quarta-feira, 26 de outubro de 2011

A Ira

"A violência é o único refúgio dos fracos e dos incompetentes"
Isaac Asimov




Ela ouviu a porta abrir, para logo se fechar com violência. Sentiu, com um arrepio, que ele estava, outra vez, mal disposto, zangado. O cheiro pútrido da sua ira que, como um polvo, parecia estender os tentáculos por toda a casa, procurando-a, maligno, para a prender e oprimir, atingiu-a, ainda mesmo antes de a encontrar, como uma pedra de fogo.

....

Teve medo!
Mexeu a sopa e começou a cortar o tomate, em fatias finas, para a salada. Não se voltou quando ele entrou na cozinha, infectando, tudo em seu redor, com os miasmas pestilentos, contaminados, da sua ira maléfica, que ela tão bem conhecia!

...

Ela voltou-se devagar, como em câmara lenta, a faca esquecida na mão e olhou para ele. Encolheu-se!
Aterrorizada, viu diante de si, aquele homem alto, forte, com os olhos brilhantes, raiados de sangue, um olhar duro e frio, como de uma serpente, o rosto alterado e uma veia grossa, como uma corda, a latejar na testa. Aquele homem que era o seu marido.

...

Sem esperar pela resposta, aproximou-se dela, de um salto e esbofeteou-a! Atingiu-lhe o nariz, o sobrolho esquerdo e o lábio. O sangue jorrou! De cabeça perdida, agarrou-a pelos cabelos e bateu-lhe outra vez. Na mão, ficou-lhe um punhado de cabelo loiro, deu-lhe um empurrão brutal e ela caiu desamparada. Gritou e urinou-se quando ele lhe deu um pontapé impiedoso, nos rins!
Ali ficou, deitada no chão, vulnerável, cheia de dores, esgotada. Como de costume, ele falou, falou, gritou, como um demónio, a contorcer-se, num inferno de ódio e de ira! E, como sempre foi irónico, foi sarcástico, foi insultuoso! Foi malévolo e foi cínico!

...

Caída no chão, num repentino flashback, reviveu doze anos de agonia e de calvário!

...

Estarreciam-na aquelas frequentes e súbitas explosões de uma ira terrível, violenta, incontrolável, por pequenas coisas e, às vezes, que ela soubesse, por nada, seguidas de uma calma doentia, de uma quietação estranha que sempre a assombrara e de intoleráveis carícias e rudes manifestações de afecto que, geralmente, acabavam em longas sessões de sexo que a enojavam, vilipendiavam e eram uma torturante violação para o seu pobre corpo espancado!
Mas, como ele dizia depois, com um risinho lúbrico e maligno, excitava-o, irresistivelmente, senti-la assim frágil, cansada, submetida a si, aos seus mais loucos desejos!
Nunca ninguém a ajudara, ... nem a polícia a quem, uma vez, para nunca mais, ousara apresentar queixa.
O agente destacado para levantar o auto, exigira que ela relatasse tudo, com todos os detalhes e ouvira-a, com um sorriso canalha e o olhinho lascivo que a despia. Enfureceu-se, envergonhou-se, arrependeu-se!
No fim, com um olhar velhaco para o colega do lado, o agente disse-lhe que veriam o que se podia fazer.
Já em casa, sozinha, com medo de represálias e de lhe despertar, mais furiosamente, a ira, não dormira nessa noite e retirou a queixa no dia seguinte!

...

De repente, esquecidas as palavras, ele perdeu-se no silêncio frio da cozinha e aquietou-se. Ainda caída no chão, ouviu-o dizer, nessa quietação estranha, que nunca deixara de a assombrar:
-Levanta-te, amor! São horas de jantar. Sabes que te amo. Olha para mim! Levanta-te!
Limpa o sangue do teu corpo! Isso não é nada!

...

E, com um olhar carregado de sensualidade, continuou:

Estás cada vez mais bonita, perfeita e desejável! Ah! Como és linda, macia e como eu te desejo!

...

Anda, levanta-te! Limpa o sangue do teu corpo, vá! São horas de jantar. Serve a sopa!

...

Estava farta daquele rosto, agora tranquilo e doce, como o de um noivo, mas, ainda há pouco, medonho, congestionado, contorcido numa violência diabólica; tinha medo daqueles olhos brilhantes, fixos, raiados de sangue, que pareciam expedir chispas de fogo; enojava-a aquela boca que se abria, agora, num arreganho, a imitar um sorriso e onde, não há muitos minutos, os dentes escorriam ira!

Encolhida no chão, sentiu-se suja, humilhada, corrompida pela raiva, pela loucura maldosa, pela irracionalidade daquele monstro!
A seu lado, sob a saia, sentiu a faca.
Levanta-te, anda! Está a fazer-se tarde para o jantar!

Ela levantou-se, devagar, a faca na mão, escondida nas pregas da saia.

Que tens? Não me provoques! Tem juízo! Anda, serve a sopa! Depressa ! Tenho fome e apeteces-me, depois, amor! A minha sobremesa predilecta és tu, sabes?

Uma vaga imensa e negra, de ódio, há tanto tempo acumulado, inundou-a e quase a submergiu, cegando-a!

Como uma sonâmbula, dirigiu-se a ele.

E, de repente, o dique que continha o seu ódio, um ódio vivo, que fora crescendo, crescendo, fortalecendo-se e refinando-se, ao longo do tempo, como um vinho especial, raro no corpo e no travo, cuidadosamente envelhecido, esse dique que barrava a sua repulsa, a sua raiva, o seu nojo, rompeu-se fragorosamente e, com um grito, arrancado do mais profundo das suas entranhas, do mais íntimo do seu ser, ela enterrou-lhe a faca no ventre.!

Uma vez... duas vezes... três vezes...
...


Nota: Este texto foi escrito em 2009, para ilustrar a IRA, no Curso de Escrita Criativa, " As sete Virtudes e os sete Pecados Mortais", coordenado pelo Dr. Mário Claudio.

MC

2 comentários:

José Almeida da Silva disse...

Que beleza de texto! A ira foi, de facto, servida fria!
O texto é uma narrativa cujo tema central é a violência sobre a Muhler, e é de uma fantástica actualidade. Não há dia nenhum que a imprensa não relate destes casos, quase sempre com a morte a coroá-los. Mas o seu texto, MC, ganha uma imensa dramatyicidade - a protagonista é analisada até ao mais fundo do ser ser. E se o desenlace deste conto não é inteiramente previsível (a faca é um objecto enunciado logo nos primeiros momentos, a verdade é que mostra como é possível que a violência reiterada pode gerar uma mais dámática violência.

é de notar o tom crítico que atravessa a actuação da Polícia, a mesma de quem se espera, porque lhe cabe, a protecção e a segurança dos cidadãos. Fica, todavia, claro que essa instituição de segurança é tecida do mesmo machismo do ser violente que acabou às mãos da vítima, até então vilipendiada de diversas formas. Quem a poderá julgar?

Gostei muito.

Abraço de muita amizade do, Zé

redonda disse...

E muito bem escrito.