quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Páginas soltas do meu Diário

6 de Novembro de 2011 – Domingo

O dia amanheceu dourado e morno. Saí e comprei um perfume - Chanel Nº5. Gosto muito de perfumes, mas este é, talvez, o meu preferido. Com duas ou três gotinhas, sinto-me sumptuosa. Sempre!

À tarde, encontrei-me com Dulce Maria Cardoso no “Retorno” e com ela revivi a saga triste dos retornados das colónias ultramarinas. Com ela, revivi a aflição da antecipação da perda, a amargura da perda, a rejeição angustiada da perda e, por fim, vencidos, a aceitação de uma perda amarga, com um recomeço, com ferramentas gastas, feito de medo, de frustração, de cansaço!


7 de Novembro de 2011- 2ªfeira

Dei um passeio delicioso com a Chininha, a Sofia e a Íris, à beira-mar. O sol cobriu-nos de ouro e de luz! A vida, assim, fica-me tão bem...
Fica-me bem sentir a alegria delas a meu lado! Sabe-me a bolo e a flores frescas do orvalho da manhã, adaptar o ritmo dos meus passos ao compasso das passadas saltitantes delas!

À tarde, vesti a bata amarela, com dois bolsos pregados, onde guardo sorrisos, palavras, afagos e pequenas mentiras, daquelas que não fazem mal. Que talvez dêem algum consolo, que talvez transmitam alguma réstea de Esperança, sei lá...


8 de Novembro de 2011 – 3ªfeira

O tempo arrefeceu.
Guardei, definitivamente, com uma tristeza vaga, as roupas leves, coloridas, bonitas de Verão.
Comprei um casaco quente e uma blusa a condizer. Tentei-me com um baton novo. Pintar os lábios com um baton de cor diferente é como estrear um vestido. A alegre expectativa é quase a mesma... Esta sou eu: vaidosa...

Estou na cozinha, com as minhas patudas aos pés... Enquanto a carne assa no forno, eu escrevo e elas dormem consoladamente... Uma delas, a Íris, soltou um suspiro fundo. Embora durma mesmo aqui a meu lado, andará, nos seus sonhos de cachorrinha feliz, a correr alegremente pelo jardim...


9 de Novembro de 2011 – 4ªfeira

Esta noite sonhei contigo. Mas já não eras tu! Dei-me conta que és, agora, apenas uma ténue recordação. Ou nem isso... Talvez, ainda, um fiapo de memória que o tempo, implacável, quase desvaneceu! Melhor assim...

Fiz um bolo de laranja. Amargo e doce! Agridoce!

Comecei a ver, pela “Claraboia” de um prédio com seis inquilinos, o mundo que Saramago criou e que, generosamente, partilha agora comigo. Começa assim, com esta belíssima frase de Raúl Brandão:

“Em todas as almas, como em todas as casas, além da fachada, há um interior escondido.”

Para lá da fachado do livro, onde se destaca a clarabóia, descubro um Saramago jovem e uma escrita rica, ainda pontuada, fluída, poética! Uma narrativa já poderosa, o retrato perfeito de uma época, povoada por personagens sólidas, delineadas por um profundo conhecedor da natureza humana! Embora só com trinta anos.


10 de Novembro de 2011 – 5ªfeira

Vi uma mulher gorda e uma rapariga atrozmente feia, de tão antipática e macambúzia. Vi um um homem, com um aspecto miserável, vasculhar cuidadosamente, quase amorosamente, o lixo. No supermercado, ouvi uma adolescente usar uma linguagem grosseira e insultuosa para com a mãe que a ouviu meio receosa e lhe comprou o que ela queria. Apeteceu-me abanar a mãe submissa e partir a cara à rapariga! A falta de educação, de respeito e a passividade doentia de quem é ofendido, despertam em mim, impulsos agressivos. Sou assim: impulsiva...

Debrucei-me sobre a cama de um doente e, com a mão dele presa na minha, tirei do meu bolso uma atamancada mentira que já não deu consolo, já não transmitiu Esperança! Uma mentira patética, inútil!

Com a alma ajoelhada, agradeci à vida, a sua imensa generosidade para comigo! Porque não sou macambúzia, tenho mais do que preciso, ainda posso ser eu a estender as mãos e o coração aos outros e, sobretudo, porque tenho umas filhas lindas, maravilhosas, perfeitas! Que são o meu enlevo, o meu orgulho, a minha alegria mais profunda!


11 de Novembro de 2011 – 6ªfeira

É dia de S. Martinho e cometi o pecado da Gula. Comi uns rojões fantásticos e castanhas assadas. Bebi vinho novo e circundei-me de rosas com cheiro a Família, a conforto, a serenidade! E pensei que o pecado não tem em si, só aquele travo excitante de transgressão! É também muito gostoso!

Continuo a desvendar, pela modesta Clarabóia, do prédio com seis inquilinos, os enredos que Saramago teceu!
O encantamento da descoberta, só empalidece porque um livro, escrito na década de 1950, é lançado, despudoradamente, obedecendo ao novo Acordo Ortográfico! Não foi assim que foi escrito! Na minha opinião é uma falta de respeito para com o Autor! Mas, quem sou eu...?


12 de Novembro de 2011 – Sábado

Fui às compras de manhã.

À tarde vi um carro atropelar, mortalmente, um cão e seguir sempre, como se nada tivesse acontecido.
Conforme pude, tirei-o da estrada e deitei-o na valeta, numa cama fria, feita de ervas daninhas, com um homem, de meia-idade, bem vestido e aprumado, a ver a cena e que, sem mexer um dedo para ajudar, se limitava a repetir: “ Está morto. Não vê que está morto?”
E, percebi que, tanto como o ódio, também a indiferença gera violência! Porque, nesse momento, uma raiva imensa quase me sufocou e, se tivesse podido, teria agredido, violentamente, aquele homem insensível e o motorista assassino! Sem um tremor de consciência...


13 de Novembro de 2011 – Domingo

Dia chuvoso, triste e cinzento. Acordei muito cedo para a mais maravilhosa das surpresas: A pequenina Inês, na cama comigo! Depois de um acordar algo estremunhado e do asssombro, a explosão de alegria! E numa girândola de luz, de ternura e de delicioso sobressalto, foi a festa!

À noite, vi a estupenda entrevista com Dulce Maria Cardoso e a homenagem a quem, no rebuliço precipitado de uma revolução de cravos, se viu espoliado, sem misericórdia e dramaticamente, de tudo o que construira, a homenagem a quem, perante a indiferença deste Continente pequenino e cinzento, tudo perdeu, mas teve coragem e da fraqueza soube fazer a força, para recomeçar! Do nada!

MC

4 comentários:

SC disse...

Queremos mais!

SC disse...

Adorei!

José Almeida da Silva disse...

Páginas de um diário riquíssimas de notações e a transbordar de vida, vida de fortes sensações visuais, tácteis, olfactivas, em que anda a solidariedade bem delineada na prática e cheia de uma consciência extremamente sensível. São pequenos grandes textos em que se vê claramente que a vida assim tem sentido.

SC diz «Queremos mais», «Adorei!». Não consigo ser mais senão um pedinte, como ela. Um tipo textual a desenvolver, e uma riqueza de vida para incentivar...

Parabéns e um grande abraço.

redonda disse...

Estão páginas lindíssimas, reais e comoventes (já vi cães mortos na estrada o que me deixou triste, mas nunca pensei em tirá-los para a berma, e deveria ter pensado)
um beijinho
Gábi