doido ao teu regaço
Com medo dos fantasmas do telhado.
Nina o meu sono cheio de inquietude
Batendo de levinho no meu braço
Que estou com muito medo, minha mãe.
Repousa a luz amiga dos teus olhos
Nos meus olhos sem luz e sem repouso
Dize à dor que me espera eternamente
Para ir embora. Expulsa a angústia imensa
Do meu ser que não quer e que não pode
Dá-me um beijo na fonte dolorida
Que ela arde de febre, minha mãe.
Aninha-me em teu colo como outrora
Dize-me bem baixo assim: - Filho, não temas
Dorme em sossego, que tua mãe não dorme.
Dorme. Os que de há muito te esperavam
Cansados já se foram para longe.
Perto de ti está tua mãezinha
Teu irmão que o estudo adormeceu
Tuas irmãs pisando de levinho
Para não despertar o sono teu.
Dorme, meu filho, dorme no meu peito
Sonha a felicidade. Velo eu
Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Me apavora a renúncia. Dize que eu fique
Afugenta este espaço que me prende
Afugenta o infinito que me chama
Que eu estou com muito medo, minha mãe

Vinicius de Moraes