Menino Rui Manuel,
Começo, assim, esta carta, porque ouvi as criadas e o jardineiro chamarem-lhe menino, apesar de ser alto, bonito e garboso como um deus e ter um sorriso de dentes brancos, como pedrinhas de sal, lindo e cheio de luz!
O menino não me conhece, nem nunca me irá conhecer! E, esta é uma carta que nunca será lida por si porque, para além da vergonha que eu sentiria se a lesse, não saberia, sequer, como fazê-la chegar às suas mãos, mas se não lhe escrevo, enlouqueço ou sufoco!
Sou uma sapinha, pequenina, feia e viscosa e vivo aqui, junto ao lago, na sua quinta.
Escrevo-lhe, menino Rui Manuel, só para lhe dizer que, há muito tempo, o amo, com todas as forças da minha alma! Sou uma sapinha humilde, mas tenho sentimentos, tenho coração e, por isso, acho que também tenho alma, não sei!
Quando o seu sorriso me abraça, mesmo que o seu sorriso não seja para mim e o menino nem saiba que existo, o sol brilhae cintila, embeleza o meu dia e aquece-me, consolador, ainda que o tempo esteja frio, cinzento e chuvoso! Vê-lo, menino Rui Manuel, é uma festa, é um arraial, é um baile de gala! Ouvir a sua voz, o seu riso, o ruído macio dos seus passos é um poema tecido de luz, é uma melodiosa canção, é uma deslumbrante sinfonia!
Quando, um dia, o menino leu, aqui no jardim, um poema, a uma rapariga de cabelos escuros, que se encostava, toda langorosa, a si, senti um grande desalento, uma imensa tristeza e uma profunda amargura! E uma tremenda fúria, também! Acho que tive ciúmes, menino, uns ciúmes danados dessa delambida que o abraçava, com uns braços longos e magros, como espetos!
Mas, gostei muito do poema, especialmente, de um verso, que decorei: “J`écoute le son de ta voix dans toutes les bruits du monde!” Exactamente, como eu!
Escondo-me de si, quando passeia junto ao lago, e só eu sei a ansiedade com que espero os seus passeios, porque tenho vergonha e repulsa de mim, da minha extrema e pegajosa fealdade. E tenho-me uma imensa raiva, uma raiva que me trespassa e um ódio sem medida por ser, assim, repelente, como sou! E, tenho medo, menino, um medo aflitivo, que me veja e não me queira aqui, este animal grotesco, risível, que sou, a destoar, brutalmente, da beleza delicada, do seu jardim!
No verão passado, estive, muitas vezes, pertinho dos seus pés descalços, tão pertinho que uma ou duas vezes os toquei, de leve, com as minhas patas largas e feias. E, esses foram os momentos mais bonitos desta minha desgraçada existência! E, na minha alma inquieta, repicaram sinos, desabrocharam rosas e resplandeceu o mais belo e fantástico fogo de artifício!
Daria tudo, se tivesse alguma coisa para dar, para ser uma rapariga bonita e desejável e florir, radiosa, nos seus braços, num esbanjamento de afagos, de beijos e de palavras sussurradas! Daria tudo, se tivesse alguma coisa para dar, para, mesmo sendo uma feia sapa, sentir uma caricía sua, uma carícia, mesmo levezinha e breve, nas minhas costas! Mas, não tenho nada, nem sequer a minha mísera vida que, eu sei, não tem qualquer valor, para oferecer, em troca!
E, depois, como poderia o menino tocar-me, acariciar-me, se tenho uma pele grossa, rugosa, nojenta e perpetuamente húmida?
Já tentei falar com Deus, mas sou tão insignificante, que Ele não me vê, não me ouve, nem me responde. Se calhar, até já se esqueceu que me criou, e, por isso, tenho-me limitado a perguntar, a mim mesma, porque razão, no corpo desta sapinha repugnante, que sou, bate, arrebatado, o coração cheio de amor, fogoso, doido, a estalar de emoção e de ciúme, de uma mulher ardente e apaixonada, que nunca serei?
Às vezes, muitas vezes, quando me vejo, reflectida no lago, assim feia, escura e repulsiva, apetece-me fugir, apetece-me morrer, apetece-me confundir-me, para sempre, com a terra... sei lá!
Depois de escrever esta carta, que o menino nunca irá ler, vou eu, lê-la muitas vezes, vou cobri-la de baba e de lágrimas, porque se uma sapinha se baba, a verdade é que também chora, e vou enterrá-la no sítio onde ousei tocar os seus pés descalços e onde senti o calor suave da sua pele macia, incendiar o meu corpo informe e gelado!
Mas, menino, confesso-lhe aqui, que tenciono escrever uma outra carta, mais curta, mas cheia de palavras ternas, enlouquecidas, apaixonadas! Uma carta de amor, romântica e ridicula, mesmo muito ridícula, tão ridícula, que, se o menino a lesse, fartava-se de rir! Mas, não faz mal! E, sabe, vou fazer de conta que foi o menino, num frémito louco de paixão, num delírio de amor, que a escreveu, a pensar em mim!
Depois, vou aconchegar-me em cima dela, ficar muito quieta, e deixar que o frio, a chuva, a neve, seja o que for, me adormeça, para eu morrer suavemente, assim devagarinho, a fazer de conta que sou uma linda princesa, a dormir um sono tranquilo, cheio de sonhos coloridos e fofos, como nuvens, nos braços fortes do seu principe encantador! E, eu que sempre vivi como uma sapinha triste, sem importância e horrenda, morro princesa, amante e muito amada! A transbordar de felicidade!
Vou terminar esta carta, quase cega pelas lágrimas! Estou a chorar e é a chorar que, me despeço de si e que, uma vez mais, lhe digo que o amo, menino Rui Manuel, com todas as forças deste meu pobre e cansado coração!
Sua sapinha,
MC
3 comentários:
Pronto, mais uma vez, emocionei-me com o que li. E gostei muito. Fiquei a torcer para que acontecesse um conto de fadas e a sapinha pudesse virar uma princesa.
És uma querida, redonda! Obrigada por me leres e comentares o que escrevo! És um oásis de luz, num deserto de indiferença... Abraço.
Gostei muito desta carta de amor. Um texto cheio de emoções a tocar o "morrer de amor". E a entrar no universo mágico das fadas. Com ressonâncias pessoanas. O menino Rui Manuel anda muito distraído pelo jardim.
Parabéns pelo belíssimo texto.
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