A leitura deste belíssimo poema de Eugénio de Andrade, levou-me a escrever este pequeno e desatinado texto tão ao contrário de mim...
Procuro-te
Procuro a ternura súbita,
os olhos ou o sol por nascer
do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque
com a forma de um grito de alegria.
Oh, a carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água entre o azul
do prado e de um corpo estendido.
Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti, e o teu nome ilumina
as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.
Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferenças,
mas não quando se ama,
não quando apertamos contra o peito
uma flor ávida de orvalho.
Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.
Porém eu procuro-te.
Antes que a morte se aproxime, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol, à chuva,
de noite, de dia, triste, alegre — procuro-te.
Eugénio de Andrade, in "As Palavras Interditas"
Também eu te procuro...
Procuro-te no brilho líquido do teu olhar, que não ilumina, nem se dissolve no meu; procuro-te na incandescência lânguida do teu corpo, onde não ardo, não me queimo e não percorro; procuro-te no aconchego macio do teu abraço, que não me abraça e não me trespassa; procuro-te no teu cheiro doce, amadeirado e lascivo que lembro, mas que não sinto; procuro-te na doçura húmida dos teus lábios, que não adoçam, nem humedecem os meus; procuro-te nas palavras mansas, mel e canela, que não dizes; procuro-te na cascata de riso que não ris; procuro-te nas mãos fortes mas suaves, onde as minhas se aninhavam numa modorra lassa; procuro-te nas manhãs transparentes, perfumadas de erva-doce, de rosas e de jasmim; procuro-te nos dias cinzentos, que uma chuva miudinha enreda e entristece; procuro-te nas noites claras deitadas nuas, à luz leitosa, fria, lívida da lua; procuro-te nas noites escuras, tenebrosas, assombradas de medos e de fantasmas medonhos...
Procuro-te, na inquietude deste desconcerto em que me perco; procuro-te, perdida no avesso de mim; procuro-te, perdida no desacerto de um eterno desencontro...
Procuro-te, nesta saudade pungente, atordoada, de ti, que nunca foste, mas mesmo assim, magoa e dói...
MC
3 comentários:
O texto do Eugénio já conhecia e, obviamente, também o acho belissimo. O teu texto, aliás, tu peópria enquanto escritora, francamente, não conhecia. E fiquei a gostar de conhecer. Vou ficar atento e quedar-me por aqui, para te ler.
Parabens.
E há poetas que escrevem em prosa, uma prosa que dentro do desenho é poesia da poesia. Note-se a estrutura anafórica, os paradoxos, o eu poético no delírio do fingimento lírico que «mesmo assim, magoa e dói...», porque a essência do eu sobe à espuma dos dias, pintando a folha branca com as cores «escuras, tenebrosas, assombradas de medos e de fantasmas medonhos...» na noite do «desconcerto», «desacerto», «desencontro» do fundo da alma transfigurada.
Gostei imenso. Parabéns. Zé
Muito obrigada, Ricardo, por teres passado por aqui, por teres lido o meu texto e teres deixado o teu comentário, de que gostei muito, tenho de confessar. Não sou uma escritora, Ricardo, mas gosto de rabiscar umas frases. Espero que voltes mais vezes, embora eu seja bastante irregular na escrita. Abraço.
Enviar um comentário