domingo, 14 de fevereiro de 2010

Uma vida em quatro tempos

Nasci pouco antes da hora de jantar e, minha avó estava de cama com um resfriado que a levou para a cova, poucos dias depois.

Cresci como um pequeno príncipe, numa casa rica, onde nunca nada me faltou, a não ser o amor e a carinhosa atenção que nos encouraçam, desde o berço, para as agruras e os espantos da vida.
Meu pai morreu, de repente, quando eu tinha sete anos. Meu tio, irmão do meu pai, tomou-me à sua guarda e levou-me para a sua casa, um palacete, no centro da vila, onde vivi rodeado de amas e de criadas. A minha mãe continuou na nossa casa, que era ali, mesmo ao lado. Dela, recordo a sua beleza fresca e os bonitos vestidos que eu não podia sujar ou amarrotar, com os meus abraços desajeitados de menino vagamente assustado. Não tive irmãos ou irmãs e, posso dizê-lo, fui sempre uma criança solitária e triste.
Nunca percebi porque não fiquei, na nossa casa, com a minha mãe, assim como não percebi o relacionamento forma, ldela com o meu tio, se, no dia em que o meu pai morreu, os vi correr, num alvoroço, um para o outro, abraçarem-se ternamente, a minha mãe a chorar e ele a cobrir-lhe o rosto bonito e fino, de trémulos beijos!
Estava destinado, eu ir para a academia militar. Recusei firmemente. Aos dezasseis anos, mandaram-me para um colégio interno. A minha mãe continuava bonita e airosa, mas sempre ligeiramente distante e fria. O meu tio tratava-me com cordealidade, preocupava-se comigo, mas nunca me dava um abraço ou, me estendia a mão, num gesto, visível, de afecto.
No momento delicado, do despertar da minha sexualidade, o Armando, meu companheiro, no colégio, apaixonou-se por mim e eu deixei-me envolver na doçura morna daquele amor, que suavizava e aquecia a minha alma gelada e seca.. Vivemosa história de um amor clandestino e proibido, que o Armando estava pronto a assumir mas, que a mim, me estarrecia. Assim, aquele foi sempre e apenas um amor idealizado, terno e cauteloso, como eu queria que fosse! Um amor fortalecido por uma completa entrega, da parte dele, que marcou a minha vida, árida de afecto, de ternura e de partilha!
Fomos juntos para a Faculdade e a minha sexualidade, fervilhava, inquieta, numa tremenda e avassaladora, confusão, de sentimentos, de incertezas e de medo! Quando terminámos o curso de Economia, decidi, ainda não sabia bem, se dobrado ao peso castrador das convenções sociais ou, se realmente porque as mulheres me começavam a interessar, que, na minha vida, o Armando não podia ser mais do que um amigo! Um amigo querido, é certo, mas apenas um amigo! Disse-lhe, sem rodeios, brutalmente, que os olhares cúmplices, as suas incontroláveis carícias, a terna solicitude dele para comigo, tinham de acabar! Aterrava-me a ideia que aquele seu amor arrebatado, transbordasse e fosse descoberto! O Armando gritou, chorou, insultou-me, suplicou e revoltou-se!

No dia que fiz vinte e cinco anos, o Armando suicidou-se!,
E, eu nunca lhe perdoei a insensatez do seu desesperado gesto; nunca lhe perdoei ter-me deixado mais só e mais triste do que nunca; nunca lhe perdoei esta dor que se agarrou a mim, como um limo maldito, viscoso, aferrado a mim, por não o ter amado como merecia; nunca lhe perdoei a minha infinita mágoa e o meu doloroso remorso pelo meu egoísmo, pelo meu medo!
Fui uns anos para os Estados Unidos, mais exactamente, para São Francisco, onde vivi intensamente e onde fiz uma valiosa pós-graduação. Sentia-me profundamente mal comigo mesmo e a saudade viva, cada vez mais forte, do Armando, torturava-me! Compreendi, tarde demais, que o amava muito mais do que tinha querido admitir!
Quando regressei ao país, assumi o controle da empresa do meu tio! Uns anos depois casei com a Teresa e tivémos três filhas. Casei e tornei-me um homem , como mandam as regras, de uma sociedade preconceituosa e hipócrita! Tão preconceituosa e hipócrita como eu, ao vestir a pele de um marido tranquilo, amado e amante, que nunca fui, e de um pai carinhoso e interessado, que me esforcei por ser!
Descobri, depois de casar, que a Teresa era uma mulher difícil, quesilenta e sem sentido de humor. O nosso casamento, aparentemente feliz, era continuamente agredido por tremendas discussões, que me deixavam esgotado, e abalado pelas abomináveis birras e os patéticos queixumes da minha mulher.
Fiz vários cursos de actualização no Reino Unido e na Alemanha. Ganhei muito dinheiro, perdi algum, viajei, joguei no casino, tive aventuras amorosas, sem consequências. Enfim, eu era o que se pode chamar um homem do mundo. Por isso, também, muitas vezes me cansei e me aborreci! Mas, nunca, houve um dia, em que não recordasse o Armando. Com o passar dos anos, tornei-me mais fechado, mais irascível e fui ficando cada vez mais zangado comigo e com a vida.

Aos cinquenta anos, fiz uma incursão no mundo da política, como assessor do ministro das Finanças. Foi uma experiência muito intensa, trabalhosa, mas muito interessante! Que não quis repetir, quando o mandato acabou!
Um ou dois anos depois, no dia do casamento da filha de um amigo, conheci-a! E, vi-me, pela primeira vez, num estremecimento de alma, como um adolescente ansioso e perplexo, entre a emocionada magia do enamoramento e o infinito abismo da paixão.
Este foi outro amor puro, platónico, mas forte, sob a forma de uma suave amizade, porque éramos ambos casados. Ela era uma mulher uns três anos mais nova do que eu, bonita, azougada e doce, que me encantou e me prendeu! Amei-a, com todas as forças da minha alma!
Nunca tive coragem de lhe falar no turbilhão incandescente, que se agigantava dentro de mim, porque sabia que jamais teria coragem de destruír a ordem social, estabelecida! Pelo contrário, afastei-me dela, perdi-a e perdi-me! Para me defender daquela paixão inesperada e febril, mas perigosa e transgressora, zanguei-me com ela sem razão e desorientei-a, com o meu distanciamento forçado e pretenso cinismo!
Ela julgou-me cruel, quando eu estava a ser cobarde! Ela pensou ver, em mim, um desinteresse e uma raiva, que nunca senti, quando o meu coração explodia de amor e de ansiedade! Ela viu-me voltar-lhe as costas, como um tolo arrogante, só porque eu não podia enfrentar a claridade pura do seu olhar, morto de ódio e de ciúme de todos os que a rodeavam! Ela sentiu-se traída e ignorada, quando eu apertava os punhos até doer, no fundo dos bolsos, só para não correr para ela e apertá-la, à frente de todos, num infinito abraço!
E, por ela, com ela na alma, conheci a exaltação, o ciúme, a alegria, a tristeza, o ódio, arroubos dourados de esperança e o desespero!
Mais uma vez, para não abalar as solenes convenções sociais , desisti dela! Preferi, em nome da mais triste cobardia, chafurdar, na mais dilacerante amargura, na mais negra frustação! E, reconheci o gosto amargo da renúncia!
Nunca mais a vi. Fui, durante anos, a almoços, a jantares, a reuniões e até a funerais, onde pensava poder encontrá-la! Só para a ver! Só para poder mergulhar, por instantes, o meu olhar turvo e desassossegado, na luz clara e serena do seu olhar! Só para respirar , nem que fosse por momentos, o mesmo ar que ela! Mas, nunca mais a vi! Fechei-me ainda mais em mim e sei que me fui tornando, cada vez mais irascível, mais zangado com tudo e com todos! Mas nunca, nestes anos todos, se passou uma noite que eu não adormecesse, a pensar nela!
Entretanto, adoeci gravemente e fui submetido a uma delicada cirurgia. Nunca mais, desde então, fui o mesmo homem forte e enérgico que era! Mas, nem a minha doença suavizou o azedume da minha mulher.

Tenho setenta e cinco anos. Continuo casado com a Teresa. Uma Teresa mais quesilenta, mais mal disposta, cada vez mais gorda e mais insuportável! Mas a verdade é que fui eu que escolhi continuar a esbracejar nesta vida, feita de discussões, de zangas, de mágoas e também de cansaço e de uma profunda indiferença! Sim, porque creio que já é por hábito, que continuamos juntos, que nos odiamos e discordamos tanto!
As nossas filhas seguiram o seu caminho. E, tenho, hoje, a medonha, a frustrante sensação que não tenho nada!
Estou doente e não me resta muito tempo! Olho para trás e sinto que fiz quase nada, da minha vida! Fui um menino carente, solitário e triste; fui um jovem egoísta, solitário e triste; fui um homem acomodado, solitário e triste; sou um velho doente, amargurado, solitário e triste! Fui sempre fraco, solitário e triste!
Mas, apesar de tudo, o Armando e ela aqui permanecem comigo, hoje, e nos dias que me restam, como duas referências poderosas e ardentes! Eles foram duas vagas imensas, cristalinas, arrebatadoras e perturbantes que me inundaram a vida de paixão e de amor mas, nas quais, não eu soube, não ousei mergulhar, abandonar-me e perder-me!

Tenho cinco netas. O meu primeiro neto nasceu ontem, pouco antes da hora do jantar e eu ainda não o vi porque, estou de cama , há uns dias, com um resfriado que me tolhe...

MC

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