quinta-feira, 13 de outubro de 2011

"Vozes" - Ana Luísa Amaral

No dia onze, deste Outubro dourado e macio, vivi um fim de tarde de delicioso encantamento, com a poesia de Ana Luísa Amaral, na apresentação do seu novo livro "Vozes".
No Planetário, na rua das Estrelas, choveram estrelas de ouro, de luz e de cor, em forma de poemas!
E, soaram "Vozes"! Poéticas, sublimes, poderosas, vibrantes! De beleza e de emoção...



INÊS E PEDRO: QUARENTA ANOS DEPOIS

É tarde. Inês é velha.
Os joanetes de Pedro não o deixam caçar
e passa o dia todo em solene toada:
«Mulher que eu tanto amei, o javali é duro!
Já não há javalis decentes na coutada
e tu perdeste aquela forma ardente de temperar
os grelhados!»


Mas isto Inês nem ouve:
não só o aparelho está mal sintonizado,
mas também vasto é o sono
e o tricot de palavras do marido
escorrega-lhe, dolente, dos joelhos
que outrora eram delícias,
mas que agora
uma artrose tornou tão reticentes.

Inês é velha, hélas,
e Pedro tem caibras no tornozelo esquerdo.
E aquela fantasia peregrina
que o assaltava, em novo
(quando a chama era alta e o calor
ondeava no seu peito),
de ver Inês em esquife,
de ver as suas mãos beijadas por patifes
que a haviam tão vilmente apunhalado:
fantasia somente,
fulgor que ele bem sabe ser doença
de imaginação.

O seu desejo agora
era um bom bife
de javali macio
(e ausente desse horror de derreter
neurónios).

Mais sábia e precavida (sem três dentes
da frente),
Inês come, em sossego,
uma papa de aveia.

ANA LUÍSA AMARAL

in "Vozes", D. Quixote



A VERDADE HISTÓRICA



A minha filha partiu uma tigela

na cozinha.

E eu que me apetecia escrever

sobre o evento,

tive que pôr de lado inspiração e lápis,

pegar numa vassoura e varrer

a cozinha.


A cozinha varrida de tigela

ficou diferente da cozinha

de tigela intacta:

local propício a escavação e estudo,

curto mapa arqueológico

num futuro remoto.


Uma tigela de louça branca

com flores,

restos de cereais tratados

em embalagem estanque

espalhados pelo chão.


Não eram grãos de trigo de Pompeia,

mas eram respeitosos cereais

de qualquer forma.

E a tigela, mesmo não sendo da dinastia Ming,

mas das Caldas,

daqui a cinco ou dez mil anos

devia ter estatuto admirativo.


Mas a hecatombe

deu-se.

E escorregada de pequeninas mãos,

ficou esquecida de famas e proveitos,

varrida de vassouras e memorias.


Por mísero e cruel balde de lixo

azul

em plástico moderno

(indestrutível)



ANA LUÍSA AMARAL,

"Minha Senhora de Quê", Quetzal Editores, Lisboa, 1999



RITMOS


E descascar ervilhas ao ritmo de um verso:

a prosódia da mão, a ervilha dançando

em redondilha.

Misturar ritmos em teia apertada: um vira

bem marcado pelo jazz, pas

de deux: eu, ervilha e mais ninguém



De vez em quando o salto: disco sound

o vazio pós-moderno e sem sentido

Ah! hedónica ervilha tão sozinha

debaixo do fogão!



As irmãs recuperadas ainda em anos 20

o prazer da partilha: cebola, azeite

blues desconcertantes, metamorfose em

refogados rítmicos



(Debaixo do fogão

só o silêncio frio)



ANA LUÍSA AMARAL,

"Minha Senhora de Quê", Quetzal Editores, Lisboa, 1999




TESTAMENTO



Vou partir de avião

e o medo das alturas misturado comigo

faz-me tomar calmantes

e ter sonhos confusos


Se eu morrer

quero que a minha filha não se esqueça de mim

que alguém lhe cante mesmo com voz desafinada

e que lhe ofereçam fantasia

mais que um horário certo

ou uma cama bem feita


Dêem-lhe amor e ver

dentro das coisas

sonhar com sóis azuis e céus brilhantes

em vez de lhe ensinarem contas de somar

e a descascar batatas


Preparem a minha filha

para a vida

se eu morrer de avião

e ficar despegada do meu corpo

e for átomo livre lá no céu


Que se lembre de mim

a minha filha

e mais tarde que diga à sua filha

que eu voei lá no céu

e fui contentamento deslumbrado

ao ver na sua casa as contas de somar erradas

e as batatas no saco esquecidas

e íntegras



ANA LUÍSA AMARAL,


"Minha Senhora de Quê", Quetzal Editores, Lisboa, 1999




MINHA SENHORA DE QUÊ



dona de quê

se na paisagem onde se projectam

pequenas asas deslumbrantes folhas

nem eu me projectei


se os versos apressados

me nascem sempre urgentes:

trabalhos de permeio refeições

doendo a consciência inusitada


dona de mim nem sou

se sintaxes trocadas

o mais das vezes nem minha intenção

se sentidos diversos ocultados

nem do oculto nascem

(poética do Hades quem mdera!)


Dona de nada senhora nem

de mim: imitações de medo

os meus infernos


ANA LUÍSA AMARAL,

"Minha Senhora de Quê", Quetzal Editores, Lisboa, 1999



DESCULPA-ME A TERNURA



Enternece-me pensar que estás aí,

não força de trabalho desigual

nem vida à pressa,

mas minha amiga.


Talvez as palavras que te digo

me transpareçam classe,

talvez nem te devesse dizer nada.

Porque és a mão que ampara o meu silêncio,

a minha filha, o meu cansaço

— à custa do teu cansaço, da tua filha,

do teu silêncio.



Não há homens-a-dias neste mundo,

mas tantas como tu,

a segurar nas mãos e no sorriso

algumas como eu.


Entraste há pouco a perguntar

se eu tinha febre

— a louça por lavar nas tuas mãos,

aspirando o cansaço dos meus ombros,

nos teus ombros o cansaço de mim

e o cansaço de ti.


Desculpa os meus silêncios,

o falar-me contigo como com mais ninguém,

desculpa o tom sem pressa

— e o meu dinheiro que não chega a nada,

comprando o teu trabalho

(o teu sorriso)



ANA LUÍSA AMARAL,


"Às Vezes o Paraíso", (2ª edição), Quetzal Editores, Lisboa

MC

1 comentário:

Rosalina Gomes disse...

Este poema da Ana Luísa é… interessante. Uma Inês, uma coutada, caçar… Lembra-me algo… que preciso perdoar. Já, já. Gosto do seu Blog. Mais cumprimentos. Sou, sim, rosalina-gomes, e também de sousa (com todos os dentes, sem artrose, nem reumatismos).