segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

A Autoridade

Aconteceu, na estação General Torres, em Gaia.

O comboio das oito  menos  um quarto, numa destas manhãs, gélidas e enevoadas; uma senhora, a correr esbaforida, para o apanhar; um pomposo revisor, à porta de uma das carruagens.
Disse a senhora com voz entrecortada:

-O senhor revisor, por favor, pode validar o meu andante, aqui no comboio? Eu não tive tempo de o validar, lá em baixo, na máquina.

Macambúzio, o pomposo revisor pensou uns instantes e condescendeu:
Por hoje, está bem. Mas é só hoje! Venha mais cedo!
- Mas, senhor revisor, eu não estive a dormir ou a brincar. Venho de trabalhar em limpezas, no turno da noite, e estou muito cansada.

- Ah! Está cansada? Então, valide o seu andante, lá em baixo, como deve de ser, espere pelo próximo comboio, (que seria só daí a uma hora), e descanse. Neste comboio, não entra!

E, não entrou!
Quando uma outra utente, que tinha assistido a tudo, lhe disse, num espanto indignado, (as pessoas ainda se espantam e ainda se indignam), que ele tinha sido mal educado e desumano, o “cavalheiro”, do alto da sua importância de revisor, ordenou:

- Cale-se! Não é nada consigo! Eu, aqui, sou a Autoridade!
Tout  court!!

 Palavras para quê?
É um revisor português, de um comboio português, e utentes portugueses que pagam os seus andantes antecipadamente, no princípio de cada mês, e são maltratados, insultados e muito prejudicados por tantas e inexplicáveis greves!

MC

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Tempo II

“O tempo que passa, não passa depressa. O que passa depressa é o tempo que passou”

Vergílio Ferreira

Não, nunca pensamos  no  tempo,  enquanto  o tempo  passa. O tempo que já passou é que nos sobressalta e entristece. Sobressalta, porque se escoou num sopro. Entristece,  pelo rasto de decadência que vai deixando no nosso rosto, no nosso corpo, na nossa alma.
Mas, sem um tremor, uma hesitação,, como um rio apressado, a fluir, infatigável, e sem nunca voltar atrás, saltitando, indiferente, entre as pedras do seu leito, o tempo, imparável, passa.
Hoje, volto aos meus tempos de menina, de bibe branco e tranças loiras, ao mundo mágico da minha infância, da fantasia e do faz-de-conta , e finjo  ser uma fada, na torre de um castelo encantado, a fiar, a fiar incansavelmente, não lã, mas tempo.
E, o tempo que eu fiasse, amontoar-se-ia aos meus pés, como uma toalha imensa, esplêndida, cheia de cor e de luz, com um remate de espuma que seria, afinal, uma sumptuosa renda de Bruges. Uma toalha mais preciosa do que o ouro, o incenso, a mirra.

Eu teceria tempo!
Ou, se soubesse tricotar, tricotaria tiras largas, imensas de tempo. Não perderia tempo a tricotar camisolas que se desfiam, esgarçam e perecem, mas tricotaria o tempo, que se amontoaria no meu colo, nas minhas mãos e resvalaria, por ser tanto, para o chão, em dobras macias, como uma manta feita de sol, luminosa, fantástica.

Eu tricotaria tempo!
Mesmo sem saber coser, mas se pudesse, desajeitada, a picar os dedos na agulha, a sujar a linha de sangue, o avesso cheio de nós, eu coseria imensos pedaços de tempo, ao tempo. E uma massa grandiosa, como o mar, translúcida, infinita, revolver-se-ia, em redemoinhos de luz, aos meus pés.

Com ponto incerto, eu remendaria o tempo!
Ou, se eu pudesse, atrasaria ou, talvez parasse, mesmo, todos os relógios do mundo.

Então, eu  ganharia tempo



Mas, como disse Thoreau, não é  possível  atrasar o tempo, matar o tempo, sem ferir a Eternidade.
E, no entanto, o tempo mata-nos um bocadinho em cada instante que passa. E, se o hoje não chega, para tanto ontem, como vai chegar o hoje, para tanto amanhã, se eu tiver amanhã? Sim, se eu tiver amanhã. Afinal, estou de passagem. Sou apenas uma visitante deste tempo, deste lugar. Uma visitante, muitas vezes, distraída, que nem sempre vê, nem sempre aprende, nem sempre  agradece.

Contudo, o tempo é implacável: não se deixa tecer, nem tricotar, nem remendar, nem atrasar ou parar. Impossível ludibriar ou seduzir o tempo.
Por isso, o que tenho a fazer, é, como sempre fiz, simplesmente, abraçá-lo e, com ele, abraçar a vida.

Até ir para casa!

MC

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Catarse


Nestes dias de sangue, lama e destruição, sinto, com amargura, sinto, ter-se estreitado,  o fio do horizonte.

E, a Terra inteira, chorosa, dilacerada, em carne viva, clama por Paz, por Justiça, por Salvação.

Nestes dias de terror, de barbárie, de morte, em que a loucura voltou a sair à rua e loucos mataram em nome de um deus que desconheço e abomino, perdi-me, mais uma vez, do mistério insondável, da vastidão incomensurável, do estonteante esplendor, do Infinito. A poderosa noção de Infinito, acalento doce, nos meus tropeços, no caminho.
Preciso da grandiosidade sublime de Infinito, na patética estreiteza dos nossos dias.

Nestes dias negros, em que entro em guerra comigo mesma e com esta indignação que me consome, confesso que sinto crescer, dentro de mim, no meu pensamento, nos meus sentidos, nas minhas veias, a desconfiança, a inquietação, o medo. E, uma incontrolável revolta. E, uma desagradável intolerância, também. Uma intolerância, que sempre desprezei, mas que não domino e  desconhecia em mim.
Talvez com o tempo... se o tempo me der tempo.

MC

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

A ânsia do poder

" A ânsia de poder não é originada na força, mas na fraqueza."
Erich Fromm

Na sua ânsia de poder, António Costa, virou à esquerda e quis, desesperadamente, transformar em vitória, a sua inesperada e humilhante derrota eleitoral, (afinal conseguiu tão poucochinho!), e colocou o seu destino político nas mãos, também ávidas de poder, de Catarina! E, nas mãos de Jerónimo!
Assim, a prazo, talvez curto prazo, A.C. garantirá a sua sobrevivência política, embora abrindo rupturas no seu partido. A médio prazo, além de esfrangalhar o PS e, aí é que está a grande tragédia, poderá dilacerar o país!
E, isso, nenhum Português a sério lhe perdoará!! Nunca!

O Tempo

Saramago escreveu: "... o tempo chove sobre nós, o tempo afoga-nos."

Eu, prosaicamente, digo que o tempo voa, o tempo corre. Corre, infatigável, à minha frente, como um cão desconfiado e fugidio. E eu corro, desesperadamente, atrás dele, dividida entre o medo que ele me arreganhe os dentes e me abocanhe, e o desejo vão de o alcançar e o de prender...
Mas, porque o tempo é imparável e corredio, ali, mesmo ali, naquele canto, acumulam-se as rimas que não rimei, os poemas que de...ixei por acabar, os textos, mutilados, sem um final, os livros que ainda não li, os telefonemas que não fiz, as palavras que não disse, os sonhos que, na pressa, me esqueci de sonhar...
O tempo corre solto, corre rápido e, nessa correria, a vida transforma-se, liquefaz-se no vento. O tempo transforma tudo em si mesmo, diz-nos o Poeta!
E eu vou-me perdendo no tempo, na teia que o tempo, sem piedade, tece! E que o vento, impetuoso, desfaz!
E há sempre tanto para fazer...

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Já não havia eu...

O céu tão azul, tanto calor, tanta gente no barco…

Subitamente, senti-me cansada e levemente nauseada. O chão começou a afastar-se. E eu enfraquecida, sem me poder sentar.
Devagarinho, o chão afastava-se mais e mais. Os joelhos trémulos, as pernas moles a susterem, com dificuldade, o meu corpo.

E o chão cada vez mais longe. E já nem parecia chão. Parecia um lençol azul, ondulante de água a deslizar à minha frente, como um rio, a fluir, a fluir... Talvez aquela gente, tanta gente, que eu já não via, fizesse, agora, parte integrante da água inquieta e travessa…
Pontos de luz brilhantes mas desfocados dançavam à minha volta e eu sozinha, à espera... quieta, quebradiça, leve.


Depois um ar sem peso a envolver o barco. Depois já não havia barco. Depois já não havia água. Depois já não havia azul. Só eu a cair, lentamente a cair, num abismo fundo e a dissolver-me, sem pressa, não sei se no azul, não sei se na água, não sei se no escuro.
Depois, isso sei, depois, já não havia eu.

Uma pausa sem cor, sem som, uma pausa feita de nada, na minha vida. Uma suspensão fugaz no tempo que talvez me tenha levado para outro tempo, para outra dimensão... Não sei, não me lembro…

Acordei no chão, com a água a bater no barco, o sol a manchar de ouro, o branco do meu vestido, e a fazer-me piscar os olhos, e um zumbido, que me pareceu uma cacafonia de sons, longínqua e estranha.
Levantei-me, hesitante, aturdida, vagamente estremunhada, como se estivesse a acordar de um sono profundo, vazio, sem sonhos.

E, foi assim, que desmaiei, num vaporetto, em Veneza…

MC

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Kayla, a minha preciosa giesta...


Encontrei-te,  por  acaso,  num abrigo.
Tinhas sido, provavelmente, abandonada ainda cachorrinha  e obrigada a deambular, perdida e sózinha, por montes e vales.  Um dia, no desespero da fome,  assaltáste um galinheiro e quiseram matar-te!  A tiro de caçadeira! Alguém soube da tua perigosa condição de pilha-galinhas, condoeu-se  de ti e entregou-te no abrigo.

Eras uma cadelinha de pelagem clara, ágil, de porte elegante, com cerca de dez meses/um ano, e só umas patorras fortes e desengonçadas denunciavam, descaradamente, a tua rafeirice. Eras arraçada a Husky e tinhas uns olhos lindos, de um azul, translúcido, precioso, que se fixaram em mim, não como quem, humildemente, pede abrigo, mas como se, segura de ti,  já soubesses que serias parte da minha vida.
Foste, Kayla, a giesta que faltava no meu jardim. A giesta alta, esguia, belíssima na sua singeleza, mas flexível, vibrátil, perlada de gotas de ouro, que ondula altiva, nas matas, num preguiçoso abandono.

Vivemos sete anos juntas, Kayla. Sete anos de dedicada companhia e de muita ternura, minha encantadora pilha-galinhas.
No dia 17 de Agosto, apareceu o primeiro sintoma da tua doença. Parecia um pequeno derrame num dos teus olhos, então perdido o azul, mas era muito mais do que  isso! E, começou uma dolorosa Via Sacra. Começou a tua luta titânica contra uma doença inesperada, terrível, implacável! Uma luta que acompanhei impotente. O coração em farrapos. No avesso de mim.
Foste uma lutadora, uma guerreira infatigável, Kayla! Só depuseste as armas quando, no dia 4 de Outubro, o Dr. André, devagarinho, te ajudou, minha giesta, então, exausta e quebradiça, a adormecer no morno aconchego dos meus braços e a partir, serenamente, para lá de toda a lonjura.

Fazes-me falta, Kayla!  Fazem-me falta, na rotina tumultuada dos meus dias, o ouro da tua meiguice, o brilho húmido, azul dos teus olhos, safiras preciosas que a giesta inveja, mas não tem.
E, porque, simplesmente te amo, lamento, não, mais do que lamento, choro todos os bocadinhos de tempo que tu, com o azul translúcido dos teus olhos, me pediste e que eu não te dei, porque não tinha tempo…
Lamento, não, mais do que lamento, choro as brincadeiras que não brincámos juntas e que te teriam dado tanta alegria, porque  o tempo não pára nunca e eu tinha pressa…

Lamento, não, mais do que lamento, choro os abraços que me querias dar com as tuas patas grandes e desengonçadas e que eu não recebi, porque podias arranhar a seda da minha blusa ou sujar-me o casaco, ou porque era tarde e eu estava atrasada...

Depois, subitamente,  adoeceste  e eu nunca mais tive pressa. E, havia tempo para tudo! E, não houve, Kayla, não houve tempo para  nada!!
Perdi-te, Kayla, e, contigo, perdi a única giesta que, algum dia, quis ter no meu jardim.
Quando, à noite, o sono não vem e a minha alma se despenha numa tristeza mais funda, imagino-te, minha giesta ondulante, que a brisa, na infinitude cintilante da lonjura, certamente agita mansamente, ternamente, com requintes de amante, imagino-te, dizia eu, a correr esguia, liberta, feliz, por prados inundados de luz… Uma luz límpida, azul, translúcida, como os teus olhos.

E eu, Kayla, enquanto a vida me der tempo, e o meu coração bater, no desconcerto tumultuado do peito, continuarei a correr atrás do tempo que não te deu mais tempo mas que, infatigável, indiferente, impiedoso, corre mais do que eu, não abranda, não espera, não recua, flui sempre…

Com amor.
MC
Nota: Texto apresentado no Curso de Escrita Criativa, " Escrita e Natureza", orientado pelo Dr. Mário Cláudio, em Serralves.
Fez ontem, dia 4 de Outubro, dia Mundial dos Animais, um ano que partiste, Kayla! És, agora, uma tatuagem eterna, linda, profunda, no meu coração.

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Apego à vida.

A gente morre cheio de saudades da vida.
Mia Couto


Ali, agrilhoada à cama, ela.

Enfraquecida pela doença, mas aterradoramente lúcida.
Ela, ali, esqueleto vivo que a pela seca, amarela, quebradiça cobre, rosto exangue, olhar baço, um sorriso ténue, para quem a visita, num apego torrencial, à vida.
Um apego ávido, destemido, comovente, uma luta titânica, tumultuada, desigual, com uma inimiga feroz, implacável, matreira, que finge, maldosa, recuar, uns dias, umas horas, mas vence sempre: a morte.
A morte que ronda, medonha, ronda; a morte que espreita; a morte que espera; a morte que não tarda...

E ela ali, naquele apego sôfrego, à vida. Um apego brutal, teimoso, incansável, mais forte do que toda a degradação que a consome, que a devora, que a mata. Minuto a minuto. Quando parece que se entregou, que cedeu, que finalmente se rendeu, ela reage e ergue-se e sai do recanto de sombra, onde se exaura. E desesperadamente, luta. Corajosa, indómita! Osso e pele!

Ela sozinha a impedir o desatar dos nós e dos laços.
Ela sozinha, inquieta, amedrontada certamente, mas sempre guerreira, apesar do coração bater leve, tão leve, como coração de passarinho, no desconcerto do peito, mas ainda ao compasso de uma esperança vinda lá do fundo de si mesma, do fundo do sangue aguado, das entranhas doentes, da alma exausta.

E ela ali, já numa saudade infinita.


Para duas grandes Mulheres que, no meu serviço de voluntariado, atravessaram o meu caminho.
Com afecto e respeito.

quarta-feira, 20 de maio de 2015

O segundo acto

Daqui a 50 anos, em 2065, quase todos os opositores do analfabeto Acordo Ortográfico estarão mortos. Em contrapartida, as crianças que este ano, em 2015, começaram a ser ensinadas a escrever tortograficamente, terão 55 anos ou menos. Ou seja: mandarão no país e na língua oficial portuguesa.
 
A jogada repugnante dos acordistas imperialistas ignorantes e cada vez mais desacompanhados pelas ex-colónias que tentaram recolonizar ortograficamente terá ganho tanto por manha como por estultícia.

As vítimas e os alvos dos conspiradores do AO90 não somos nós: são as criancinhas que não sabem defender-se. Deseducando-as sistematicamente, conseguirão enganá-las facilmente. A ignorância é a inocência. Pensarão, a partir deste ano, que só existe aquela maneira de escrever a língua portuguesa.
Os adversários morrerão e predominará a inestética e estúpida ortografia de quem quis unir o "mundo lusófono" através de um Esperanto lusográfico que não tem uma única vontade colectiva ou raiz comum.

Como bilingue anglo-português, incito os jovens portugueses que falam bem inglês (quase todos) a falar português com a exactidão fonética, vinda do bom latim, da língua portuguesa. Eu digo "exacto" e "correcto" como digo "pacto" e "concreto". Digo "facto" como fact, tal como "pacto" como pact.
Falar como se escreve (ou escrevia) é um acto de rebeldia. Ler todas as letras é libertador. Compreender a raiz das palavras é conhecê-las e poder tratá-las por tu.

Às armas!

Miguel Esteves Cardoso  - ( In Público)


NOTA:

É verdade que a sintaxe é muito importante! Enquanto a sintaxe se mantiver correcta, expresso, correctamente, o meu pensamento, sim!
Mas, amo as palavras! Respeito-as! Selecciono-as, junto-as e com elas conto histórias, pinto paisagens, dou cor e luz, ou dou cinza e sombra, às minhas emoções, aos meus sentimentos!
As palavras, com o tempo, e por tanto as ler e escrever, tornaram-se imprescindíveis na minha vida!
Ver essas palavras que amo, esses delicados "objectos" dos meus afectos, com alterações "físicas", que as desfeiam e modificam, causa-me uma imensa tristeza e perturbação.
É como se tivessem sofrido operações de estética que tivessem corrido mal e tivessem ficado desfiguradas.

Vou continuar a escrever como sempre escrevi e muitos farão como eu. Mas, não está certo! Na linguagem escrita, é este o caso, não pode haver livre arbítrio! Mas ninguém me obriga a escrever "espetador", ata", etc...
Estou em total desacordo com o acordo! Mas, a bem da verdade, o meu desacordo não interessa nada!! Nem o meu, nem o de muitos de nós! Manda quem pode!! Não manda quem sabe!! Infelizmente!

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Os apátridas da língua que nos governam

À memória do Vasco Graça Moura

Não sei se são válidos ou não os argumentos jurídicos que discutem a data da aplicação efectiva do Acordo Ortográfico [AO], se nestes dias, ou em 2016. Isso não me interessa em particular, a não ser para registar a pressa suspeita em o aplicar contra tudo e contra todos. Mas uma coisa eu sei ao certo: é que o desprezo concreto do bem que ele pretende regular, a língua portuguesa, é evidente nessa mistura sinistra de inércia, indiferença e imposição burocrática com que se pretende obrigar os portugueses a escrever de uma forma cada vez mais abastardada.

Na sua intenção original, o Acordo pretendia ser um acto de política externa, uma forma de manter algum controlo sobre o português escrito pelo mundo todo, como forma de garantir uma réstia de influência portuguesa num conjunto de países que, cada vez mais, se afastam da centralidade portuguesa, em particular o Brasil. Se é um “acordo” é suposto que seja com alguém. No entanto, desse ponto de vista, o AO é um grande falhanço diplomático, visto que está neste momento em vigor apenas em Portugal, com promessas do Brasil e Cabo Verde, esquecimento em Moçambique, Guiné Bissau, S. Tomé e Timor-Leste, e recusa activa em Angola. Nalguns casos há protelamentos sucessivos, implementações adiadas e uma geral indiferença e má vontade.
Para além disso, nenhuma implementação do AO, vagamente parecida com a pressão burocrática que tem sido feita em Portugal, existe em nenhum país, a começar por aquele que parecia ser o seu principal beneficiado, o Brasil. Ratificado ele foi, aplicado, não.

Mas com o mal ou a sorte (mais a sorte que o mal) dos outros podemos nós bem, mas ele revela o absurdo do zelo português num AO falhado e que nos isolará ainda mais. Onde os estragos serão mais significativos é em Portugal, para os portugueses, e para a sua língua. É que o Acordo Ortográfico não é matéria científica de linguistas nem, do meu ponto de vista, deve ser discutido nessa base, porque se trata de um acto cultural que não é técnico, e como acto cultural em que o Estado participa, é um acto político e as suas consequências são identitárias. Não me parece aliás que colha o historicismo habitual, como o daqueles que lembram que farmácia já se escreveu “pharmácia”, porque as circunstâncias políticas e nacionais da actualidade estão muito longe de ser comparáveis com as dos Acordos anteriores.

É um problema da nossa identidade como portugueses que está em causa, na forma como nos reconhecemos na nossa língua, na sua vida, na sua história e na sua proximidade das fontes vivas de onde nasceu: o latim.
Não é irrelevante para o português e a sua pujança, a sua capacidade de manter laços com a sua origem no latim e assim comunicar com toda a riqueza do mundo romano e, por essa via, com o grego, ou seja, o mundo clássico onde nasceu a nossa cultura ocidental. Esta comunicação entre uma língua e a cultura que transporta é posta em causa quando a engenharia burocrática da língua a afasta da sua marca de origem, mesmo que essas marcas sejam “mudas” na fala, mas estão visíveis nas palavras. As palavras têm imagem e não apenas som, são vistas por nós e pela nossa cabeça, e essa imagem “antiga” puxa culturalmente para cima e não para baixo.

O AO é mais um passo no ataque generalizado que se faz hoje contra as humanidades, contra o saber clássico e dos clássicos, contra o melhor das nossas tradições. Não é por caso que ele colhe em políticos modernaços e ignorantes, neste e nos governos anteriores, que naturalmente são indiferentes a esse património que eles consideram caduco, ultrapassado e dispensável. Chegado aqui recordo-me sempre do “jovem” do Impulso Jovem aos saltos em cima do palco a dizer “ó meu isso não serve para nada”, sendo que o “isso” era a História. Esta é a gente do AO, e, como de costume, encontram sempre sábios professores ao seu lado, os mesmos que vêem as suas universidades a serem cortadas, em nome da “empregabilidade”, da investigação nas humanidades e em sectores como a física teórica e a matemática pura, teorias sem interesse para os negócios. “Ó meu, isso não interessa para nada!”.
....
E é neste Portugal que uma geração de apátridas da língua, todos muito destros em declamar que a “a nossa pátria é a língua portuguesa”, minimizam a nossa identidade e a nossa liberdade, que vem dessa coisa fundamental que é escrever com a fluidez sonora do português, mas também com a complexidade da sua construção ortográfica.  
É como se estivéssemos condenados a escrever como se urrássemos em vez de falar."


José Pacheco Pereira
Historiador

Nota: O Acordo Ortográfico da nossa vergonha!