sábado, 14 de maio de 2011

Crepúsculo

Não gosto do crepúsculo! Entristece-me. Temo-o.

Não sei porquê ou, talvez inconscientemente, saiba, associo o crepúsculo, essa hora dos “mágicos cansaços”, dos poetas e dos artistas, à memória mais remota que tenho da minha mãe, doente, num quarto despojado, quase nu, hoje sei que era um sanatório, sentada numa cama estreita, junto a uma janela, com os braços estendidos para mim, e imagino-lhe os olhos chorosos, numa ansiedade aflita. Não me lembro das feições do rosto, mas recordo-me, (será que me recordo mesmo?), de uma voz, severa e dura, dizer: "Não esteja com isso, não a chame, sabe que não pode tocar-lhe. Só pode vê-la. De longe..."

E, lembro-me de mim, pequenina, à porta, aos gritos e a chorar, também eu com os braços estendidos para ela, aprisionada entre os braços fortes de uma mulher, ansiosa por fugir e refugiar-me no peito macio e aconchegante, mas onde a doença galopante e facilmente transmissível, fervilhava, malévola.

Esta foi a última vez que vi a minha mãe. Uma cena crepuscular , toda feita de choro, da tristeza, sem remédio, da separação e de uma raiva imensa, que jamais esqueci.


Aqui ficam dois poemas da poetisa do amor, da saudade, do crepúsculo e dos mágicos cansaços dessa hora ambígua e carregada de melancolia.


Se tu viesses ver-me

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços…

Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca… o eco dos teus passos…
O teu riso de fonte… os teus abraços…
Os teus beijos… a tua mão na minha…

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca…
Quando os olhos se me cerram de desejo…
E os meus braços se estendem para ti…

Florbela Espanca - Charneca em Flor


Crepúsculo


Teus olhos, borboletas de oiro, ardentes
Batendo as asas leves, irisadas,
Poisam nos meus, suaves e cansadas
Como em dois lírios roxos e dolentes...

E os lírios fecham... Meu Amor, não sentes?
Minha boca tem rosas desmaiadas,
E as minhas pobres mãos são maceradas
Como vagas saudades de doentes...

O Silêncio abre as mãos... entorna rosas...
Andam no ar carícias vaporosas
Como pálidas sedas, arrastando...

E a tua boca rubra ao pé da minha
É na suavidade da tardinha
Um coração ardente palpitando...

Florbela Espanca, in "Livro de Sóror Saudade"

MC

2 comentários:

SC disse...

Maravilhoso!Adorei!

José Almeida da Silva disse...

O crepúsculo é o crepúsculo e o olhar do ser que o experiencia.
Estes crepúsculos, aqui postados, têm muito de comum e de original. O crepúsculo de MC é uma infância de medo e de impotência, de lágrimas e de solidão - é assim a perda que conduz à orfandade que não tem braços bastantes para agarrar afectivamente a fonte da Beleza e do Amor - uma longa hora de «mágicos cansaços» estendendo-se até este agora ainda doloroso.

Quanto a Florbela Espanca, viveu sempre num crepúsculo inexplicável. Quem sabe, explicável pelas amarras de uma alma inquieta e desejosa de absoluto!

Gostei muitíssimo! Parabéns e grato por este pedaço de poesia.