sexta-feira, 10 de junho de 2011

Dia de Portugal

PRECE

Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
O mar universal e a saudade.

Mas a chama, que a vida em nós criou,
Se ainda há vida ainda não é finda.
O frio morto em cinzas a ocultou:
A mão do vento pode erguê-la ainda.

Dá o sopro, a aragem – ou desgraça ou ânsia –,
Com que a chama do esforço se remoça,
E outra vez conquistemos a Distância –
Do mar ou outra, mas que seja nossa!



NEVOEIRO

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer –
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo - fátuo encerra.

Ninguém sabe que coisa quer,
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...


É a Hora!


Valete, Frates




«O poema aponta para um tom geral de disforia, de tristeza e melancolia, marcado por palavras e expressões de negatividade, caracterizando uma situação de crise a vários níveis: político “Nem rei nem lei, nem paz nem guerra” (repare-se na sucessão do advérbio de negação – nem); crise de identidade, também “este fulgor baço da terra/ que é Portugal a entristecer/ brilho sem luz e sem arder/ como o que o fogo-fátuo encerra” (note-se o vocabulário e imagística disfórica: fulgor baço – Portugal a entristecer – brilho sem luz e sem arder – novo oximoro reforçado pela proposição, marca de ausência, sem); crise de valores morais, da alma “Ninguém sabe que coisa quer,/ ninguém conhece que alma tem,/ nem o que é mal, nem o que é bem” (de novo as palavras que marcam a negação – os pronomes indefinidos ninguém, o advérbio nem).

A situação é, em síntese, de incerteza, de indefinição: “Tudo é incerto e derradeiro./ Tudo é disperso, nada é inteiro./ Ó Portugal, hoje és nevoeiro...”. Mas porque – e isto é afirmado no verso central da 2ª estrofe em discurso parentético – algo ficou, consubstanciado na “ânsia distante” que “perto chora” -, e justamente porque Portugal hoje é nevoeiro, “É (também) a Hora!” (teremos que ter em conta que, segundo a lenda sebastianista, o Rei redentor regressaria numa manhã de nevoeiro). A Hora, maiusculada, mas de quê? Pessoa não o diz, mas todo o livro o significa: a Hora de partir, de novamente conquistarmos a “Distância/ do mar ou outra, mas que seja nossa!” (...), de assumirmos o sonho, cumprindo o nosso destino de sagrados por Deus e portadores do seu gládio, do seu sinal – assim a Obra nascerá de novo, como em Mar Português.

Assim sendo, temos que ler Mensagem justamente como a epopeia da era que há-de vir, a do sonho feito realização, a da loucura, divina, porque assumida conscientemente, e interrompida, de D. Sebastião, de D. Fernando, do Infante e dos outros heróis expectantes evocados por Pessoa.» [Bibl.]

A epígrafe final “Valete, Frates” (Adeus, Irmãos) era usual como símbolo de fraternidade em organizações esotéricas; ao usá-la, Pessoa remete-nos para o carácter esotérico/ místico da obra.

Fernando Pessoa - Mensagem

MC

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