terça-feira, 9 de setembro de 2008

Para a Xica ... com amor!

Os animais são uma das minhas paixões e muitos, especialmente cães e gatos, fizeram parte da minha vida, tornando-a mais bonita, mais terna e até, em certos momentos, menos solitária!
O animal que hoje aqui vou homenagear é, talvez, um dos mais belos e comoventes motivos da tela, onde vou registando, com tinta de luz ou de sombra, cada um dos meus dias, embora, na minha vida, tenha sido apenas uma doce e indelével referência: a Xica, uma pequena e graciosa macaca!
A tela a que realmente pertenceu e onde deixou gravada a sua marca, em pinceladas de amor, alegria e doçura, é outra, há muito tempo, interrompida!

Nasci em África. Uma África, então, pacífica, bordada de mar, enfeitada de cores alegres e cintilantes, envolta em sol e cheiros doces e fortes, num arrebatamento de pura beleza e imensidão!
Nesse tempo, faziam-se, ao fim de semana, longos e deliciosos piqueniques, mato adentro, alegres pretextos para convívios familiares e de amigos.
Num desses piqueniques, na Anha, ainda eu não era nascida, a minha Mãe viu e nunca mais perdeu de vista, o que ela pensou ser um macaco, ainda pequeno, meio escondido, fugidio, mas curioso e a seguir, interessado mas, à distância, a divertida reunião.
A certa altura, uns olhos grandes, escuros e redondos como contas, cruzaram-se com os olhos claros da minha Mãe. Olharam-se, mediram-se, entenderam-se e começou, então, um silencioso jogo de sedução e conquista.
Vencido o receio, uma mãozinha esguia, escura e felpuda, perdeu-se, confiante, numa outra, branca e fina que a acolheu ternamente. Ao cair da tarde, no regresso a casa, a pequena macaca, (afinal era uma menina ), que, decerto, se perdera do bando, já tinha um lar, uma família e um nome: Xica!

E, entre a senhora dos olhos claros e a pequena macaquita, nascia uma delicada mas forte relação de afecto e de uma imensa ternura!

Uns dois anos mais tarde, nasci eu e lembro-me de, já crescida, ver fotografias, aquelas fotografias antigas, a preto e branco, com uma pequena margem branca, recortada, onde a minha Mãe sorria e a Xica, os olhos grandes, escuros e redondos, como contas e a boca rasgada num pretenso "sorriso" de dentes brancos, se sentava no seu ombro esquerdo e lhe abraçava o pescoço alto e fino, com a mãozinha esguia, escura e felpuda; noutras, as duas, de mãos dadas, olhavam, divertidas, uma para a outra, numa afectuosa cumplicidade; em algumas, já eu aparecia, risonha, ao colo da minha Mãe, enquanto, a Xica, no chão, agarrada à sua saia, olhava atenta e enternecida, quero crer, mas não tenho a certeza, para nós duas.
Lembro-me de uma fotografia, onde eu e a Xica, estávamos sentadas numa esteira, eu, convencida que era a menina mais bonita da minha rua, fixava, em pose, o fotógrafo, que era, certamente, o meu pai, enquanto a Xica, a meu lado, se inclinava, para mim, com a mãozinha esguia, escura e felpuda pousada, docemente, no meu braço.
Mas, a de que eu sempre mais gostei, era aquela onde eu me aninhava, pequenina, nos braços macios da minha Mãe que sorria, com a Xica, empoleirada no seu ombro, a abraçar-lhe o pescoço alto e fino, ao mesmo tempo que, com o seu peculiar e rasgado "sorriso" de dentes brancos, transbordante de alegria, olhava, muito vaidosa, para o fotógrafo!

A Felicidade não é permanente! A Felicidade pode estar, simplesmente, nuns minutos, numa hora, quiçá, num dia, plenamente, radiosamente, vividos; pode estar no arroubo de um amor, julgado perdido; no instante fugaz mas perfeito de dois olhares que se cruzam e se dissolvem na mesma luz; na esfuziante alegria de um reencontro, há muito tempo adiado; numa notícia boa, ansiosamente esperada; num abraço apertado, tão desejado!
Ainda que inconscientemente, sempre pressenti que, naquela fotografia, tinha ficado, para sempre registado, um desses raros e mágicos momentos, de suprema Felicidade que a vida, às vezes, generosamente, nos concede!

E, os dias foram transcorrendo serenos e rotineiros.

Quando eu tinha dois anos, a minha Mãe adoeceu gravemente e viajámos, à pressa, para o Continente, na vã esperança de a salvar e onde, porque a doença podia ainda ser contagiosa, nenhum familiar nos quis receber! Foram amigos que nos ajudaram e acolheram! De coração aberto e sem medo, numa preciosa dádiva de solidariedade e de afecto!
A Xica e a Pequenina, a cadela enorme que, de pequenina só tinha o nome, lá ficaram,
em África, entregues aos cuidados dos meus tios.
A Pequenina deixou de comer uns dias e sentiu, profundamente, a falta dos donos mas, recuperou. O instinto primário de conservação da vida foi mais forte do que o desamparo da ausência, do que a agonia da saudade!

A Xica, a macaquinha meio-selvagem, encontrada sozinha no mato, não!
Deixou-se ficar, teimosamente, sentada num recanto do jardim, com os olhos grandes, escuros e redondos como contas, à espera de ver entrar a minha Mãe, a qualquer momento.
Nunca mais comeu, nunca mais quis brincar, recusou, furiosa, sentar-se no ombro da minha tia e nunca mais saiu do recanto onde seria mais provável ver chegar, enfim, a luz que lhe iluminava a vida, cada dia mais débil, os olhos, sem expressão, cada vez maiores e mais redondos!
Uma manhã, pouco tempo depois, os meus tios encontraram a Xica estendida, imóvel, as mãozinhas esguias, escuras e felpudas, abertas num pungente abandono, o olhar vazio, transfixo. Tinha morrido!

A minha Mãe, que faleceu meses depois, nunca soube que a Xica, a macaquita indefesa que resgatara do mato, resgatando-a, assim, da fome, da solidão e do perigo, tinha desistido de viver, mergulhada na tristeza da sua falta, esgotada pela angustiante expectativa de a voltar a ver e abraçar!
Eu, a filha única, desejada e querida, sobrevivi à dor, sem remédio, da sua perda; ao vazio, nunca inteiramente preenchido, da sua ausência; à amputação dolorosa do pequeno mundo dos meus afectos e bebi, cada dia de vida, a haustos longos e ávidos!Mas, a Xica não! A Xica desistiu e deixou-se morrer, presa numa dolorosa teia de amargura e afundada no desespero de uma infinita saudade!

Às vezes, nas minhas noites de insónia, como esta, imagino-as juntas, num jardim imenso, luminoso e perfumado: a minha Mãe sorrindo e a Xica, os olhos grandes, escuros e redondos como contas, para sempre feliz, sentada no seu ombro esquerdo, enquanto a abraça, amorosamente, com o seu bracinho longo e peludo, como na velha fotografia , a preto e branco mas, onde, incompleta, ainda permanecem vazios, os braços de minha Mãe!


Nota: Só é possível tirar a cria a uma macaca, matando-a! Imagino hoje, como a minha Mãe deve ter sentido então, o desespero da mãe da Xica e dela própria, quando, desgraçadamente, se perderam uma da outra!
Mas, só assim, a Xica pôde ser uma benção de dedicação, de ternura e de alegria na nossa família, especialmente, para com a senhora de olhos claros, a quem dedicou, amorosamente, inteiramente, a sua vida!


M.C.

2 comentários:

SC disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
SC disse...

Chorei ao ler este post... o que, apesar de não ser uma pessoa de lágrima fácil, não me surpreende.
Não é impossível ficar indiferente à forma delicada e emocionada como autora desenha a relação de amor existente entre ela, a mãe e a Xica, tendo como cenário África, esse continente do cheiro a terra molhada e do pôr-do-sol alaranjado ao som do batuque.
A felicidade é feita de minutos e segundos que, a muitos de nós, estrangulados pelas rotinas diárias, acabam por passar despercebidos.
A autora, apesar da tenra idade, parece ter saboreado e apreciado esses momentos, que o destino quis que fossem efémeros, o que já faz dela um ser privilegiado.
Desse breve mas grande amor, ficaram as ternas recordações e a paixão que autora também sente pelos animais.
A jovem mãe, tão cedo roubada à vida, permanece viva, através da filha, a minha Mãe, revelando-se, diariamente, nos olhos, também claros, cheios de ternura e carinho, que, sempre que estamos juntas, me envolvem num abraço meigo e reconfortante.
O legado que minha avó deixou à minha mãe e que a minha mãe também me transmitiu foi um profundo amor e respeito pelo animais, por todos os animais.
Ao contrário do ser humano, os animais amam incondicionalmente, sem defesas, exigências ou contrapartidas.
Por isso, é que é possível que os animas, como a Xica, morram de amor, de saudade e de tristeza.
Os animais não dispõem, como nós, de mecanismos, como o cinismo, o bloqueio de sentimentos, a raiva, que nos permitem superar os grandes desgostos e perdas, entregando-se, por isso, indefesos à dor e à saudade.
Tenho o privilégio de diariamente viver uma preciosa relação de amizade e ternura com um animal, uma cadela labrador chamada Naomi, que, ao longo dos últimos três anos, nas momentos mais felizes e nos menos bons, me tem dado, generosamente, muitas lições de amor, carinho e ternura.
Procuro saborear e registar todos os momentos - são muitos - que passamos juntas, lembrado-me, às vezes, com o coração apertado, da injusta brevidade da vida de um cão.
São momentos muito, muito simples, como acordar com ela aos meus pés no sofá, depois de pachorrentamente ter adormecido em frente ao televisor; trabalhar horas no computador com ela deitada aos meus pés, a dormir serenamente; interromper o meu trabalho, por uns momentos, para lhe fazer a festinha que ela delicadamente me pede, pondo a patinha no meu braço; ir com ela até à varanda ou ao jardim para combater o bloqueio da página branca, esse pesadelo de quem está a fazer uma dissertação; adormecer com o suspiro que ela dá sempre que se prepara para dormir à noite; acordar com uma lambidela bem-disposta que quer comer e passear no jardim; dar longas caminhadas com ela na praia, brincando nas rochas e.. senti-la encostada a mim, muito séria, quando me sento na areia, perdida nos meus pensamentos... sempre com a certeza que, por muito lúgubres que estes sejam, tenho ao meu lado um ser maravilhoso, com um coração gigante e uns olhos escuros, cheios de ternura e meiguice, capaz de, na ausência de palavras, me confortar, apoiar e incentivar.
É, por isso, que consigo compreender o relacionamento da Xica com a minha avó e me comovi com o post que a minha Mãe dedica à Xica, mas, que no fundo, é um tributo à Mãe, essa mulher extraordinária que amava tanto animais, que um dia trouxe da selva uma macaca, chamada Xica.
Este comentário pretende homenagear estas duas Mães, uma que não tive a felicidade de conhecer, e outra ,a minha Mãe, com quem tenho o privilégio de viver dia – a -dia, nos últimos 33 anos, uma relação de amor, ternura, respeito, e partilha, donde só poderia resultar uma relação tão linda como a que tenho com a Naomi, que foi a mais linda prenda que recebi...Foi uma prenda da minha Mãe.
Obrigada, Mãe!