domingo, 14 de fevereiro de 2010

Naquela noite densa e escura...

Não sabia como tinha ido parar ali. Saíra da estrada, e estava, agora, num carreiro estreito, rodeado por uma mata escura de árvores e de arbustos altos. À esquerda, espreitava um lago negro e baço.
A noite estava escura e densa.
As ramagens das árvores farfalhavam inquietas, soluçando mágoas e desfiando pecados velhos, feios, malditos, e o vento percorria o carreiro e acariciava as árvores e os arbustos com frémitos de amante, doido e meigo, e gemia melopeias, mil vezes repetidas.
O lago negro, parado, parecia um polvo adormecido, ameaçador, na sua aparente quietude!
Pareceu-lhe sentir a presença de alguém e julgou ouvir passos leves, abafados, furtivos mas depressa percebeu que, o que ouvia, eram as batidas fortes, desritmadas do seu coração!
Estava sozinho, perdido, vulnerável, naquele recanto desconhecido!
Sombras corriam pelo carreiro, emaranhavam-se por entre as árvores negras a segredarem, entre si, uma urdidura velhaca de intrigas e de enredos, e serpenteavam até ao lago, como cobras coleantes, esquivas, traiçoeiras.
A sensação inquietante de uma presença, apenas pressentida, mas que se impunha, dominadora, perturbava-o!
Subitamente as águas estagnadas do lago pareceram revolver-se, como se tivessem despertado de um torpor longo e doentio e, por momentos, coberto de suor, ele imaginou tentáculos monstruosos, pegajosos e fortes como tenazes, a emergirem e a estenderem-se, malignos, até si.
O pio lúgubre do mocho despertou a noite, com o seu queixume triste!Ele estremeceu e, aquele ambiente pesado e misterioso, lembrou-lhe as cartas! As cinco cartas de um amor alarmado pela ameaça do abandono perpétuo que, desde sempre, o tinham fascinado e que iria abordar, na conferência, no dia seguinte!

Cinco cartas latejantes de paixão, carregadas de lágrimas e de cansados suspiros que o coração e o corpo saciados do outro, nunca tinham sabido entender!
Aquelas cartas, pensou, com emoção, sendo um precioso e delicado luzeiro literário, tinham, na sua pungência, eternizado um amor! Um amor pecaminoso, condenado, ardente de insaciável desejo, vivido em noites assim, como aquela, densas, escuras, atravessadas de mistério e de sombras! Mas também noites apaixonadas, libidinosas, carregadas de fascínio e de luxúria!
São cartas desorganizadas, escritas num frenesim, à toa, sem pensar, que não seguem preceitos ou normas, que não obedecem a regras de moral ou de gramática, com a dignidade a querer sofucar o amor ou, talvez, com o amor a querer estrangular a dignidade!
Encolheu, ligeiramente, os ombros, descontente. Consigo próprio!
Ali estava ele, o professor exigente, o crítico temido, o poeta inquieto, o escritor insatisfeito...
Não! Se aquelas são cartas desorganizadas, irreflectidas, desvairadas, é porque, mais do que cartas, são retalhos de alma, são golfadas de dor, são cintilações de luz, são poços, sem fundo, de sombra funesta!
Por isso, porque elas são fruto de um amor fremente, enredado nas teias geladas do abandono, são desgrenhadas, impetuosas, contraditórias! São cândidas e lascivas! São luminosas e turvas! São ternas e coléricas! São líricas e trágicas!
E, só ela, perdida a esperança, à medida que a dor crescia e se agudizava, tomando o vulto de um temporal desfeito, medonho, podia ter escrito, saudosa, tresloucada: “Amo-te mil vezes mais do que a própria vida, e mil vezes mais do que imagino.”

E, o pio magoado do mocho cortou, de novo a noite, cada vez mais escura, cada vez mais densa! As ramagens das árvores e os arbustos altos confiavam, ainda, ao vento, inconfessáveis segredos e urdiam, entre si, tramas caluniosas, crueis. No lago, agora, uma bolha negra e gordurosa, ele pressentiu os monstros horrendos que ali se revolviam, e ameaçavam prendê-lo nos seus miasmas letais.
“Os meus medos!” pensou. "São os meus medos sombrios, viscosos, danados, que me torturam e que me envenenam que ali sinto, enleados num novelo maléfico, sem princípio, nem fim!”
E, o pio lancinante, do mocho a ecoar, longamente, na noite velha e gasta, e a fazer doer... a fazer doer a alma!

E, a presença, aquela presença assustadora a impor-se! Invisível, persistente, poderosa! Cada vez mais próxima!

Então, trémulo, num arrepio de susto e de espanto, viu, à sua direita, a figura diáfana de uma rapariga vestida de branco. Tinha os longos cabelos em desordem, os fartos cachos de caracóis dourados a desfazerem-se, lânguidos, sobre os ombros. No rosto branco e fino, luziam os olhos grandes, verdes, transfixos.
Estática, muda, pálida, com os braços caídos ao longo do corpo ela era um frágil ponto de luz, uma suave emanação de brilho, no negrume profundo da noite!
Ele olhava para ela, emudecido, num assombro!
Ela, calada, branca e loira, branca e fria, atravessava-o com o olhar!

Submerso num mar de terror e de náusea, com a voz presa na garganta, ele tentou respirar fundo e tossiu ligeiramente.
Ela pareceu não o ouvir e voltou-se devagar, silenciosa, quase transparente...
Num impulso, antes que se ela perdesse na mata negra, ressumante de suspiros e de lamentos, ele perguntou, agora, aos borbotões, numa ansiedade estranha, tão estranha como aquela estranha noite: “ Como se chama?”
E, ele nunca soube dizer se foi a rapariga que, num murmúrio, falou, se foram as ramagens das árvores que, docemente, sussurraram, se foi o lago que, cansado, gorgolejou ou, se foi o pio dolorido do mocho que, nesse instante, quebrou o silêncio enfeitiçado, daquela noite singular, e que, plangente e grave, respondeu:

Mariana!

Nota: Como o macaco é um exímio imitador, também os humanos usam e, às vezes abusam, dessa sua capacidade de imitar!
Assim sendo, vesti uma pele que não é a minha e escrevi este texto, a imitar um escritor ultra-romântico.

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