domingo, 9 de outubro de 2011

Pascal e eu...

"Le coeur a ses raisons que la raison ne connait pas!"


Encontrei-me com Pascal, não ao virar de uma esquina, mas ao voltar a página de um livro, onde li a frase que me alvoroçou, na adolescência. Com um sorriso enigmático, Pascal perguntou-me o que pensava deste seu pensamento e desapareceu.
Fiquei perplexa porque, francamente, nunca pensei muito nas razões do coração!

Contudo, creio que, se alguém se apaixona tão loucamente que o coração desconhece e descura a razão, esse alguém pode ser levado a ultrapassar limites, a desdenhar princípios e a rejeitar valores. Viverá, num desassossego, o assombro de uma paixão dominadora, impetuosa, cega que poderá, no entanto, justificar uma vida. Viverá uma paixão ardente, talvez doentia, terna mas colérica, pura mas libidinosa, lírica, mas trágica. Súbita e arrasadora! E, por tudo isso, perigosa!

Uma paixão, assim, é destrutiva. Destruíu António e Cleópatra, enlouqueceu Mariana de Alcoforado, levou Anna Karenina ao suicídio e transformou Otelo, um homem íntegro e justo, num assassino enraivecido, sem misericórdia.
A paixão é poderosa, mas cruel, contraditória. Ignora a razão e perde-se em tenebrosos labirintos de emoções irresistíveis, fortes, soltas, desgrenhadas. Mortais!
Qual fogueira alta e fulgurante, assim como arde esplendorosa e magnífica, também rapidamente se apaga e se desvanece, deixando um rasto de imensa tristeza, dolorosa frustração e inconsolável desapontamento, num amontoado de “ pó, cinzas e nada”.

Mas, extinta uma paixão, outras paixões nascem, igualmente fogosas, imprudentes, brilhantes! Pois, se é verdade, que a estrela que se esconde no nosso coração e nos guia, nunca empalidece, nem mesmo quando o corpo evidencia já sinais de decadência, também não é menos verdade, que este companheiro precioso que nos mantém vivos, nunca envelhece e conserva, ao longo da vida, o mesmo ímpeto, a mesma ousadia, a mesma irreverência, a mesma paixão da juventude. E, é esse ardor, essa rejeição do razoável, essa necessidade inesgotável de viver num estado permanente e caótico de paixão, que pode ser e talvez seja, perigoso! Não sei...

Foi Florbela Espanca, a nossa poetisa da mágoa amorosa e tresloucada, que escreveu:

“ Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: aqui... além...”

“Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!”

Acredito que o amor não tem explicação e não tem, propriamente, razão de ser! Acontece! Somos atraídos para o outro porque... sim! Inexplicavelmente! De repente, no voltar de uma cabeça, as almas a reconhecem-se, sei lá de onde, dois olhares a cruzam-se e dissolvem-se na mesma luz, dois sorrisos de dentes brancos, como pedrinhas de sal, fundem-se no espanto ansioso de um reencontro há muito esperado e o coração dispara! E bate muito, bate forte, cheio de alegria e de esperança! Num encantamento mágico, puro, como se fosse um coração de criança!
Se essa atracção, forte e irresistível, perdura e se transforma num sentimento profundo, feito de ternura, de entrega e de verdade, será amor! E, é esse amor verdadeiro, intenso, único, que talvez nunca morra. Mesmo no caso de uma separação. Imposta pela morte ou... pela vida! Pelas imposições tortuosas, difíceis da vida! Porque um amor assim contém, em si, a centelha da eternidade! Adormece na tristeza da solidão e ali fica a um canto, aparentemente morto, fogueira apagada, desfeita em cinza. Aparentemente esquecido e frio! Porém, bem lá bem no fundo do mar estagnado de cinzas, permanece um braseiro, numa dormência silenciosa e quieta, mas vivo, constante, que a brisa mais suave de uma manhã de primavera, ou a rajada mais forte e inesperada de uma noite de vento, reacende e a chama escondida, mas latente, cresce exultante, brilha e resplandece de novo. Viva, infatigável, renascida , urgente. E nesse reacendimento, que a razão talvez não explique, está uma parte de nós, faúlha de luz que nos completa, pedaço de alma que nos liga à infinitude do Universo. Sei lá...

Creio, porém, que não estamos todos destinados a viver a exaltação tumultuosa de uma paixão avassaladora, como Tristão e Isolda! Também não é qualquer um de nós que terá coragem para carregar a pesada cruz de um amor fundo, verdadeiro, braseiro vivo e eterno, mas forçado a trilhar caminhos paralelos, como Abelardo e Heloísa!

Os nossos amores são, no geral, como nós: humanos! Acomodados, comezinhos, friáveis, sem chama...

Ainda bem que Pascal desapareceu, repousa sossegado e não lê o que acabei de escrever sobre um dos seus mais conhecidos pensamentos...

MC

4 comentários:

SC disse...

Maravilhoso!Adorei!

José Almeida da Silva disse...

O prometetido é devido. Venho dizer-lhe o que penso do seu encontro breve com Pascal.

Excelente encontro. Casual e cúmplice. O fio da página que se volta é um espaço ideal para uma troca de ideias ou pedidos de opinião. Sem dúvida que Pascal é inteligente. Entregou o pensamento plasmado na página e na perplexidade, deixando o seu interlocutor entregue à inquietação. Filosófica, a frase! O coração nem tanto, só necessita de sentir. Às vezes, descompassadamente. Daí, o desassossego e o fascínio, inexplicáveis.

O seu texto dá bem dá disso. E apresenta testemunhos credíveis. Fá-lo de uma forma bela, numa retórica simples mas cheia de luz iluminando um conceito de amor que surge de um jogo de fascinações até à eternidade, ou melhor, à efémera eternidade, porque o tempo do amor é infinitamente breve como os seres que o protagonizam.

Pascal desapareceu e, por isso, não pôde aperceber-se de que o seu pensamento se tornou mais explícito.

Gostei muito. Parabéns.

José Almeida da Silva disse...

Onde se lê "prometetido" leia-se "prometido".

As minhas desculpas.

José Almeida da Silva disse...

Mais uma corrigenda. Onde se lê "O seu texto dá bem dá disso" leia-se "O seu texto dá bem conta disso".

Esta hoara crepuscular! Reitero as desculpas.