terça-feira, 4 de novembro de 2014

Kayla


Encontrei-te,  por  acaso,  num abrigo, “A cerca”, e nunca mais tive sossego enquanto não te resgatei e te trouxe para casa comigo.
Eras uma cadelinha de pelagem clara, porte elegante, com cerca de dez meses/um ano, arraçada a Husky. Tinhas uns olhos lindos, de um azul, translúcido, precioso, que se fixaram em mim, não como quem pede abrigo, mas como se já soubesses que serias parte da minha vida.
Vivemos sete anos juntas, Kayla. Deste-me tanto amor, tanta ternura e, também, tanta gratidão! Mas, era eu, Kayla  querida,  que te estava grata por tanto que recebia de ti!

No dia 17 de Agosto, apareceu o primeiro sintoma da tua doença. Parecia um pequeno derrame num dos teus olhos, de um azul translúcido, precioso, mas era muito mais do que isso! E, começou uma dolorosa Via Sacra… Começou a tua luta titânica contra uma doença inesperada, terrível, implacável! Uma luta que acompanhei impotente, com o coração em farrapos.
Foste uma lutadora, uma guerreira infatigável, Kayla! Só depuseste as armas quando, no dia 4 de Outubro, o Dr. André, devagarinho, com a alma carregada de compaixão, te ajudou a adormecer no morno aconchego dos meus braços e a partir, serenamente, para lá de toda a lonjura.

Amei-te muito Kayla! Não sei se te amei como devia, mas amei-te! E amo-te!
E, porque te amo, choro todos os bocadinhos de tempo que tu, com os teus olhos de um azul translúcido, precioso, fixos em mim, me pedias e que eu não te dei,  porque não tinha tempo…
Choro as brincadeiras que não brincámos juntas e que te teriam dado tanta alegria, porque  tinha pressa…
Choro os abraços e afagos que me querias dar e eu não recebi, porque era tarde e estava atrasada... Para ir ali, para ir acolá…
O tempo não pára e, na pressa dos dias, eu, tantas vezes, não reparei  na maravilhosa dádiva que era a  infinita ternura que guardavas só para mim…

Depois, Kayla,  subitamente  adoeceste e eu nunca mais tive pressa. Tinha todo o tempo para ti! E, havia tempo para tudo! E, não houve, Kayla querida, não houve tempo para nada!!

Quando, à noite, o sono não vem e a minha alma se despenha numa tristeza mais funda, imagino-te a correr linda, liberta, feliz, por prados infinitos, inundados de luz… Uma luz azul, translúcida, preciosa, como os teus olhos.
E eu, Kayla, enquanto a vida me der tempo, sei que continuarei a correr atrás do tempo que, impiedoso, não te deu mais tempo e corre mais do que eu, não abranda, não espera…

Com amor.
MC

sábado, 18 de outubro de 2014

De volta



Depois de algum tempo afastada, aqui estou de volta para o aconchego de todos os que, generosamente, me lêem!
Na verdade, senti necessidade de mudar, um pouco, o ritmo dos meus dias.
Alguns, na preguiça mole das férias, foram esquivos fantasmas de dias...
Mas, li muito. Enriqueci o meu tempo descobrindo novos autores e reencontrando clássicos, velhos amigos e companheiros queridos, da minha juventude.
Foi emocionante voltar a estar de mãos dadas com Hall Caine, Stephan Zweig, George Eliot, Dickens... E, foi delicioso ler Rilke, na sua carta a um jovem Poeta, na poderosa, magistral tradução de Vasco Graça Moura.
Vi filmes que ainda não tinha tido tempo para ver e, com alguns, confesso, senti que perdi tempo...
Viajei um pouco. Revi lugares que me tinham deixado saudades, conheci a Hungria que me encantou, e revisitei o Alentejo, uma paixão antiga.
E, assim, entre risadas e lágrimas, são elas o permanente tempero da vida, este tempo, que eu quis suspenso no tempo, passou, quase sem eu dar por ele a passar...

Neste intervalo, fiz anos e esse foi mais um dia bonito e emotivo!
E, já agora, depois de mais um aniversário, também eu gostaria de pedir ao tempo que me desse mais tempo para desatar os nós que me sufocam e para estreitar os laços, delicados, macios e doces, que são, afinal, a tessitura perfeita dos meus dias.
Gostaria de pedir ao tempo que me desse tempo para fazer tudo o que eu gostaria de fazer... E, ainda é tanto!!
Mas, penso que nunca ninguém, na vida, faz tudo o que quereria fazer...
Com a leitura, a escrita, o contacto com os outros, vou estreitando os tais laços, delicados, macios e doces, que suportam e estruturam os meus dias.

Rudyard Kipling disse que "somos todos ilhas, que gritam mentiras umas às outras, através de mares de desntendimentos"


Esta é com certeza, a infinita tragédia da Humanidade.

Mas, se metade de mim já é saudade e cansaço, a outra metade ainda é amor e canção. Por isso, nunca serei  ilha solitária, perdida em mares de mentiras e de desentendimento.

MC

Outono


Chove…

Hoje ,uma vez mais, o céu abriu-se …

Ferida funda, ferida aberta, de onde jorram, em torrente incontida, todas as lágrimas do mundo…
Um choro turvo, exausto, infecto.

Este foi um Outono antecipado, que se tem mantido tristonho, chuvoso, atravessado de trovoadas fortes, assustadoras.
Um Outono alagado, desgrenhado, decadente!

Onde está a estação lilás, das sonatas de Bach, das cores profundas, opulentas, os vermelhos, os amarelos, os castanhos de mil matizes, que são ouro, que são fogo, são volúpia e que os poetas cantam?
Onde estão os poentes de fogo, onde existem todos os sóis, enseadas de luz onde nos perdemos e onde nos encontramos?

Cansa-me este Outono de luz baça, suspensa, coada por nuvens cinzentas, pesadas,  tempo de desencantada decadência, fogo frio, o compasso de espera para o silêncio penumbroso, gelado, do Inverno...
Cansa-me a plangência chorosa deste Outono viúvo, antes de tempo, de um Verão que deveria ter sido uma explosão de ouro, de luz, chama ardente, esplendorosa, que não chegou a ser...


Anseio pelos dias de luz, de calor, de flores, de céu azul e de pássaros em alegre revoada, para, tranquila, recostada na maciez aveludada, voluptuosa do tempo, eu poder, enfim, descansar o meu cansaço…

domingo, 4 de maio de 2014

Amor de Mãe

Mãe não sabe quando começou a sua maravilhosa história de amor com o filho., apesar de todas as histórias terem um começo...
Mãe sabe, apenas, que a sua não teve, propriamente, um começo...
Porque, amor de Mãe não tem começo e continua para além do fim. Muito para além do fim!
Mãe ama o filho ainda antes de ele ser, ainda antes de ele começar a crescer dentro de si... Para sempre!
Por isso, é um amor eterno! Tão intenso e profundo que dói! E, é no chão das suas lágrimas que a Mãe semeia e cultiva as suas mais radiosas flores...

Perdi a minha Mãe aos três anos e, apesar do buraco fundo que a sua ausência me deixou no peito, apesar de me ter esquecido do seu cheiro, da maciez da sua pele, e de lhe ter perdido a face, sinto-a, muitas vezes, espantosamente, comigo! O fio invisível, mas forte, poderoso que nos liga continuou, indestrutível, para além da morte! Um nó de amor que nunca se deslassou, nunca se desmanchou... até hoje!

Por isso, é um amor único, entre todos os amores!
Amor sagrado, infatigável, incondicional, que também, pode ser um amor cruel, sem misericórdia e sem perdão, para proteger o filho em perigo!
É, assim, este amor, que hoje se celebra!

sexta-feira, 4 de abril de 2014

O tempo do avesso...


O tempo do avesso...

Hoje o dia amanheceu penumbroso, frio, molhado de chuva e de lágrimas... um dia turvo, pesado, que mais parece de Dezembro do que de Abril, a que só falta o cheiro quente e doce das castanhas assadas, da canela, do açúcar caramelizado, das rabanadas...

Ontem brilhou um sol suave, coado de nuvens brancas, delgados fios de ouro a enovelarem-se na explosão incendiada das árvores em flor e a entrelaçarem-se na terra, nas casas, em nós...

Hoje a penumbra triste do Inverno.
Ontem a claridade branda de uma Primavera arredia, assustadiça, esquiva...

O tempo a condizer com a incerteza sombria dos dias...

quinta-feira, 27 de março de 2014

Porque hoje é o dia dos teus anos...

Hoje é o dia do teu Aniversário, meu irmão querido! Um dia especial, só teu, que já não festejas, não festejamos juntos,  há anos...
Quantos...? Dez? Não sei... nem interessa. Parece que foi ontem... que partiste.
Pensei que a saudade, esta dor, sem remédio, de te perder se desvanecesse... Com o tempo. Mas, não! Continua viva e dói! Uma dor ferina, incansável, teimosa, escondida nas dobras desajeitadas, exaustas, da minha alma.
Deve ser por isso que, às vezes, ainda me parece ouvir a tua voz serena, parece-me arrecadar, nos meus olhos, a claridade translúcida do teu sorriso, parece-me ouvir o som leve e ritmado dos teus passos... 
Muito tempo depois de teres partido sozinho, sem bagagem, sem amarras, na viagem sem retorno...
Há quanto tempo...? Não importa. Parece que foi ontem...

É esta a nossa condição humana: estamos de passagem!
Partimos, numa completa solidão! Numa absoluta errância! Ou, talvez não...

Porque hoje é o dia dos teus anos, onde quer que estejas, meu querido, o meu presente são esta saudade infatigável de ti, esta saudade de nós crianças, de nós jovens, enfim, esta saudade de nós, as minhas lágrimas e este recanto da minha alma, onde te acolhes e descansas. Um recanto sagrado que a essência pura, de ti, enche de luz... 

Feliz Aniversário, meu doce irmão!

 Um beijo.

MC

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

O Poeta fotógrafo

O Fotógrafo

Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada a minha aldeia estava morta.
Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas.
Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim num beiral de um sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada mais na existência do que na pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotogafei o perdão.
Vi um paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre.
Por fim cheguei a Nuvem de calça.
Representou pra mim que ela andava na aldeia de braços com Maiakovski – seu criador.
Fotografei a Nuvem de calça e o poeta.
Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa mais justa para cobrir sua noiva.
A foto saiu legal.

Manoel de Barros

 
O fotógrafo pode ser Poeta! Cada fotografia pode ser um espantoso poema, escrito com o coração  num sobressalto, imagens e luz.
O Poeta é fotógrafo sublime, sem câmara, mas com um coração feito flauta, onde Deus entoa melodias novas, diáfanas, perfeitas, cada poema, que a sua mão traça, uma fotografia íntima, delicada, onde desnuda e expõe a sua alma, cada poema uma canção, uma ode, um hino, uma sinfonia...

O Poeta tem o dom de sentir e fotografar, na sua poesia, o sussurro mágico da melodia do Universo, nas palavras que escolhe, harmoniza e junta. Por isso, o Poeta não sabe, mas é flauta divina, compositor inspirado, que compõe com palavras, sem pauta, sem notas de música, dó ré, mi... e sem clave de sol, ou de fá...
Paul Claudel, no entanto, disse: “O poema não é feito dessas letras que espeto como pregos, mas do branco que fica no papel”. Eu penso que, o poema é feito das letras que formam as palavras e dos espacinhos incertos entre elas, onde talvez se aninhem o eco da melodia universal, o sentimento e a emoção...

O Poeta, como Manoel de Barros, neste belíssimo poema, é o fotógrafo magistral do Silêncio, do Perfume, de todos os Perfumes, da existência da lesma e e todas as existências, do azul-Perdão, do verde-Perdão, do castanho-Perdão dos olhos de todos nós, eternos mendigos de alguma coisa, do Sobre, (na verdade, como deve ser difícil fotografar o Sobre, mas o abençoado sabe!), da Nuvem de calça...Da Arte! 

 Poeta fotografa, infatigavelmente fotografa, o que mais ninguém sabe ver, aparentemente com os pés no chão, embora tenha asas invisíveis, macias, gigantes, que o levam para lá das nuvens, rumo ao infinito, os olhos nas estrelas, a emoção à flor da pele. Mas, é com a cintilação da sua luz, o seu sentimento bordado de sangue e de lágrimas e “a cal dos seus dias”, a escorrerem-lhe da alma, que dá forma e sentido ao poema.
 
E a Poesia fica sempre bem nas fotografias. do Poeta...

MC

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Brasil, sol, calor e reminiscências nossas...

Depois de uma ausência de semanas, aqui estou de volta ao aconchego de todos aqueles que me seguem aqui, nesta espécie de blog desalinhado e, generosamente, me lêem.

Neste espaço de tempo, recebemos o abraço fechado, misterioso, mas, ainda assim, pincelado de Esperança, de um novo Ano, o céu abriu-se, violento, e a chuva desabou, torrencial e gelada, sobre o cansaço de um povo já exausto, o mar galgou a terra, em ondas gigantescas, que varreram, sem misericórdia, tudo o que se atravessava no seu caminho, numa fúria devastadora.

Enquanto, por aqui, a Natureza se revoltava malévola e, sem piedade, destruía, passei eu doze maravilhosos dias no Brasil, no Estado da Bahia, na encantadora Praia do Forte, relativamente perto de Salvador, cidade, cujo Centro Histórico, iconizado no Bairro do Pelourinho, é conhecida além fronteiras, pela sua arquitectura colonial portuguesa e celebrizada, no Mundo, como a “Roma negra”, ou “Meca da negritude”, devido à forte influência africana, em termos culturais.
Surpreendeu-me, no entanto, que o monumento que deu o nome ao Bairro, o Pelourinho, tivesse sido erradicado. Sei que esta é uma reminiscência sangrenta, dolorosa e de uma desumanidade sem nome, mas... é História! E o Pelourinho, símbolo de tortura, e de morte era agora e tão só, um monumento histórico!
No entanto, numa janela, espreita uma imitação de Michael Jackson, ao lado da qual, desde que se pague, se podem tirar fotografias, porque nesse largo, em 1996, ao som de batuques de Olodum, o cantor dançou, cantou e interagiu com o grupo de percussão baiano, dando um verdadeiro show de talento e de simpatia. MJ gravou, nesse largo, o videoclip de "They don`t care about us".
Um momento histórico diferente, mas que se preservou...
 
Entristeceu-me ver vários edifícios de arquitectura colonial-portuguesa, ainda com uma traça lindíssima, abandonados a uma degradação confrangedora, o que dá à cidade de Salvador um toque triste de indecente decadência.

Ainda no centro histórico, na ladeira do Pelourinho, vi, de fora, porque estava fechada, a belíssima Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos.
A construção desta Igreja deve-se à devoção e empenhamento dos escravos negros e alforriados, constituídos em Irmandade de N.S. do Rosário, tendo, por isso, sido um processo lento. Os irmãos da confraria eram obviamente pobres e pouco mais podiam doar, do que o seu trabalho, engenho e arte, nas suas suas horas livres.
Nos fundos da Igreja, existe um antigo cemitério de escravos, que descansam em paz sob a protecção da Senhora que honraram. Numa louvável preservação da história desta igreja, tão intimamente ligada aos negros, a liturgia religiosa faz, ali, uso de música inspirada nos terreiros de Candomblé.
Como eu teria gostado de ter assistido a uma dessas missas!!

Nascida e criada em África, estes dias foram, sobretudo, uma espécie de reencontro com o sol, o calor, a cor, a luz e até com alguns sabores da minha infância e juventude. E, também a alegria de um mar azul, de ondulação mansa e das areias brandas e douradas. E a elegância dos coqueiros esguios, alguns carregados de côcos verdes, pequeninos ainda, que o vento manso agita amorosamente com as suas mãos macias, de amante terno e lascivo.
Encantaram-me as noites, vestidas de negro e de prata, as estrelas tão grandes e brilhantes que pareciam, na sua fulgurante cintilação, estender os braços, umas às outras, sem, contudo, nunca se tocarem e sem ofuscarem o brilho fixo, mas precioso de Vénus. E as constelações, tão nítidas e cintilantes giravam, resplandecentes, nas altas esferas, cientes da sua grandeza.

Eram assim as noites da minha infância. No jardim cresciam dúzias de rosas chamadas Príncipe Negro, de caule esguio e pétalas aveludadas, que perfumavam intensamente, a noite serena e tépida. No negrume vasto da noite africana, o céu parecia a imensa copa de uma gigantesca árvore, densa e escura, pontilhada de estrelas brancas, tão grandes, tão brilhantes e, ilusoriamente, tão próximas, que eu pensava que, se fechasse os olhos com força, bastaria desejar muito, de todo o coração, para, em bicos de pés e estendendo os braços, tocá-las, acariciar a sua prata gelada de lua, com as pontas ardentes dos meus dedos.
Nunca desejei bastante.
Nunca as toquei.

Mas as noites de veludo negro bordado a prata, na Praia do Forte, não sendo os repositórios dos meus sonhos de menina, eram também belíssimas e traziam em si a promessa colorida, acalorada e feliz de dias de sol, e de lazer, enquanto o mar, mergulhado em trevas e num murmúrio doce, desmaiava na areia, num cansaço lânguido e, num abraço fundo e morno, lhe confiava mil segredos de luz e de sombra.

Por aqui, céu tem continuado a desfazer-se em chuva, num Inverno pesado, depressivo e longo, longo...
Um Inverno triste que nunca mais acaba, como esta gripe danada, que me inquieta há mais de uma semana.

MC

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Senhora das Candeias

Hoje é dia da Senhora das Candeias e, de acordo com um ditado velhinho, "Quando, neste seu dia, a Senhora está a sorrir, está o Inverno ainda para vir, quando a Senhora está a chorar, está o Inverno a passar."

Hoje a Senhora já chorou que se fartou, coitadinha, mas a verdade, é que também sorriu um bocadinho, embora muito timidamente. Mas, sorriu! Talvez alguma gracinha do Seu Menino...
Assim sendo, estará este pesadelo de Inverno a passar, ou estará ainda para vir, com mais frio, mais chuva, mais vento desenfreado, as ondas do mar enfurecido a galgarem a terra em louco tropel?
A Senhora está instável, como instável está este desgraçado mundo em que vivemos...
Mas, enfim, espero, sinceramente, que venham dias mais bonitos, o Sol brilhe, em todo o seu fulgor, que as árvores floresçam, numa incadescência de cor e de deslumbramento, que da terra brote, a jorros, a magia esplendorosa da Primavera e que esta gripe danada que me inquieta há mais de uma semana, se vá embora de vez!
E, que a Senhora das Candeias sorria, sorria sempre! E, nós... com Ela!

MC

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Acordo ortográfico: acabar com este erro antes que fique muito caro.

O acordo ortográfico é uma decisão política e como tal deve ser tratado. Não é uma decisão técnica sobre a melhor forma de escrever português, não é uma adaptação da língua escrita à língua falada, não é uma melhoria que alguém exigisse do português escrito, não é um instrumento de cultura e criação.
É um acto político falhado na área da política externa, cujas consequências serão gravosas principalmente para Portugal e para a sua identidade como casa-mãe da língua portuguesa. Porque, o que mostra a história das vicissitudes de um acordo que ninguém deseja, fora os governantes portugueses, é que vamos ficar sozinhos a arcar com as consequências dele.
O acordo vai a par do crescimento facilitista da ignorância, da destruição da memória e da história, de que a ortografia é um elemento fundamental, a que assistimos todos os dias. E como os nossos governantes, salvo raras excepções, pensam em inglês “economês”, detestam as humanidades, e gostam de modas simples e modernices, estão bem como estão e deixam as coisas andar, sem saber nem convicção.
O mais espantoso é que muitos do que atacaram o “eduquês” imponham este português pidgin, infantil e rudimentar, mais próximo da linguagem dos sms, e que nem sequer serve para aquilo que as línguas de contacto servem, comunicar. Ninguém que saiba escrever em português o quer usar, e é por isso que quase todos os escritores de relevo da língua portuguesa, sejam nacionais, brasileiros, angolanos ou moçambicanos, e muitas das principais personalidades que têm intervenção pública por via da escrita, se recusam a usá-lo. As notas de pé de página de jornais explicando que, “por vontade do autor”, não se aplicam ao seu texto as regras da nova ortografia são um bom atestado de como a escrita “viva” se recusa a usar o acordo. E escritores, pensadores, cronistas, jornalistas e outros recusam-no com uma veemência na negação que devia obrigar a pensar e reconsiderar.
Se voltarmos ao lugar-comum em que se transformou a frase pessoana de que a “minha pátria é a língua portuguesa”, o acordo é um acto antipatriótico, de consequências nulas no melhor dos casos para as boas intenções dos seus proponentes, e de consequências negativas para a nossa cultura antiga, um dos poucos esteios a que nos podemos agarrar no meio desta rasoira do saber, do pensar, do falar e do escrever, que é o nosso quotidiano.
Aos políticos que decidiram implementá-lo à força e “obrigar” tudo e todos ao acordo, de Santana Lopes a Cavaco Silva, de Sócrates a Passos Coelho, e aos linguistas e professores que os assessoraram, comportando-se como tecnocratas – algo que também se pode ter do lado das humanidades, normalmente com uma militância mais agressiva até porque menos "técnicas" são as decisões –, há que lembrar a frase de Weber que sempre defendi como devendo ser inscrita a fogo nas cabeças de todos os políticos: a maioria das suas acções tem o resultado exactamente oposto às intenções. O acordo ortográfico é um excelente exemplo, morto pelo “ruído” do mundo. O acordo ortográfico nas suas intenções proclamadas de servir para criar uma norma do português escrito, de Brasília a Díli, passando por Lisboa pelo caminho, acabou por se tornar irritante nas relações com a lusofonia, suscitando uma reacção ao paternalismo de querer obrigar a escrita desses países a uma norma definida por alguns linguistas e professores de Lisboa e Coimbra.
O problema é que sobra para nós, os aplicantes solitários da ortografia do acordo. O acordo, cuja validade na ordem jurídica nacional é contestável, que nenhum outro país aprovou e vários explicitamente rejeitaram, só à força vai poder ser aplicado. A notícia recente de que, nas provas – que acabaram por não se realizar – para os professores contratados, um dos elementos de avaliação era não cometerem erros de ortografia segundo a norma do acordo mostra como ele só pode ser imposto por Diktat, como suprema forma de uma engenharia política que só o facto de não se querer dar o braço a torcer explica não ser mudado.

Porém, começa a haver um outro problema: os custos de insistirem no acordo. A inércia é cara e no caso do acordo todos os dias fica mais cara. A ideia dos seus defensores é criar um facto consumado o mais depressa possível. É esta a única força que joga a favor do acordo, a inércia que mantém as coisas como estão e que implica custos para o nosso défice educativo e cultural.
É o caso dos nossos editores de livros escolares que começaram a produzir manuais conforme o acordo e que naturalmente querem ser ressarcidos dos seus gastos. Mas ainda não é um problema insuperável e, acima de tudo, não é um argumento. Passado um período de transição, pode voltar-se rapidamente à norma ortográfica vigente e colocar o acordo na gaveta das asneiras de Estado, junto com as PPP e os contratos swaps, e muita da “má despesa”. Porque será isso que o acordo será, se não se atalhar de imediato os seus estragos no domínio cultural.
O erro, insisto, foi no domínio da nossa política externa com os países de língua portuguesa, e esse erro é hoje mais do que evidente: os brasileiros, em nome de cuja norma ortográfica foram introduzidas muitas das alterações no português escrito em Portugal, nunca mostraram qualquer entusiasmo com o acordo e hoje encontram todos os pretextos para adiar a sua aplicação. No Brasil já houve vozes suficientes e autorizadas para negar qualquer validade a tal acordo e qualquer utilidade na sua aplicação. Os brasileiros que têm um português dinâmico, capaz de absorver estrangeirismos e gerar neologismos com pernas para andar muito depressa, sabem que o seu “português” será o mais falado, mas têm a sensatez de não o considerar a norma.
Nós aqui seguimos a luta perdida dos franceses para a sua língua falada e escrita, também uma antiga língua imperial hoje em decadência. Querem, usando o poder político e o Estado, manter uma norma rígida para a sua língua para lhe dar uma dimensão mundial que já teve e hoje não tem. Num combate insensato contra o facto de o inglês se ter tornado a língua franca universal, legislam tudo e mais alguma coisa, no limite do autoritarismo cultural, não só para protegerem as suas “indústrias” culturais, como para “defender” o francês do Canadá ao Taiti. Mas como duvido que alguém que queira obter resultados procure no Google por “logiciel”, em vez de “software”, ou “ordinateur”, em vez de “computer”, este é um combate perdido.
Está na hora de acabar com o acordo ortográfico de vez e voltarmos a nossa atenção e escassos recursos para outros lados onde melhor se defende o português, como por exemplo não deixar fechar cursos sobre cursos de Português nalgumas das mais prestigiadas universidades do mundo, ter disponível um corpo da literatura portuguesa em livro, incentivar a criatividade em português ou de portugueses e promover a língua pela qualidade dos seus falantes e das suas obras. Tenho dificuldade em conceber que quem escreve aspeto – o quê? – em vez de aspecto, em português de Portugal, o possa fazer.

José Pacheco Pereira ( in Público 18/01/2014

Historiador

NOTA: Este é um dos melhores artigos que já li sobre o tenebroso (des)acordo ortográfico, que subscrevo inteiramente e que, espero, fique guardado, para sempre, na mais esconsa gaveta do armário-repositório das mais espantosas asneiras do Estado.
(Bold, meu)