terça-feira, 5 de julho de 2011

Até logo, Mãe!

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O Gustavo devia estar mesmo a chegar.

Não lhe apetecia ir ver a mãe. Queria sair, respirar fundo o ar frio da rua e receber, alegremente e de de braços abertos, o Novo Ano!.
Hesitou à porta. Aquele quadro de sombria quietude e profundo silêncio, incomodava-a e deprimia-a. Contudo, um súbito tremor de consciência, levou-a a entrar devagarinho, no quarto, a seda do vestido a roçagar mansamente.

A mãe, pequeno vulto mal perceptível, sob as roupas da cama, olhou-a fixamente, os olhos grandes e escuros, brilhantes de febre ou, talvez, de lágrimas.
Ana sentiu uma forte opressão no peito, como se uma presença poderosa dominasse, invisível e destruidora, tudo no quarto e acentuasse, malévola, o cheiro insidioso e fétido de decadência e de uma incipiente podridão.
Meio-agoniada, levou, num gesto brusco, a mão perfumada ao nariz e a jarra esguia, pousada na mesinha de cabeceira, virou-se, a rosa vermelha que a senhora Irene lá pusera nessa manhã, caiu, algumas pétalas soltaram-se e a água ainda a gotejar, ía tornando maior a pocinha cristalina que se formara no chão.
Ana assustou-se, estremeceu e, num arrepio, recuou.

“ Até logo, Mãe!”

E, sem tocar ou beijar o rosto branco e esquálido, ligeiramente virado para ela, Ana saiu do quarto, quase a correr, porque a angustiava aquela obscuridade pesada, o cheiro, estranho e enjoativo a dissolução e, sobretudo, porque não podia suportar a fixidez daqueles olhos grandes, escuros, misteriosos que lhe atravessavam a alma, como uma súplica, como uma despedida ou... como uma acusação!

E, porque já estava de saída, Ana não viu o movimento ténue, muito ténue da mão descarnada da mãe, como que a querer tocá-la ou prender-lhe o vestido, nem viu os seus lábios tentarem, ansiosos, dizer o nome dela, nem viu as duas lágrimas grandes, grossas, como punhos, que escorreram daqueles olhos grandes e escuros e se perderam na almofada, num desolado abandono !
Ana também não a viu abrir a boca, no desesperado espasmo da falta de ar, nem ouviu o seu leve estertor, tão leve, como um adejar de pássaro aflito, nem viu o pânico estampado no rosto desfigurado da mãe ao enfrentar, na mais profunda solidão, o supremo mistério da morte!

...

NOTA: Excerto de um conto, onde pontifica a tragédia do egoísmo .

2 comentários:

José Almeida da Silva disse...

De novo, a morte. E a incompreensão de que amar é estar com, inteiramente. Sofrer e partilhar momentos que são fragilidade e solidão é a demonstração da nossa humanidade. Quem assim não age, dificilmente saberá o sentido da vida e do amor, e vive cheio de medo.

Interessante, esta sua reflexão sobre a Morte! A nossa maior fragilidade. Nada podemos contra ela. Só o Amor nos pode redimir.

Obrigado por esta página tão profunda e tão cheia de significado.

Um abraço de muita amizade do, Zé

Fernando Borges disse...

Senti uma tristeza tremenda lendo esse trecho...
O pior é que muitos fazem isso com as pessoas que os amam mesmo durante a vida, e não apenas nos momento derradeiros.