quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

O Poeta fotógrafo

O Fotógrafo

Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada a minha aldeia estava morta.
Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas.
Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim num beiral de um sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada mais na existência do que na pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotogafei o perdão.
Vi um paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre.
Por fim cheguei a Nuvem de calça.
Representou pra mim que ela andava na aldeia de braços com Maiakovski – seu criador.
Fotografei a Nuvem de calça e o poeta.
Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa mais justa para cobrir sua noiva.
A foto saiu legal.

Manoel de Barros

 
O fotógrafo pode ser Poeta! Cada fotografia pode ser um espantoso poema, escrito com o coração  num sobressalto, imagens e luz.
O Poeta é fotógrafo sublime, sem câmara, mas com um coração feito flauta, onde Deus entoa melodias novas, diáfanas, perfeitas, cada poema, que a sua mão traça, uma fotografia íntima, delicada, onde desnuda e expõe a sua alma, cada poema uma canção, uma ode, um hino, uma sinfonia...

O Poeta tem o dom de sentir e fotografar, na sua poesia, o sussurro mágico da melodia do Universo, nas palavras que escolhe, harmoniza e junta. Por isso, o Poeta não sabe, mas é flauta divina, compositor inspirado, que compõe com palavras, sem pauta, sem notas de música, dó ré, mi... e sem clave de sol, ou de fá...
Paul Claudel, no entanto, disse: “O poema não é feito dessas letras que espeto como pregos, mas do branco que fica no papel”. Eu penso que, o poema é feito das letras que formam as palavras e dos espacinhos incertos entre elas, onde talvez se aninhem o eco da melodia universal, o sentimento e a emoção...

O Poeta, como Manoel de Barros, neste belíssimo poema, é o fotógrafo magistral do Silêncio, do Perfume, de todos os Perfumes, da existência da lesma e e todas as existências, do azul-Perdão, do verde-Perdão, do castanho-Perdão dos olhos de todos nós, eternos mendigos de alguma coisa, do Sobre, (na verdade, como deve ser difícil fotografar o Sobre, mas o abençoado sabe!), da Nuvem de calça...Da Arte! 

 Poeta fotografa, infatigavelmente fotografa, o que mais ninguém sabe ver, aparentemente com os pés no chão, embora tenha asas invisíveis, macias, gigantes, que o levam para lá das nuvens, rumo ao infinito, os olhos nas estrelas, a emoção à flor da pele. Mas, é com a cintilação da sua luz, o seu sentimento bordado de sangue e de lágrimas e “a cal dos seus dias”, a escorrerem-lhe da alma, que dá forma e sentido ao poema.
 
E a Poesia fica sempre bem nas fotografias. do Poeta...

MC

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Brasil, sol, calor e reminiscências nossas...

Depois de uma ausência de semanas, aqui estou de volta ao aconchego de todos aqueles que me seguem aqui, nesta espécie de blog desalinhado e, generosamente, me lêem.

Neste espaço de tempo, recebemos o abraço fechado, misterioso, mas, ainda assim, pincelado de Esperança, de um novo Ano, o céu abriu-se, violento, e a chuva desabou, torrencial e gelada, sobre o cansaço de um povo já exausto, o mar galgou a terra, em ondas gigantescas, que varreram, sem misericórdia, tudo o que se atravessava no seu caminho, numa fúria devastadora.

Enquanto, por aqui, a Natureza se revoltava malévola e, sem piedade, destruía, passei eu doze maravilhosos dias no Brasil, no Estado da Bahia, na encantadora Praia do Forte, relativamente perto de Salvador, cidade, cujo Centro Histórico, iconizado no Bairro do Pelourinho, é conhecida além fronteiras, pela sua arquitectura colonial portuguesa e celebrizada, no Mundo, como a “Roma negra”, ou “Meca da negritude”, devido à forte influência africana, em termos culturais.
Surpreendeu-me, no entanto, que o monumento que deu o nome ao Bairro, o Pelourinho, tivesse sido erradicado. Sei que esta é uma reminiscência sangrenta, dolorosa e de uma desumanidade sem nome, mas... é História! E o Pelourinho, símbolo de tortura, e de morte era agora e tão só, um monumento histórico!
No entanto, numa janela, espreita uma imitação de Michael Jackson, ao lado da qual, desde que se pague, se podem tirar fotografias, porque nesse largo, em 1996, ao som de batuques de Olodum, o cantor dançou, cantou e interagiu com o grupo de percussão baiano, dando um verdadeiro show de talento e de simpatia. MJ gravou, nesse largo, o videoclip de "They don`t care about us".
Um momento histórico diferente, mas que se preservou...
 
Entristeceu-me ver vários edifícios de arquitectura colonial-portuguesa, ainda com uma traça lindíssima, abandonados a uma degradação confrangedora, o que dá à cidade de Salvador um toque triste de indecente decadência.

Ainda no centro histórico, na ladeira do Pelourinho, vi, de fora, porque estava fechada, a belíssima Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos.
A construção desta Igreja deve-se à devoção e empenhamento dos escravos negros e alforriados, constituídos em Irmandade de N.S. do Rosário, tendo, por isso, sido um processo lento. Os irmãos da confraria eram obviamente pobres e pouco mais podiam doar, do que o seu trabalho, engenho e arte, nas suas suas horas livres.
Nos fundos da Igreja, existe um antigo cemitério de escravos, que descansam em paz sob a protecção da Senhora que honraram. Numa louvável preservação da história desta igreja, tão intimamente ligada aos negros, a liturgia religiosa faz, ali, uso de música inspirada nos terreiros de Candomblé.
Como eu teria gostado de ter assistido a uma dessas missas!!

Nascida e criada em África, estes dias foram, sobretudo, uma espécie de reencontro com o sol, o calor, a cor, a luz e até com alguns sabores da minha infância e juventude. E, também a alegria de um mar azul, de ondulação mansa e das areias brandas e douradas. E a elegância dos coqueiros esguios, alguns carregados de côcos verdes, pequeninos ainda, que o vento manso agita amorosamente com as suas mãos macias, de amante terno e lascivo.
Encantaram-me as noites, vestidas de negro e de prata, as estrelas tão grandes e brilhantes que pareciam, na sua fulgurante cintilação, estender os braços, umas às outras, sem, contudo, nunca se tocarem e sem ofuscarem o brilho fixo, mas precioso de Vénus. E as constelações, tão nítidas e cintilantes giravam, resplandecentes, nas altas esferas, cientes da sua grandeza.

Eram assim as noites da minha infância. No jardim cresciam dúzias de rosas chamadas Príncipe Negro, de caule esguio e pétalas aveludadas, que perfumavam intensamente, a noite serena e tépida. No negrume vasto da noite africana, o céu parecia a imensa copa de uma gigantesca árvore, densa e escura, pontilhada de estrelas brancas, tão grandes, tão brilhantes e, ilusoriamente, tão próximas, que eu pensava que, se fechasse os olhos com força, bastaria desejar muito, de todo o coração, para, em bicos de pés e estendendo os braços, tocá-las, acariciar a sua prata gelada de lua, com as pontas ardentes dos meus dedos.
Nunca desejei bastante.
Nunca as toquei.

Mas as noites de veludo negro bordado a prata, na Praia do Forte, não sendo os repositórios dos meus sonhos de menina, eram também belíssimas e traziam em si a promessa colorida, acalorada e feliz de dias de sol, e de lazer, enquanto o mar, mergulhado em trevas e num murmúrio doce, desmaiava na areia, num cansaço lânguido e, num abraço fundo e morno, lhe confiava mil segredos de luz e de sombra.

Por aqui, céu tem continuado a desfazer-se em chuva, num Inverno pesado, depressivo e longo, longo...
Um Inverno triste que nunca mais acaba, como esta gripe danada, que me inquieta há mais de uma semana.

MC

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Senhora das Candeias

Hoje é dia da Senhora das Candeias e, de acordo com um ditado velhinho, "Quando, neste seu dia, a Senhora está a sorrir, está o Inverno ainda para vir, quando a Senhora está a chorar, está o Inverno a passar."

Hoje a Senhora já chorou que se fartou, coitadinha, mas a verdade, é que também sorriu um bocadinho, embora muito timidamente. Mas, sorriu! Talvez alguma gracinha do Seu Menino...
Assim sendo, estará este pesadelo de Inverno a passar, ou estará ainda para vir, com mais frio, mais chuva, mais vento desenfreado, as ondas do mar enfurecido a galgarem a terra em louco tropel?
A Senhora está instável, como instável está este desgraçado mundo em que vivemos...
Mas, enfim, espero, sinceramente, que venham dias mais bonitos, o Sol brilhe, em todo o seu fulgor, que as árvores floresçam, numa incadescência de cor e de deslumbramento, que da terra brote, a jorros, a magia esplendorosa da Primavera e que esta gripe danada que me inquieta há mais de uma semana, se vá embora de vez!
E, que a Senhora das Candeias sorria, sorria sempre! E, nós... com Ela!

MC