Era uma manhã de verão e o sol parecia fazer desabar toda a sua preciosa carga de ouro, na pequena cascata que descia ondulante e formava, no solo, um pequeno lago, como uma concha de água cristalina, circundada de verdura, num recôndito do bosque.
O sol abrasava e Artemísia, a deusa da serena luz do luar, que por ali passava, acompanhada das suas ninfas, decidiu banhar-se na concha, onde a cascata se desfazia em espuma.
As ninfas despiram-lhe a túnica, descalçaram-lhe as sandálias e ela mergulhou, devagar, o corpo finamente esculpido, flexível e fresco, como a haste de uma flor em botão.
Acteon que se perdera, quando andava à caça, com a sua matilha de cinquenta cães, passou por ali, viu-a e ficou paralisado, perdido num êxtase quase místico, perante aquela deslumbrante criatura no banho, escondido, pelas sebes cerradas, verdes e lustrosas.
Artemísia, porém, apercebeu-se do intruso e, enraivecida pela ousada profanação dos seus virginais mistérios, preparava-se para chamar as suas ninfas, quando uma estranha dormência, um quebranto desconhecido a fez reclinar-se na relva que bordava a orla daquela taça de água translúcida.
A deusa adormeceu profundamente e sonhou...
No sonho, ela dirigia-se para aquele mesmo recanto ermo e verdejante do bosque, o sol a escaldar e a fazer desabrochar mil perfumadas corolas, nos jardins, ansiosa por banhar o seu corpo sequioso na concha cristalina, que se aninhava aos pés da cascata e onde a água cantava, recolhida entre arbustos, chorões, carvalhos e nogueiras ramalhudas.
Dois velhos que por ali passavam, curvados, feios, a pele amarela a cheirar a ranço e a penas de frango, os olhos esbugalhados, detiveram-se, boquiabertos, a espreitá-la, na sua esplendorosa beleza nacarada, que uma túnica alva e transparente, revelava mais do que cobria.
Ela, a casta Artemísia, rainha da serena luz, dos bosques, dos bichos e infatigavel caçadora, aproximou-se da cascata, sem se saber despida, devassada por aqueles olhos lúbricos, de pálpebras pesadas e descaídas que percorriam e quase apalpavam, excitados, o seu pescoço de garça, os seus seios perfeitos e firmes, o seu ventre liso, as suas coxas macias, a sua pele de cetim, que deus ou homem algum jamais vira.
Os velhos, os olhos arregalados, a boca torcida, num arreganho de volúpia, fosforejavam, babados, como lobos gulosos, à vista da ovelha sem pastor.Por entre os arbustos, eles observavam-na, num frenesim de luxúria e de imunda concupiscência.
(E, Artemísia, revolvia-se, angustiada, no sono).
Quando, depois de mandar retirar as ninfas, a deusa deixou cair a túnica e ía meter o pé descalço, na água cristalina, os velhos enlouquecidos de desejo, perante a sua radiosa e sensual nudez, arremeteram, para ela.
Com um grito abafado de susto e de vergonha, Artemísia tentou cobrir-se com a túnica, que pouco ou nada escondia, e dispos-se a chamar as ninfas. Os velhos, contudo, exaltados como bichos com cio, tentavam agarrá-la, com as suas mãos aduncas, ásperas, nojentas, e exigiam, babosos, num desvario, que se deixasse tocar e possuir, por eles, sob a ameaça de a acusarem de ser uma libertina, à solta pelos bosques, e de declararem terem-na surpreendido, numa cópula vergonhosa e desenfreada, com um rústico pastor, maculando, assim, para sempre, a sua auréola de sublime castidade, entre as deusas do Olimpo.
Artemísia, entretanto, ía fugindo do toque infame daqueles velhos lascivos, putrefactos e túrgidos, perdidos, naquele estranho sonho/pesadelo, os seus dons de deusa poderosa e caçadora exímia! Mas, mesmo vulnerável, indefesa, despojada da sua aljava de prata, ela ainda era a casta Artemísia que jamais se deixaria subjugar, que jamais deixaria destruír o odor de castidade que era o dom mais precioso da sua essência e gritou, gritou, aflita, por auxílio!
(E, a deusa agitava-se, convulsa, no sono inquieto.)
Acorreram, num espanto, as ninfas e os duendes. Os velhos furiosos, declararam, então, sobranceiros, com meio-sorrisos cínicos e olhares cúmplices, terem-na visto, ofegante e ébria de prazer, numa louca orgia dos sentidos, nos braços grosseiros de um pastor qualquer.
E, essa repelente difamação espalhou-se, como um incêndio e fez tremer o Olimpo!
Zeus foi chamado a intervir!. Artemísia, a deusa da serena luz, prateada, do luar, pálida, morta de vergonha e de desespero, esperava que se fizesse justiça. Apolo, seu irmão gémeo, olhava-a, atónito e enciumado. Mais tarde, iria, sem misericórdia, destroçar o coração da irmã, levando-a, com uma artimanha pérfida, a matar, ela própria, o amor da sua vida, Orion. Mas, essa é outra história, que não pertence a este perturbante sonho.
Zeus, com a filha a seu lado e com a sabedoria própria de uma divindade, decidiu falar com os velhos, em separado.
Imponente e severo, perguntou ao primeiro onde vira a deusa a copular com o pastor e ele disse, afoito e mau, que tinha sido debaixo de um chorão, cujas ramagens fartas e pendidas até ao solo, teriam escondido tão reles acto, não fossem os gemidos altos e a respiração opressa dos dois. Num salto temporal prodigioso, num outro tempo e num outro espaço, o chorão iria ter o seu momento de glória, quando, segundo a lenda, escondeu uma jovem mãe e o seu filho, Jesus, na fuga para o Egipto. Mas, essa é também outra história, que nada tem a ver com este aflitivo sonho.
Feita a pergunta ao outro velho, ele respondeu, maldoso e seguro de si que tinha visto a deusa e o rude pastor no debochado abraço, debaixo de uma nogueira. Nesse mesmo salto temporal, segundo a lenda, a madeira dessa árvore iria servir para crucificar, barbaramente, um homem bom e justo, esse mesmo Jesus, que o chorão protejera e salvara, anos antes. Mas, essa é outra história, também sem cabimento no sonho terrível, sofrido de Artemísia.
Então, Zeus, desencadeada a sua ira, trovejou aos dois velhos: “ Que as vossas mentiras sejam a vossa eterna condenação a um excruciante sofrimento, no Hades!” E, a um golpe do seu portentoso raio de fogo, os dois velhos tombaram a seus pés.
(E, a deusa da serena luz, saciada a sua sede de justiça, sorriu, tranquila, no sono).
Com a respiração descontrolada, mal refeita daquele sonho/pesadelo, Artemísia abriu os olhos e descortinou Acteon, ainda escondido, atrás das sebes, simultaneamente, surpreendido com a dolorosa inquietação no sono, de tão delicada criatura, e estático, irremediavelmente, preso ao encantamento da sua arrebatadora beleza!
Furiosa com aquela ousadia que a profanava, Artemísia aspergiu-o com a água onde se banhava e transformou Acteon num cervo, no meio de gritos e de lamentos pois, cada osso, cada músculo transformava-se, alongava-se ou retraía-se, com dores lancinantes.
E, indescritível foi o seu sofrimento e o seu horror ao sentir as mãos e os pés endurecerem e tomarem a forma de cascos e na cabeça crescerem chifres!
Os seus cães que por ali andavam, já famintos, ao verem aquele cervo grande, carnudo e tenro, correram, alucinados, atrás dele.
Acteon tentou chamá-los pelos nomes, suplicar-lhes que parassem, mas era, agora, um bicho! Não tinha voz! Ainda os sentiu abocanhá-lo e começarem a rasgar as suas carnes. Os cães comeram-no vorazes e lamberam, deliciados, o seu sangue, sem saberem que era o dono, respeitado e querido que, gostosamente, devoravam.
Diz-se que, ainda agora, os cinquenta cães de Acteon, nas noites prateadas pela serena luz do luar, uivam saudosos e vagueiam, por montes, por matas e por vales, incansavelmente, desesperadamente, à procura do dono!
MC
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